1. Introdução
Nos últimos tempos, o Brasil foi sacudido por uma onda de protestos. É certo que os protestos sempre existiram e fazem parte da história política do país. Entretanto, uma série de elementos forneceu uma nova conotação a esse instrumento popular.
Atualmente, uma variedade de reivindicações das mais diversas ordens figura como objeto dos protestos populares, não sendo possível uniformizar os anseios sociais por trás dos movimentos. Observa-se também a ausência de uma liderança claramente identificada com capacidade para dialogar com os agentes políticos.
Ainda como elemento novo, soma-se o papel preponderante exercido pelas redes sociais, que propagam e dão o combustível necessário para os protestos em curso.
Ressalte-se ainda a presença de elementos com o nítido propósito de vandalizar bens e propriedades, sob o manto do exercício do seu direito de protestar.
Através do instrumento popular do protesto é exercido um direito fundamental albergado pela Constituição. Trata-se de instrumento próprio do regime democrático, a participação popular é elemento essencial da democracia, e deve ser exercido de maneira livre pela população, inclusive devendo ser objeto de proteção por parte do Estado. Entretanto, como todo direito, o direito de protestar não tem caráter absoluto, ele encontra limites no seu exercício, tanto internamente, como relacionado aos direitos exercidos por outros agentes sociais.
Dessa feita, pretende-se aqui analisar os direitos envolvidos nesse forte instrumento de participação popular e quais os limites inerentes a ele.
2. Protesto: âmbito individual e coletivo
O instrumento do protesto abrange dois âmbitos que se relacionam intimamente, e que possibilitam a sua formação dentro do seio social. Por um lado, verifica-se o âmbito individual, que se consubstancia na liberdade de manifestação de pensamento, por outro denota-se o seu âmbito coletivo erigido no direito de reunião.
Assim, do ponto de vista jurídico, o instrumento do protesto é formado pelo direito de manifestação de pensamento e o direito de reunião.
Ao se analisar os dois âmbitos que comportam o instrumento do protesto popular, denota-se claramente o seu papel essencial na estrutura do Estado Democrático de Direito. Não se pode falar em democracia sem a possibilidade de manifestar o pensamento e reunir-se em espaços públicos para a sua propagação.
2.1. Âmbito individual: direito de manifestação de pensamento
Por ser o homem dotado da característica de sociabilidade, é natural o interesse em propagar seu pensamento, nesse instante estar-se-á diante do momento exterior do pensamento, que se revela através da liberdade de manifestação de pensamento, que nada mais seria do que um direito de propagar suas opiniões, que se encontravam no pensamento, sob a forma de valores, concepções e crenças.
Na realidade, a liberdade de pensamento se torna concreta a partir desse instante, quando é permitido ao indivíduo a possibilidade de externar seu pensamento.
A liberdade de manifestação de pensamento encontra guarida no artigo 5º, inciso IV da Constituição Federal de 1988.
2.2. Âmbito coletivo: direito de reunião
O direito de reunião é um complemento ao direito de manifestação do pensamento. Na medida em que é permitido ao indivíduo externar seu pensamento, é também permitido ouvir e assimilar o pensamento externado.
Sobre a amplitude do direito de reunião, assim aduz Alexandre de Moraes:
“O direito de reunião é um direito público subjetivo de grande abrangência, pois não se compreenderia a liberdade de reuniões sem que os participantes pudessem discutir, tendo que se limitar apenas ao direito de ouvir, quando se sabe que o direito de reunião compreende não só o direito de organizá-la e convocá-la, como o de total participação ativa.”[1]
O direito de reunião encontra-se albergado sob o manto constitucional no artigo 5º, inciso XVI da Constituição Federal de 1988.
3. Protestos: limites
O direito de manifestação de pensamento e o direito de reunião que formam o núcleo dos protestos populares tem envergadura de direitos fundamentais.
Apesar de sua relevância no ordenamento jurídico, os direitos fundamentais não são ilimitados, uma vez que, muitas vezes, para sua realização no plano social, é necessária a imposição de balizas, assegurando dessa forma aos outros o gozo de seus direitos e a própria manutenção da paz social.
Essas limitações são originadas dentro da Constituição, albergando o próprio âmbito da proteção constitucional, de modo a impedir certas formas ou modos de seu exercício em sentido absoluto.
As limitações podem vir expressas e diretamente previstas na Carta Constitucional (restrição imediata). Essa é a hipótese do direito de reunião, o artigo 5º, inciso XVI aduz que o direito de reunir-se é livre, com a restrição de que seja pacífica, sem armas, não frustre outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.
Conforme atesta Canotilho[2], as normas dessa natureza têm estrutura dúplice: de garantia, pois garantem a proteção a determinado direito; e restritivas, porque estabelecem no próprio preceito constitucional os limites imediatos de sua proteção.
Há, ainda, as limitações só determináveis por meio de interpretação, estando implícitas no texto constitucional, são as limitações imanentes ou “limites constitucionais não escritos”[3]. Seriam modos atípicos ou circunstâncias especiais do exercício de direitos fundamentais que a Constituição não alberga sob forma de proteção, devendo-se concluir pela total exclusão sem condições ou reservas.
No caso dos protestos, não se pode invocar a liberdade de manifestação de pensamento ou de reunião para depredar o patrimônio alheio ou justificar o uso de artefatos que possam causar dano em outras pessoas. Tais situações não restariam albergadas pelo manto da proteção constitucional dada ao direito de protesto.
Os limites imanentes, muitas vezes, são entendidos como colisão de direitos, mas, na realidade, não se trata do exercício de um direito fundamental que colida com outro, mas sim da distorção do exercício de um direito, como se isso fosse possível pela Carta Magna.
Por outro lado, deve-se aqui atentar para a aplicação do Princípio da Proteção do Núcleo Essencial, de modo a evitar que determinadas restrições, sob o fundamento de que se tratam de exercício anômalo do direito, acabem por aniquilar completamente o conteúdo do direito fundamental:
De ressaltar, porém, que, enquanto princípio expressamente consagrado na Constituição ou enquanto postulado constitucional imanente, o princípio da proteção do núcleo essencial destina-se a evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental decorrente de restrições descabidas, desmesuradas ou desproporcionais.[4]
É aí que reside o perigo do disciplinamento legal que o Estado pretendia fazer com a edição de uma lei que estabelecia os parâmetros para a regulamentação dos protestos populares.
Sob o manto de delimitar as balizas necessárias para o exercício do direito de protesto, o Estado estava realizando uma verdadeira restrição desproporcional e indevida no direito a ser regulamentado, aniquilando assim o conteúdo do direito fundamental.
Por fim, cabe aqui ressaltar a possibilidade concreta e real de colisão entre direitos fundamentais.
Muitas vezes, o exercício de um direito fundamental por parte do titular acaba se chocando com o direito exercido por outro indivíduo, ou mesmo por bens jurídicos que digam respeito à comunidade, restando a necessidade de se encontrar um ponto de equilíbrio entre o exercício dos dois, com a imposição de limites para que ambos possam coexistir, trata-se da colisão de direitos fundamentais.
Não raras vezes, o direito de protesto entra em rota de colisão com o direito de propriedade, o direito de locomoção e outros relacionados direta ou indiretamente.
No caso dos protestos populares, pode ocorrer um choque entre um direito fundamental e outros valores ou bens relacionados a interesses relevantes da comunidade, também protegidos constitucionalmente.
A colisão ocorre ainda quando se verifica o choque entre um direito fundamental de um titular e o direito fundamental de outro titular.
A colisão do direito de protesto e outros direitos correlacionados será solucionada em sede da averiguação do caso concreto, através do mínimo sacrifício dos dois direitos postos. Nesse sentido são as palavras de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires e Paulo Gonet Branco: “É importante perceber que a prevalência de um direito sobre o outro se determina em função das peculiaridades do caso concreto. Não existe um critério de solução de conflitos válido em termos abstratos”.[5]
Para essa resolução, o julgador se valerá dos princípios da unidade da constituição, da concordância prática, da máxima efetividade, sobretudo, o da proporcionalidade.
A proporcionalidade, com os seus três subprincípios: da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, norteará o julgador no sentido de que a medida se conforme ao fim almejado, que se averigúe a necessidade da medida para a conservação do próprio direito ou de outro, e, principalmente, sobre a razoabilidade entre o meio utilizado e o fim perseguido, concordando os bens em conflito.
Assim, na hipótese de uma real colisão entre os direitos postos, a sua resolução só ocorrerá na averiguação do caso concreto. Quando não presentes as hipóteses de restrição imediata ou limites imanentes, o aplicador do direito apenas poderá fazer um juízo de valor diante das situações dispostas concretamente, averiguando os limites a serem impostos aos direitos postos em rota de colisão, tentando evitar ao máximo o aniquilamento de um dos dois direitos.
4. Conclusão
Os protestos populares que assolaram o Brasil nos últimos tempos encontram guarida na carta constitucional, consubstanciado no direito de livre manifestação do pensamento e no direito de reunião, e sobretudo, fazem parte da estrutura do sistema democrático.
Entretanto, ainda que sejam considerados direitos fundamentais, não podem ser considerados ilimitados.
Seus limites encontram balizas nas restrições impostas diretamente no texto constitucional, bem como naquelas decorrentes da interpretação do seu âmbito de abrangência, entretanto na hipótese de uma real colisão de direitos fundamentais, o principal limite a ser imposto só será encontrado no caso concreto.
Referências bibliográficas:
BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle da constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 2ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional. 6ªed. rev. Coimbra: Almedina, 1995.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21ª ed. São Paulo: Jurídico Atlas, 2006.
[1] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21ª ed. São Paulo: Jurídico Atlas, 2006, p. 69.
[2] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional. 6ªed. rev. Coimbra: Almedina, 1995, p. 605.
[3] Nomenclatura exposta por Suzana de Toledo Barros, in O princípio da proporcionalidade e o controle da constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 2ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p.160.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 316
[5]MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p.286.
Procuradora Federal. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Pós- graduada em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRISCILA COELHO DE BARROS ALMEIDA SANT`ANA, . Protestos populares: âmbito e limites Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jul 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40247/protestos-populares-ambito-e-limites. Acesso em: 23 dez 2024.
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