Resumo: A Constituição Federal Brasileira de 1988 trouxe o Direito de Propriedade como Direito Fundamental, sob uma nova conotação, na qual ele não é mais considerado como um direito individual ou como um instituto do Direito Privado, tendo evoluído de modo a se desvincular do conteúdo eminentemente civilístico, para uma atual natureza publicista, com a previsão de vários limites, tais como: a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social; a desapropriação, para fins de reforma agrária, do imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, a desapropriação do imóvel urbano não edificado; as servidões administrativas; usucapião de imóvel urbano; a expropriação de terras destinadas à cultura de plantas psicotrópicas. Com efeito, através da EC 81/2014, foi incluída uma nova forma de expropriação de terras urbanas ou rurais onde houver exploração de trabalho escravo, sem direito à indenização. Diante da natureza publicista do direito de propriedade adotado pela Carta Magna, é possível a inclusão de outros limites ao direito de propriedade, desde que observados o princípio da proporcionalidade que, no caso, tem como finalidade a concretização da função social da propriedade.
1. INTRODUÇÃO
A formação do chamado Estado de Direito teve como principal fundamento assegurar a propriedade dos bens.
Enquanto os seres humanos viviam de maneira nômade, na qual apenas permaneciam em um determinado local para esgotar os seus recursos e, logo em seguida, buscavam outro local para viver, em que houvesse água e alimentos disponíveis, certamente não existia uma preocupação com reconhecimento de qualquer direito sobre seus bens.
A partir do momento que passou a se fixar em um local, construindo suas moradias, seus utensílios domésticos, suas armas, com o aparecimento da agricultura e criação de animais de pequeno porte, surgiu a necessidade de maior organização social, uma vez que foram surgindo vários conflitos pela posse dos bens que esse progresso técnico e a divisão do trabalho fizeram surgir.
Em razão disso, o chamado “estado da natureza” teve que dar lugar a uma forma de organização social na qual o principio individualista, em que se inspiram as teorias jusnaturalistas, cedesse em favor do bem comum, com a renúncia dos indivíduos a parcela de suas liberdades em favor de um soberano que os governasse, a partir do chamado “contrato social”, o que levou ao surgimento do Estado como atualmente o conhecemos (BOBBIO, 1996).
Observa-se, dessas breves linhas introdutórias, que o direito de propriedade, ou a sua garantia, foi, certamente, o ponto mais relevante para superação do modelo de sociedade individualista para o Estado de direito.
Diante disso, esse direito, suas garantias e seus limites estão presentes há muito tempo na maioria das Constituições dos Estados, sendo que, no caso do Brasil, a nossa Carta Magna deu especial destaque ao direito de propriedade, com demonstrações evidentes de sua evolução que passou de uma natureza eminentemente civilista, para um modelo publicista, no qual só se pode falar em propriedade quando esta atende sua função social.
Recentemente, através da EC nº 81/2014, foi prevista mais uma forma constitucional de limitação do Direito de Propriedade, com a alteração do art. 243, que prevê a expropriação de áreas urbanas ou rurais onde for localizado trabalho escravo, independente de indenização.
O presente trabalho se propõe, assim, a analisar o disciplinamento constitucional do direito de propriedade, sua definição atual e seus limites constitucionais, de modo a verificar a compatibilidade da alteração promovida pela EC nº 81/2014, com o atual modelo de propriedade previsto na Carta Magna.
2. O DIREITO DE PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
O direito de propriedade na Constituição Federal é direito fundamental que se apresenta, ao mesmo tempo, como garantia institucional e como direito subjetivo de usar, gozar e dispor da coisa, e reivindicá-la de quem injustamente a detenha.
No art. 5º, da CF/88, que trata dos direito fundamentais, o direito de propriedade é mencionado logo no caput, quando estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.
Já o inciso XXII, do art. 5º, diz que “é garantido o direito de propriedade”. Logo em seguida, o inciso XIII menciona que “a propriedade atenderá a sua função social”.
Nesse sentido, o direito de propriedade não é mais considerado como um direito individual ou como um instituto do Direito Privado. Com efeito, Gilmar Mendes (2008, p. 426) se vale dos ensinamentos de vários autores para demonstrar que houve uma evolução no direito de propriedade que fez com que o conceito constitucional de direito de propriedade se desvinculasse, pouco a pouco, do conteúdo eminentemente civilístico de que era adotado. Nesse sentido, como afirma Celso Bastos:
“O conceito constitucional de propriedade é mais lato do que aquele de que se serve o direito privado. É que do ponto de vista a Lei Maior tornou-se necessário estender a mesma proteção, que, no início, só se conferia à relação do homem com as coisas, à titularidade da exploração de inventos e criações artísticas de obras literárias e até mesmo a direitos em geral que hoje não o são à medida que haja uma devida indenização de sua expressão econômica”.(apud, MENDES, 2008, p. 426)
Dessa forma, embora integre o conceito de propriedade a definição constante da legislação civil, houve uma ampliação do direito de propriedade de modo a abranger não só os bens móveis ou imóveis, mas também os valores patrimoniais.
Por conta dessa ampliação do conceito do direito de propriedade, a doutrina tem afirmado que o seu âmbito de proteção abrange não só os bens móveis ou imóveis, mas também outros valores patrimoniais como o direito autoral, propriedade de inventos, patentes e marcas, a propriedade pública, o direito de herança e a alteração do padrão monetário.
Tendo isso em conta, tem-se que no próprio art. 5º, da CF/88, como extensão do direito de propriedade, é assegurado o direito de herança (inciso XXX) e o direito de sucessão de bens de estrangeiros situados no Brasil (XXI). Com efeito, essa extensão fez com que se ultrapassasse o direito de propriedade como referente apenas aos chamados bens materiais, de modo que é reconhecido no âmbito constitucional o direito de propriedade de bens imateriais, como se observa do inciso XXVII, que trata da propriedade autoral e o inciso IX, também do art. 5º assegura ao autor de obra intelectual o direito vitalício de propriedade intelectual.
Em vários outros dispositivos constitucionais são feitas menções ao direito de propriedade, como os arts. 5º, XXIV e XXX, 170, II e III, 176, 177 E 178, 182, 183, 184, 185, 186, 191 e 222. Em sua maioria, estes dispositivos tratam de formas do uso e de restrição do uso da propriedade, o que será analisado mais à frente.
3. APLIAÇÃO DOS LIMITES CONSTITUCIONAIS AO DIREITO DE PROPRIEDADE: EC Nº 81/2014
Como mencionado acima, o Direito de Propriedade tem se afastado cada vez mais de sua natureza civilista, de caráter absoluto, previsto inclusive na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, pela qual o exercício do direito de propriedade não estaria limitado na medida em que ficasse assegurado aos demais indivíduos o exercício de seus direitos. No contexto atual, como aponta José Afonso da Silva (2002, p. 271), o direito de ilimitado de propriedade “foi sendo superado pela evolução, desde a aplicação da teoria do abuso do direito, do sistema de limitações negativas e depois também de imposições positivas, deveres e ônus, até chegar-se à concepção da propriedade com função social, e ainda à concepção da propriedade socialista, hoje em crise”.
Dessa forma, tem-se que as exceções ou limites ao direito de propriedade passam, necessariamente, pela premissa de que ela deve atender a sua função social. Assim, fala-se em limitações constitucionais ao direito de propriedade sempre que se verificam condicionamentos que atingem qualquer um dos direitos de usar, gozar e dispor, que tradicionalmente eram tido como absolutos, exclusivos e perpétuos (SILVA, 2002, 278).
Convém ressaltar, no que se refere às exceções ao exercício pleno do direito de propriedade, não se pode confundir a função social da propriedade com as formas de limitação do seu exercício. Assim, como ensina Dirley da Cunha Junior (2010, p. 695)
“ a função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. Estes dizem respeito ao exercício do direito, ao proprietário; aquela, à estrutura do direito mesmo, à propriedade. Segundo a Constituição, a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor 9art. 182, §2º); e a propriedade rural cumpre a sua função social quando atende, simultaneamente, segundo critérios de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores.E uma das formas mais enérgicas de intervenção estatal na propriedade privada é a desapropriação...”
Vê-se que os limites ao direito de propriedade partem da ponderação entre o interesse individual e o interesse da coletividade, sendo esta, de acordo com MENDES (2008, p. 439), uma característica comum a todos os direitos fundamentais, não sendo exclusiva do desse direito.
Diante disso, são exceções ao exercício pleno do direito de propriedade: a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro (art. 5º, XXIV); a desapropriação, para fins de reforma agrária, do imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária (art. 184, caput), a desapropriação do imóvel urbano não edificado (art. 182, §4º) mediante indenização em títulos da dívida pública; desapropriação indireta; a requisição, no caso de iminente perigo público (art. 5º, XXV); as servidões administrativas; usucapião de imóvel urbano (art. 183).
Além dessas, o art. 243 da CF previa que as glebas onde forem localizadas culturas de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas, sem qualquer indenização ao proprietário. Trata-se de verdadeira forma de confisco.
Porém, através da EC 81, de 5 de junho de 2014, o art. 243 foi alterado, passando a ter a seguinte redação:
Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei." (NR)
Dessa forma, houve o acréscimo na Constituição Federal de mais um limite ao direito de propriedade, consistente na expropriação de propriedade rurais e urbanas onde for localizada a exploração de trabalho escravo, sem qualquer indenização ao proprietário, sendo destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular.
Como pondera Gilmar Mendes, “reconhecida a legitimidade da conformação/restrição do direito de propriedade, com suas inevitáveis repercussões sobre as posições jurídicas individuais, cumpriria então indagar se as condições impostas pelo legislador não se revelariam incompatíveis com o princípio da proprocionalidade (adequação, necessidade, razoabilidade).
Nesse sentido, apesar de a função social da propriedade não se confundir com o sistema de limites, ela é utilizada como fundamento a ser observado para a definição do conteúdo e a imposição de limitação ao direito de propriedade, sob o prisma da proporcionalidade.
Observa-se, assim, que a pretensão do constituinte derivado em retirar a propriedade daqueles que a utilizam de maneira contrária ao interesse social, com a exploração de trabalho escravo, mostra-se em consonância com os preceitos constitucionais que tratam do direito de propriedade. Destarte, a própria Constituição Federal já mencionava que a propriedade cumpre sua função social quando observam as disposições que regulam as relações de trabalho (art. 186, III).
4. CONCLUSÃO
De todo o exposto é possível concluir que a garantia do Direito de Propriedade surgiu de maneira concomitante ou em razão da formação do chamado Estado de Direito, estando presente, desde então, em todos os ordenamentos jurídicos.
A Constituição Federal Brasileira de 1988 dá especial destaque ao Direito de Propriedade, reconhecendo-o como direito fundamental e prevendo vários dispositivos que esclarecem a respeito da opção do constituinte de que este direito não tem mais a natureza eminentemente civilista de sua origem, devendo ser exercido de maneira razoável e proporcional, de modo a compatibilizar o seu exercício com o interesse social.
Diante disso, a EC 81/2014, que incluiu como mais uma limitação ao direito de propriedade a expropriação das propriedades urbanas e rurais de qualquer região do país onde for localizada a exploração de trabalho escravo, sem qualquer indenização ao proprietário, sendo destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, respeita este direito como direito fundamente que é, estando sujeito a limites, e mostra-se em sintonia com o conceito de direito de propriedade adotado pela Constituição Federal, que passa, necessariamente, pelo atendimento de sua função social.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto, BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna (tradução Carlos Nelson Coutinho) 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1996.
JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2010.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martins; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20 ed. rev. e atul. nos termos da Reforma Constitucional (até a Emenda Constitucional nº 35 de 20.12.2001). São Paulo: Malheiros, 2002.
Procurador Federal. Mestrando em Direito Ambiental - UNISANTOS<br>Especialista em Direito Púbico - UNB.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Thiago Emmanuel Chaves de. Ampliação dos limites constitucionais ao direito de propriedade: expropriação por trabalho escravo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 jul 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40236/ampliacao-dos-limites-constitucionais-ao-direito-de-propriedade-expropriacao-por-trabalho-escravo. Acesso em: 22 dez 2024.
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