Introdução
O presente estudo objetiva analisar a impossibilidade da Administração Pública vedar o acesso às carreiras públicas, mediante concurso público, ao portador de doenças não incapacitantes e não previstas em lei, mas apenas no edital, tal como a diabetes mellitus e a hipertensão arterial
Desenvolvimento
A Constituição Federal assegura o direito à igualdade no caput do artigo 5º, sendo um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito.
O princípio da igualdade se exaure no seu próprio enunciado, sendo, pois norma de aplicabilidade e eficácia imediata.
Como ensina Alexandre de Moraes, o princípio da igualdade se opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social.
Prossegue o ilustre doutrinador explicando que para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos.(Grifos nossos)
O princípio da razoabilidade é um método de valoração dos atos do Poder Público no sentido de se aferir se os mesmos estão de acordo com os valores fundamentais do ordenamento jurídico, dentre os quais, a justiça e a igualdade.
Os atos da Administração Pública devem, assim, estar de acordo com os valores éticos jurídicos contidos na Constituição Federal, supondo-se razoável o que seja conforme a razão.
O artigo 37, inciso I da Constituição Federal determina que os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei... Complementando a norma prevista no inciso I, o inciso II do artigo 37 determina que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
A interpretação teleológica das normas inscritas no artigo 37, incisos I e II da Constituição Federal apresentam a inafastável conclusão no sentido de que o objetivo do legislador constitucional foi assegurar o ingresso nos cargos, empregos e funções publicas dos candidatos mais capacitados ao desempenho das funções atinentes, sem qualquer diferença acerca dos critérios de admissão para os candidatos.
O artigo 39, §3º da Constituição Federal determina que a lei pode estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo exigir.
O artigo 39, §3º da Constituição Federal assim, relativiza a aplicação do princípio da igualdade previsto no artigo 5º, na medida que possibilita ao legislador estabelecer requisitos diferenciados de admissão para determinado cargo.
A possibilidade da lei estabelecer requisitos diferenciados não pode se distanciar dos princípios da igualdade e da razoabilidade, criando assim diferenças entre os candidatos de forma arbitrária ou discriminatória. O requisito diferenciador deve encontrar guarida no princípio da razoabilidade, ou seja, o requisito deve ser exigência razoável frente ao censo comum para a investidura em determinado cargo, conformando-se ética e juridicamente perante o ordenamento jurídico.
Importante observar que apenas a lei pode estabelecer requisitos diferenciados, mas, obviamente, tal diferenciação deve ser razoável, objetiva e justificável perante critérios de juízo geralmente aceitos, sob pena de se desrespeitar os princípios da igualdade e da razoabilidade.
O artigo 5º da Lei nº 8.112/91 determina que além dos demais requisitos necessários para a investidura em cargo público, o candidato deve possuir aptidão física e mental, bem como permite que as atribuições do cargo podem justificar a exigência de outros requisitos estabelecidos em lei:
Art. 5o São requisitos básicos para investidura em cargo público:
I -a nacionalidade brasileira;
II - o gozo dos direitos políticos;
III - a quitação com as obrigações militares e eleitorais;
IV - o nível de escolaridade exigido para o exercício do cargo;
V - a idade mínima de dezoito anos;
VI - aptidão física e mental.
§ 1o As atribuições do cargo podem justificar a exigência de outros requisitos estabelecidos em lei.
§ 2o Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso.
§ 3o As universidades e instituições de pesquisa científica e tecnológica federais poderão prover seus cargos com professores, técnicos e cientistas estrangeiros, de acordo com as normas e os procedimentos desta Lei. (Incluído pela Lei nº 9.515, de 20.11.97)
Assim, caso exista razão plausível que a justifique, é possível a exigência de critérios específicos para fins de investidura em determinado cargo público, tal como a exigência de sexo masculino para agentes penitenciários que irão atuar em estabelecimentos prisionais masculinos. Ora, tal exigência é razoável, não havendo que se falar em ofensa ao princípio da igualdade e da razoabilidade, posto que existe uma correlação lógica entre o fator diferencial (sexo masculino) e a exigência necessária para o exercício do cargo.
Dessa forma, exige-se que a lei imponha a existência de critérios específicos para a exigência de requisitos diferenciados de admissão e, apenas é legítima a distinção, quando a natureza do cargo exigir.
Ora, no caso do exame médico para investidura no cargo de policial federal, por exemplo, há a vedação para o portador de diabetes mellitus que se encontra apenas no edital do certame, não em lei, sendo que, na ausência de lei específica se aplica a Lei nº 8.112/91, a qual, em seu artigo 186, §1º, não elenca a diabetes entre as autorizadoras de concessão de aposentadoria por invalidez ao servidor público:
Art. 186. O servidor será aposentado:
I - por invalidez permanente, sendo os proventos integrais quando decorrente de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, especificada em lei, e proporcionais nos demais casos;
§ 1o Consideram-se doenças graves, contagiosas ou incuráveis, a que se refere o inciso I deste artigo, tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira posterior ao ingresso no serviço público, hanseníase, cardiopatia grave, doença de Parkinson, paralisia irreversível e incapacitante, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, estados avançados do mal de Paget (osteíte deformante), Síndrome de Imunodeficiência Adquirida - AIDS, e outras que a lei indicar, com base na medicina especializada.
Como é cediço, o princípio da igualdade impede que o legislador adote critérios de distinção para pessoas que se encontrem no mesmo plano para o exercício de determinada tarefa. Citamos o exemplo de um candidato que, aprovado nas provas objetivas e nos testes físicos, venha a ser reprovado no exame médico em razão de pressão alta, sendo que essa doença, apesar de crônica, é passível de controle por medicamentos. Os candidatos não podem sofrer essa descriminação posto que foram aprovados nos critérios objetivos para o exercício do cargo, bem como o fato de sofrer de pressão alta em nada afeta o desempenho de sua atividade.
A eliminação do certame não é razoável, posto que o fato de ser portador de determinada doença em nada impedirá o desempenho normal das suas atividades, sendo, portanto, o ato administrativo de eliminação do certame passível de correção pelo Poder Judiciário.
É de se ressaltar, ainda, caso considerado correto o entendimento da Administração no sentido de se considerar determinada doença como causa de eliminação do certame, o qual ocorre em razão da incapacidade do candidato para o exercício do cargo, significa que os servidores públicos portadores dessas doenças já investidos nos diversos cargos da Administração Pública, bem como os trabalhadores em geral portadores dessa doença, possuem direito inegável a concessão de aposentadoria por invalidez, posto que se tratam de hipóteses idênticas, quais sejam, a proibição do ingresso em razão da doença, a qual a Administração considera incapacitante, e a continuidade do exercício do cargo em razão da mesma doença.
Finalmente, não há fator discriminatório mais evidente que impossibilitar o acesso a determinado cargo pelo simples fato da pessoa ser portadora de determinada doença, a qual, aliás, não há impede de levar uma vida ativa através do exercício de atividades profissionais que lhe garantam a subsistência, sendo tal conduta da Administração ofensiva aos princípios da igualdade e da razoabilidade, bem como ofensivo a dignidade da pessoa humana, posto que veda acesso injustificado do candidato ao mercado de trabalho, valores estes fundamentais da República Federativa do Brasil previstos no artigo 1º da Constituição Federal.
Não sendo a doença causa de concessão de aposentadoria por invalidez ou, ainda, doença que evidentemente impossibilite a pessoa para o exercício de determinada atividade, não encontra amparo no ordenamento jurídico o impedimento para a investidura do cargo.
Conclusão
Diante do exposto, pode se concluir que a exclusão de candidato do certame para ingresso em carreira pública com fundamento em doença não prevista em lei é conduta arbitrária da administração, bem como eventual disposição legal que inclua determinada doença como fator impeditivo para a investidura do cargo deve encontrar respaldo no princípio da razoabilidade, posto que a doença deve constituir óbice insuperável para o desempenho das funções exigidas para o cargo, sob pena dessa disposição legal ofender o princípio constitucional da igualdade previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal.
Bibliografia
(1) Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo. 22ª edição. P. 32.
Procurador Federal e Especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MICCHELUCCI, Alvaro. Concurso Público. Restrição ao ingresso em determinadas carreiras típicas de Estado em razão do candidato ser portador de doenças não incapacitantes e não previstas em lei. Ofensa ao princípio da igualdade e da razoabilidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jul 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40274/concurso-publico-restricao-ao-ingresso-em-determinadas-carreiras-tipicas-de-estado-em-razao-do-candidato-ser-portador-de-doencas-nao-incapacitantes-e-nao-previstas-em-lei-ofensa-ao-principio-da-igualdade-e-da-razoabilidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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