Resumo: O estudo empreende investigação acerca da aplicabilidade da regra do stare decisis ao direito brasileiro, analisando argumentos favoráveis e contrários à importação do modelo. Conclui pela viabilidade e conveniência da adoção do instituto, pelas razões que apresenta.
Abstract: The study undertakes research into the applicability of the rule of stare decisis to Brazilian law, reviewing for and against arguments about the importing of the template. Concludes defending the feasibility and desirability of adopting the institute, because of the reasons which explains.
Sumário: 1. Introdução. 2. Compatibilidade entre civil law e stare decisis. 3. Discussão acerca da conveniência da vinculação a precedentes. 3.1. Argumentos contrários ao modelo do stare decsis. 3.1.1. Rigidez . 3.1.2. Complexidade. 3.1.3. Distinções ilógicas. 3.1.4. Limitação ao livre convencimento do magistrado. 3.1.5. Óbice à realização da isonomia material. 3.1.6. Violação à separação dos Poderes. 3.1.7. Ofensa ao princípio do juiz natural. 3.1.8. Supressão da garantia do acesso à justiça. 3.2. Vantagens do sistema de precedentes obrigatórios. 3.2.1. Segurança jurídica, previsibilidade e estabilidade. 3.2.2. Celeridade e racionalização do duplo grau de jurisdição. 3.2.3. Desestímulo à litigiosidade. 3.2.4. Economia material e processual. 3.2.5. Tutela da confiança. 3.2.6. Coerência. 3.2.7. Aprimoramento do trabalho decisório do juiz. 3.2.9. Promoção da igualdade material. 4. Conclusão. Notas. Referências.
O regramento processual civil brasileiro, sobretudo na última década, tem sido objeto de sucessivas alterações por iniciativas legislativas que, na busca pela efetividade do processo, tencionam desafogar as instâncias superiores, cuja capacidade de produção judiciária tem beirado o limite do factível. Tais inovações, dentre as quais se destacam o julgamento liminar de improcedência do pedido, o indeferimento liminar dos recursos especiais e extraordinários, o julgamento unificado dos recursos especiais repetitivos, a repercussão geral em recurso extraordinário, a súmula vinculante e as faculdades outorgadas ao Supremo Tribunal Federal no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade, acabaram por impingir ao sistema jurídico brasileiro características cada vez mais aproximadas às do hodierno modelo anglo-saxônico, ou da common law, em que vige a regra do precedente vinculante, ou stare decisis. Com efeito, na medida em que se fortalece a jurisprudência dos tribunais superiores, perde valor a literalidade do texto legal, que se torna, paulatinamente, fonte subsidiária para a resolução de problemas que demandem a aplicação do direito.
Não obstante o claro movimento no sentido de uma doctrine of precedent tal como verificada em Inglaterra e Estados Unidos da América, no Brasil, ainda é permitido aos magistrados em geral decidir em desconformidade com as orientações jurisprudenciais dos tribunais a que estejam vinculados e, até mesmo, desconsiderar entendimentos sumulados dos tribunais superiores e do próprio Supremo Tribunal Federal, sendo-lhes vedado assim agir, tão somente, em face de súmula vinculante, editada pelo STF no exercício de jurisdição constitucional. Logo, justifica-se a perquirição acerca da conveniência da importação da regra do precedente vinculante, a qual encerra uma promessa de maior igualdade e previsibilidade do direito aos jurisdicionados.
Neste estudo, efetua-se uma discussão acerca da viabilidade da aplicação, ao direito brasileiro, do instituto do precedente vinculante, nos moldes em que é utilizado no sistema anglo-saxônico. Trata-se de sistemática que se diferencia em muito do instituto da súmula vinculante, implantado no Brasil: enquanto a súmula é enunciado abstrato, que se destaca da demanda ou demandas originárias, o precedente é o próprio feito-paradigma, com todas as suas especificidades fáticas, [1] pelo que se torna tanto mais racional quanto justa a aplicação ou afastamento da tese jurídica subjacente a demandas idênticas ou que dela se diferenciem; ao passo que, no Brasil, a súmula vinculante não obriga o próprio tribunal que a emanou, o precedente vinculante, nos regimes em que vige o stare decisis, fica vinculado à decisão prolatada, salvo revisão de tese; enquanto no Brasil é somente o STF quem edita provimento vinculante, sob a égide da rule of precedent, tribunais locais e mesmo magistrados singulares, em certas circunstâncias, são aptos a criar e obrigados a respeitar precedentes dotados de força vertical e horizontal.
Destarte, válida a reflexão aqui induzida, acerca da aplicabilidade da utilização da regra do precedente – e não da súmula – vinculante ao direito brasileiro. No decorrer do estudo, são analisados argumentos favoráveis e contrários ao regime do stare decisis, trabalhados tanto pela doutrina nacional quanto estrangeira.
Diferentemente do que permeia boa parte do imaginário jurídico, common law não é sinônimo de stare decisis. A common law foi um regime de direito surgido na Inglaterra, criado, sobretudo, pela ação dos Tribunais Reais de Justiça (ou Tribunais de Westminster), após a ocupação normanda de 1066 d. C. Tratava-se de um conjunto normas consuetudinárias que regiam as relações sociais e vieram a ser reconhecidas e aplicadas pela jurisdição real, que lhes conferiu forma e estrutura, contribuindo para a sistematização e divulgação de seu conteúdo (DAVID, 1972, p. 327-331). Por sua vez, o stare decisis, do latim stare decisis et non quieta movere, “mantenha-se a decisão e não se moleste o que foi decidido” (MIRANDA, 2006, p. 12), é a regra conhecida na Inglaterra como doctrine of precedent (ou rule of precedent), que diz respeito à vinculação do órgão jurisdicional à decisão judicial pretérita e, em sua forma mais rigorosa (doctrine of absolutely binding precedent) somente se verificou a partir do século XIX (BUSTAMANTE, 2012, p. 83). Isto é: não somente há uma distinção conceitual entre common law e stare decisis como houve também um longo período em que o direito jurisprudencial inglês não conviveu com o preceito vinculação formal aos precedentes judiciários.
É evidente, contudo, que há uma relação de consequência entre ambos: na medida em que o direito inglês foi primordialmente construído pela atividade jurisdicional, dada a inexistência ou insuficiência de um conjunto de normas de direito material dotadas de generalidade e abstração, fazia-se necessário, tanto por questões de isonomia na administração da justiça quanto por razões de contenção do arbítrio judicial, que o direito criado pela atividade dos tribunais fosse aplicado de forma lógica e coerente, o que implicava a necessidade de uniformidade nos julgamentos de causas idênticas. A regra do stare decisis, pois, no direito anglo-saxônico, foi decorrência lógica da formação histórica desse sistema, o qual, estruturado prioritariamente sobre regras de processo, relegava aos magistrados a construção do direito material pela dicção da solução justa para os casos que se lhes apresentassem, sendo a regra da vinculação às decisões anteriores o principal elemento apto a conferir previsibilidade à função jurisdicional e a conter o amplo poder outorgado aos juízes.
Ademais, o stare decisis não foi uma construção exclusiva do sistema anglo-saxônico ou da common law. Diversos Estados nacionais, no período de formação do Estado Moderno (séculos XVI a XVIII), consideraram a vinculação aos precedentes judiciais o meio mais eficaz para se alcançar a pretendida uniformização do ius commune europeu. Exemplos de países de tradição romanista que se utilizavam do sistema de precedentes vinculantes foram a Toscana (século XVII), a Santa Sé (séculos XVI e XVII), o Reino de Nápoles (séculos XV e XVI), o Piemonte e a Savoia (século XVIII), a Baviera (século XVIII) e os Estados Sardos (séculos XVIII e XIX), e já no século XIX, o Estado de Sachsen-Weimar, entre os anos 1816 e 1831, e a própria França, em 1836 (BUSTAMANTE, 2012, p. 78-80).
Logo, não há que se confundir common law com stare decisis. A dicotomia, que persiste por questões conceituais e, sobretudo, por razões históricas, é entre os sistemas romano-germânico e anglo-saxônico, isto é, entre civil law e common law, e não entre civil law e stare decisis, os quais, historicamente, não aparentam qualquer incompatibilidade do ponto de vista técnico-jurídico.
Superada a questão acerca da compatibilidade da regra do stare decisis com o regime do civil law, cumpre analisar os argumentos pontuados pela doutrina nacional e estrangeira a favor e contra a sistemática da vinculação ao precedente judicial. A comparação se mostra de extrema relevância, tanto para temperar a perspectiva, induzindo a uma reflexão por alternativas que melhor se adequem à realidade brasileira, quanto para afastar eventual ingenuidade fundada na supervalorização do modelo, tendo em vista o apelo que causa nos Trópicos tudo quanto provenha da metade ao norte da linha do Equador.
Nesse sentido, esclarece-se, inicialmente, que, nos países de tradição saxônica, há séculos, discute-se a conveniência da regra do stare decisis, persistindo até os dias atuais parcela da doutrina que tece duras críticas ao instituto. Nesta subseção, examinam-se os principais argumentos a favor e contra a estruturação de um sistema de Direito a partir da vinculação às decisões judiciais pretéritas.
A doutrina do precedente obrigatório, como, de resto, ocorre com toda obra humana, possui desvantagens reais que correspondem ao “preço” a ser pago pelos benefícios dela advindos. A par desses inconvenientes, elenca a doutrina prejuízos falaciosos que não resistem a um exame atento da essência do fenômeno jurídico, assim considerados porque verificáveis nos diferentes sistemas de Direito, inclusive nos alheios à regra do binding precedent. A seguir, comentam-se as características ordinariamente apontadas como negativas do regime da vinculação judicial.
Um primeiro problema relacionado pela doutrina como advindo da aplicação da teoria do stare decisis diz respeito à rigidez (ridigity) do sistema baseado em precedentes vinculantes, o qual, nos moldes em que instituído nos países de common law, conduziria a certo grau de engessamento do direito positivo (SOUZA, 2013, p. 284). Afirma-se que na Inglaterra, por exemplo, as decisões formuladas pela House of Lords são de cumprimento obrigatório pelos magistrados de primeiro grau e pelas cortes de apelação, sendo certo, contudo, que pouquíssimas são as causas que chegam a julgamento pelo órgão de cúpula do Judiciário inglês. Isso significa que, não obstante a fixação de uma tese vinculante à jurisdição inferior, não há amplitude nos meios de acesso à corte suprema para a revisão ou mitigação do alcance do julgado, o que contribui para certa imobilização da jurisprudência. Por essa razão, na doutrina do common law, é comum falar-se em rigidez (ridigity) e morosidade no desenvolvimento (slowness of growth) como aspectos indesejáveis do sistema jurídico fundado em precedentes vinculantes.
Há que se examinar com cautela, porém, a referida afirmação. Em primeiro lugar, como já visto neste estudo, há instrumentos à disposição dos magistrados ingleses e norte-americanos para a flexibilização dos precedentes emanados da jurisdição superior. O poder de distinguir, sempre presente ao órgão judicante, permite que seja afastada a aplicação de determinado precedente, desde que lastreada a decisão em razoável fundamentação que aponte a existência de especificidades no caso em exame. Nesse sentido, Marcelo Souza coloca que
os sistemas que adotam a teoria do stare decisis têm também uma faixa de flexibilidade, que é maior nos Estados Unidos do que na Inglaterra. Entre outras coisas, há, primeiramente, o poder de distinguir, que, usado corretamente, dá aos tribunais liberdade para se afastar de decisões anteriores; ademais, mesmo que seja uma exceção, há a possibilidade do overruling, que servirá para, revogado um precedente considerado incorreto, desenvolver o Direito. O exemplo dos Estados Unidos serve para comprovar que a existência da vinculação aos precedentes dentro de um sistema jurídico não quer significar imutabilidade perpétua. Na verdade, havendo uma decisão anterior de seguimento obrigatório, o que está vedado ao julgador é apartar-se dela arbitrariamente; todavia, é possível afastar-se do precedente mediante o emprego de uma fundamentação suficiente e razoável. (SOUZA, 2013, p. 284)
Ademais, não se pode conceber que um precedente – ao menos uma decisão judicial que mereça ser assim qualificada, por enfrentar todos os argumentos jurídicos atinentes a determinada matéria – deva, após intenso esforço hermenêutico do órgão jurisdicional incumbido de sua produção, ser revisto ou cancelado ao sabor das circunstâncias. O precedente, ele mesmo, deve ser interpretado e aplicado com ponderação pelos juízes de inferior instância, devendo ser considerado qual premissa ou norma geral que esclarece os princípios aplicáveis a determinada situação de fato. Deve o precedente, salvo raríssimas exceções, perdurar por tempo razoável, pois, nesses sistemas, é a decisão judicial, no mais das vezes, a fonte originária da norma jurídica. Nessa ordem de ideias, a provocação da corte que editou o paradigma para fins de overruling somente deve ser admitida quando inequívoca a alteração das condicionantes sociais que deram sustentação à tese infirmada. É o que afirma Luiz Guilherme Marinoni, in verbis:
os precedentes, num sistema que se funda no seu respeito, somente podem ser revogados excepcionalmente, quando o desenvolvimento da doutrina demonstra que o precedente está indiscutivelmente equivocado ou quando surgem novos valores ou novas circunstâncias fáticas – como aquelas advindas da evolução tecnológica – que impõem sua redefinição. É claro que os precedentes não podem ser revogados apenas porque a corte não gosta de seus fundamentos ou entende que outros seriam mais apropriados, ou mesmo supõe que tais fundamentos não são adequados ou válidos. Para a revogação de um precedente, a evolução da doutrina deve ter chegado a um estágio em que o fundamento que o ancorava não seja mais sustentável nos tribunais. Do contrário, não haveria sentido em se falar em força obrigatória dos precedentes e em estabilidade e segurança por ela proporcionadas. (MARINONI, 2013, p.191-192)
De fato, na Inglaterra, desde o Practice Statement 1966 e, nos Estados Unidos, desde sua formação, possuem as cortes respectivas, não obstante a adoção da regra do binding precedent, a possibilidade de alterarem suas disposições quando reconhecerem que uma aderência muito rígida ao precedente pode levar à injustiça no caso concreto ou restringir excessivamente o devido desenvolvimento do direito. Outrossim, há, sempre, para a jurisdição ordinária, a possibilidade de valer-se do distinguishing o afastamento do precedente ou de suscitar, a própria autoridade, a revisão da tese fixada no precedente, por reputá-la caduca ou injusta na espécie. Por conseguinte, apesar de pontuado pela doutrina, o argumento de que o stare decisis importa em necessária rigidez do Judiciário não convence, compreendo-se importar, no mais das vezes, certa artificialidade na técnica de afastamento do paradigma.
Aqui, diversamente, está-se diante de um problema real dos sistemas jurídicos fundados em precedentes. Por não utilizarem como instrumentos normativos enunciados de jurisprudência ou fórmulas legislativas sintéticas, mas casos judicializados (cases), com suas respectivas decisões judiciais, o repertório oficial do direito positivo se revela extremamente complexo, por comportar, literalmente, milhares de precedentes relevantes, cuja ratio decidendi não se encontra explicitada, figurando em meio a declarações incidentais (obiter dictum) e descrições de fato, além de fundamentos e votos divergentes, não acolhidos pela maioria dos integrantes do tribunal. Segundo Marcelo Alves Dias de Souza:
A complexidade da doutrina do stare decisis decorre, primeiramente, da seguinte circunstância: diante da existência, somente na Inglaterra de alguns anos atrás, de ‘aproximadamente meio milhão de casos reportados, não é fácil achar todos os precedentes relevantes, mesmo com um banco de dados computadorizado.’ Por outro lado, a própria doutrina, como foi construída, é complexa. Só para ficar em um ponto: muitas vezes, em determinado precedente, não há uma distinção precisa entre os meros obiter e a ratio decidendi do caso. (SOUZA, 2013, p. 285)
Isto é: um sistema de precedentes judiciais é complexo por natureza. Tal ocorre porque, a se adotar estratégia diversa, consistente na catalogação dos fundamentos essenciais dos julgados, incorre-se no equívoco de desvincular a tese jurídica dos indissociáveis elementos de fato que lhe deram origem. Note-se que essa separação é extremamente sensível em um sistema, e para um determinado campo da conduta humana, que carece de fontes normativas de base legislativa. Se o direito foi criado pela atividade dialética dos tribunais, a partir de específicas circunstâncias de fato, seria uma violação à própria forma de produção da norma jurídica destacá-la dos demais elementos informativos, dando azo a uma ulterior aplicação equivocada que, por desconsiderar o modo de produção da norma, seria vista como arbitrária. O problema é que a satisfação desse requisito ocasiona elevação substancial do volume de informações submetidas à assimilação do profissional do Direito, o que torna complexa e custosa a atividade nos planos público e privado, a exemplo da jurisdição e da assessoria jurídica particular.
No Brasil, a complexidade na utilização de precedentes é mitigada pelo uso de enunciados sumulados e ementários de jurisprudência, os quais, além de facilitarem a visualização da ratio decidendi, favorecem o trabalho de pesquisa jurídico-dogmática, pela redução do campo de busca submetido ao crivo dos juristas. Não obstante o impacto negativo dessa iniciativa, no caso brasileiro, seja inferior ao que ocorre nos países de common law, dada a forte presença da legislação como elemento norteador dos princípios jurídicos, capaz de suprir, em certa medida, a ausência dos demais elementos do precedente, a desvinculação dos fundamentos essenciais dos fatos e circunstâncias da demanda, também entre nós, produz efeitos nefastos, tal como a aplicação errônea do prejulgado, devendo-se olhar com reservas quaisquer estratégias que prometam uma redução substancial da complexidade em um sistema de precedentes.
Trata-se do estímulo alegadamente efetuado pelo regime do stare decisis para que os magistrados se apeguem a elementos de fato nem sempre relevantes para legitimar o afastamento de determinado precedente vinculante, efetuando, por conseguinte, operações de distinguishing nitidamente inconsistentes (SOUZA, 2013, p. 286). Na medida em que o formalismo exacerbado, caracterizado pelo seguimento integral de um precedente supostamente aplicável, poderia proporcionar injustiça no caso concreto, juízes e tribunais de common law acabam por recorrer, reiteradamente, à técnica das distinções, operando, não raro, vasto número delas em relação a um único precedente. A par das exceções necessárias e procedentes, afirma a doutrina que o stare decisis estimula a utilização de distinções ilógicas (ilogical distinctions), contribuindo, pois, para a quebra da coerência do sistema.
A nosso ver, as distinções ilógicas, se efetivamente existentes, configuram um problema de natureza funcional, devendo a prática ser rechaçada na forma do controle da atividade jurisdicional. Vale dizer: se um fato não é relevante e, por conseguinte, a distinção nele pautada seria “ilógica”, não cabe distinguishing na espécie, devendo ser aplicado o precedente. Somente os fatos relevantes podem dar azo à distinção. Ocorre que, em um sistema de direito jurisprudencial, em que as regras constantes do precedente são muito mais específicas que a fórmula geral legislativa, o número de distinções, de fato, deve ser elevado, o que resulta no já referido problema da complexidade – diverso, porém, da ausência de lógica supostamente estimulada pelo sistema.
Se o magistrado não concorda com a ratio decidendi do prejulgado aplicável e, violando a autoridade do jurisdição superior e a racionalidade do inteiro regime de Direito, deixa de segui-lo com fundamento em distinção logicamente inconsistente, está-se diante de artifício voltado a privilegiar a autonomia do julgador em detrimento da isonomia, da celeridade e da economia processuais, na medida em que uma decisão assim produzida, muito provavelmente, há de ser reformada pelas instâncias recursais. Se o caso é novo, deve ser criado novo precedente, e se a situação já foi objeto de apreciação pelo Judiciário, mas os valores sociais, a evolução científico-tecnológica ou outras circunstâncias impõem a revisão da tese jurídica, deve ser proposto o overruling. Não há espaço para distinções inconsistentes no sistema de precedentes e, onde quer que essa prática se manifeste, não deve ser compreendida como intrínseca à regra do stare decisis, que possui instrumentos lógicos hábeis à atualização e desenvolvimento do ordenamento jurídico. [2]
3.1.4. Limitação ao livre convencimento do magistrado
Outro argumento procedente que pesa em desfavor do stare decisis é o de que o regime de precedentes obrigatórios reduz a autonomia dos membros do Poder Judiciário situados nos níveis hierárquicos ordinários. De fato, a rule of precedent é incompatível com o fato de o juiz decidir, única e exclusivamente, à luz da lei e da Constituição, de acordo com os ditames de sua consciência. A vinculação a precedentes impõe ao magistrado o dever de interpretar determinada norma (ou, no common law, decidir determinada demanda) de forma idêntica à que foi fixada pela corte prolatora do precedente obrigatório, no que reduz significativamente a liberdade do julgador de decidir consoante o seu sentimento de justiça – sentido original do termo “sentença”, do latim, sentire, “sentir” (MACHADO, 2013, p. 1).
Não se pode ceder à ilusão, contudo, de que a sistemática transmuda o processo decisório de primeiro grau em simples mecânica de aplicação de um precedente ao caso em julgamento, perdendo o magistrado, por completo, a prerrogativa do livre convencimento motivado em matéria de direito. Diversos são os meios técnicos à disposição do juiz do common law para que este não aplique determinado precedente, ainda que vinculante, quando entenda que este não contribui para uma solução “justa” do caso concreto. Catherine Elliott e Frances Quinn, citados por Marcelo Alves Dias de Souza (2013, p. 288-289), relacionam as seguintes técnicas:
a) distinção do precedente com base em elementos fáticos – argumentação fundada na divergência de pontos significativos de fato entre o caso em julgamento e o paradigma;
b) diferenciação da questão de direito – afirmação de que a questão jurídica solucionada no precedente diverge da apresentada no caso atual;
c) atribuição de uma ratio decidendi bastante limitada ao precedente – na medida em que, no common law, é tarefa do intérprete delimitar, em relação ao prejulgado, os motivos essenciais dotados de força vinculante, é possível ao magistrado argumentar que determinadas partes da decisão não integram a ratio, não obrigando a jurisdição posterior por caracterizarem mero obiter dicta;
d) afirmação de que o precedente não possui ratio decidendi – como o órgão prolator do paradigma é colegiado, é possível que os julgadores, não obstante o acordo quanto ao resultado, tenham divergido com relação aos fundamentos jurídicos da decisão, caso em que, não havendo maioria em favor de determinada tese jurídica, pode-se arguir inexistência de motivação pacífica na decisão, sendo o precedente inservível;
e) argumentação de que o precedente é incompatível com decisão posterior de corte hierarquicamente superior e, por conseguinte, foi revogado;
f) declaração de que o precedente foi prolatado per incuriam – afirmação de que o tribunal, ao produzir o paradigma, desconsiderou lei ou precedente relevantes, não enfrentados em sua argumentação;
g) afirmação de que o precedente está desatualizado, em descompasso com o pensamento moderno – alegação de alteração das condicionantes sociais de ordem axiológica, prática e tecnológica, dentre outras, com prolação de decisão diversa em proposta de overruling pela jurisdição superior, competente para formalizar a revogação.
Evidente, pois, que o juiz do common law, não obstante a regra do binding precedent, permanece com amplo grau de liberdade para julgar de acordo com seu “sentimento” de justiça. O que não se admite é que, diante de demandas absolutamente idênticas, tanto do ponto de vista fático-jurídico quanto da perspectiva das condicionantes sociais (momento histórico, contexto político, quadro tecnológico, costumes e valores sociais), profira o magistrado resultado diverso do preconizado no paradigma tão somente porque discorda da tese jurídica fixada no precedente. Esse tipo de liberdade, de fato, não dispõe o juiz no regime do stare decisis. Tal restrição justifica-se pelo fato de que, se essa maleabilidade que a hermenêutica legal conferiu aos juízes do civil law é vantajosa por um lado, vez que confere aos magistrados um instrumento decisório a mais para a fundamentação de resultados pouco ortodoxos, eventualmente pretendidos por razões de justiça material, por outro, importa em, pelo menos, três graves problemas bastante conhecidos no Brasil: a insegurança jurídica (ausência de previsibilidade das decisões judiciais), a quebra da isonomia (adoção de soluções judiciárias distintas para casos idênticos, levadas às últimas consequências quando da formação da coisa julgada material) e a morosidade processual, fruto do desperdício de jurisdição das instâncias recursais, obrigadas a reiteradamente reformar decisões de órgãos judiciários de posição hierárquica inferior, os quais insistem em decidir contrariamente à orientação dos tribunais.
Nesse sentido, pondera Marinoni que as vantagens dessa limitação do poder judicial superam em muito as eventuais desvantagens. O argumento da isonomia, por si só, mostra-se suficiente à demonstração:
Partindo-se da premissa – fundante do Estado de Direito – de que os homens são iguais perante a lei e os tribunais – e, portanto, diante das suas decisões –, torna-se um paradoxo admitir que pessoas iguais, com casos iguais, possam obter decisões diferentes do Judiciário. Trata-se, bem vistas as coisas, de um absurdo, curiosamente ainda alimentado por alguns setores. Viola a igualdade e o Estado de Direito admitir que um caso, cuja questão já foi definida pelos tribunais, possa ser julgado de forma distinta por um dos órgãos do Poder Judiciário, quando, como todos sabem, a jurisdição é una. Ora, se não há dúvida de que o Judiciário, tomado em sua unidade, não pode atribuir vários significados à lei ou decidir casos iguais de forma desigual, restaria àqueles que sustentam que o juiz não pode se subordinar ao precedente o argumento de que o Judiciário pode e deve ter diversos entendimentos e decisões sobre a mesma lei e o mesmo caso, como se fosse um Poder irremediavelmente multifacetado. Ora, um organismo que tem manifestações contraditórias é, indubitavelmente, um organismo doente. Portanto, é preciso não confundir independência dos juízes com ausência de unidade, sob pena de, ao invés de se ter um sistema que racional e isonomicamente distribui justiça, ter-se algo que, mais do que falhar aos fins a que se destina, beira a um manicômio, onde vozes irremediavelmente contrastantes, de forma ilógica e improducente, digladiam-se. (MARINONI, 2013, p. 203-204)
De fato, não se pode aceitar que, em prol da facilitação da atividade judiciária (ou do favorecimento do ego dos julgadores), sofra a sociedade o prejuízo de conviver com um sistema jurisdicional incoerente e imprevisível e, por isso mesmo, dotado de uma desnecessária morosidade. Na ponderação de interesses, é evidente que devem prevalecer os valores que privilegiam a unidade lógica dos pronunciamentos do Poder Judiciário. Ademais, é de se ressaltar que a independência e a autonomia dos magistrados permanecem presentes nos sistemas de precedentes, pois continua a autoridade judicial livre para decidir conforme a persuasão que tenha racionalmente alcançado. É dado ao juiz, inclusive, além das inúmeras possibilidades de afastamento do paradigma, promover a revisão do precedente, quando entenda ser o momento de a corte competente superar a interpretação, porquanto plenamente justificada pelas circunstâncias. Não há que se falar, pois, em supressão da liberdade do julgador pelo stare decisis; há, no máximo, uma compreensível restrição de seu poder de estabelecer teses jurídicas dissonantes das já fixadas pelos órgãos recursais, o que se justifica em nome da racionalidade e economia processuais, da previsibilidade e estabilidade da função jurisdicional, da consequente celeridade do processo e da desejável igualdade de tratamento aos jurisdicionados.
Por último, destaque-se que é sempre possível ao julgador, não obstante decidir de acordo com o precedente, efetuar, no pronunciamento, a ressalva de seu entendimento pessoal, o que se afigura uma forma de resguardar a garantia da liberdade hermenêutica do magistrado. Uma menção dessa natureza, efetuada por um juiz racionalmente convencido da impropriedade da ratio decidendi do paradigma, mas que, por respeito funcional, a ela se curva, longe de representar menoscabo ou afronta à autoridade do precedente, é mais uma forma de atualizar a jurisdição superior, pela indicação, nos autos, da discutibilidade da tese adotada, a qual, chegando o feito às instâncias competentes, pode ser posta à prova pelo confronto com os fatos da demanda concretizada, ensejando nova reflexão quanto ao grau de satisfação que proporciona relativamente ao ideal de justiça.
Isto é: não devem os juízes encarar como perda irreparável a limitação imposta pelo stare decisis às faculdades hermenêuticas dos magistrados. É preciso ter em mente que os ganhos sociais – inclusive na perspectiva do próprio Poder Judiciário – são imensos. Na medida em que se verifica uma maior previsibilidade do resultado da atividade judicante, o nível de litigiosidade da população respectiva reduz sensivelmente, desafogando instâncias, promovendo a economia de recursos materiais e pessoais e propiciando uma prestação jurisdicional mais célere e de melhor qualidade. Somente um egoísmo patológico ou uma visão estritamente corporativista explicariam compreensão diversa do tema, a sustentar postura retrógrada, insensível e em nítido descompasso com a nova conformação do quadro jurídico-processual no Brasil e no mundo.
O caráter vinculante dos precedentes judiciais poderia ser visto, ademais, contraditoriamente, como fator a ensejar a concretização de desigualdades. Como já referido, o apego excessivo à regra da observância obrigatória do precedente poderia ocasionar a aplicação indevida de determinada tese jurídica a uma demanda factual específica que, em verdade, não se mostrava subsumível ao preceito normativo invocado, em virtude de distinções substanciais, que, por sua sutileza, acabaram despercebidas pelo julgador. Noutras palavras, o formalismo consistente na obediência cega a um precedente aparentemente aplicável poderia dar margem a um julgamento injusto porquanto errôneo, na medida em que desconsiderasse especificidades relevantes de uma demanda concreta, em evidente violação ao princípio da isonomia.
De fato, consoante a célebre lição de Rui Barbosa (1997, p. 26) “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam”, de sorte que o tratamento uniforme de situações materialmente distintas representa violação tão séria à doutrina da igualdade quanto o tratamento desigual de situações idênticas. Quando um magistrado deixa de distinguir corretamente um caso do outro, plasmando realidades substancialmente divergentes pela invocação errônea de um precedente, incorre em generalização indevida, transgressora, portanto, da equidade e da razoabilidade esperadas em um pronunciamento decisório voltado à solução judicial de uma conflito social.
Não nos parece, contudo, que, por essa razão, o sistema de precedentes represente entrave à realização material da igualdade. Consoante vem sendo afirmado neste trabalho, o magistrado do common law permanece com ampla liberdade para decidir a demanda da forma que lhe pareça mais justa, sendo autorizado a afastar a aplicação do precedente pelo distinguishing, a criar exceções à ratio decidendi, a propor a revisão ou cancelamento do precedente quando fortemente autorizado pelas circunstâncias (overruling), ou, ainda, entendendo tratar-se de caso novo, criar ele mesmo um precedente, a partir da descrição minuciosa de elementos de fato, aptos a demonstrar a distinção em relação aos motivos determinantes do prejulgado. Nessas circunstâncias, apenas o erro judiciário, compreensível enquanto obra humana, justificaria a adoção de um precedente em lugar da formulação da solução judicial adequada para o caso concreto, pelo que a afirmação de que o stare decisis promove a desigualdade material somente faria sentido em um contexto de maus juízes. É como ensina Marinoni:
respeitar precedentes não redunda – nem jamais redundou – numa obrigação de aplicá-los de forma irrefletida. Ao contrário, não há como olhar apenas para um dos lados dos efeitos provocados pela utilização dos precedentes. Não é possível considerar os benefícios gerados pelo respeito aos precedentes, com a previsibilidade e a estabilidade, sem considerar os prejuízos decorrentes de sua inadequada utilização. Os precedentes, assim como as leis, devem ser racionalmente utilizados. Não podem ser vistos apenas em abstrato, como se fossem modelos adaptáveis a toda e qualquer situação concreta, mas como normas que devem levar em conta as particularidades de cada situação litigiosa. Nessa perspectiva, é conhecida a técnica do distinguished, imposta pela teoria da compreensão e da utilização dos precedentes no âmbito do common law. (...) Assim, em princípio, o juiz estará diante de outro caso ao se deparar com fatos diversos daqueles que impuseram a definição da interpretação jurídica individualizada no precedente. Fala-se em princípio porque, para a aceitação de que o caso não é suscetível ao precedente, não basta que os fatos sejam simplesmente diferentes, sendo importante que os fatos, na lógica da tese jurídica fixada no precedente, não sejam idôneos a provocar a aplicação da mesma tese jurídica. Quando os fatos, apesar de diferentes, não podem fugir à aplicação do precedente, há um caso similar ou até substancialmente igual. (...) casos similares, e não perfeitamente iguais – se é que estes existem – devem ser tratados igualmente. Casos substancialmente desiguais não devem ser tratados de modo uniforme. Portanto, é despropositado pensar que o respeito aos precedentes pode gerar injustiça, em virtude da impossibilidade da consideração das peculiaridades de uma dada posição ou situação jurídica. Na realidade, em um sistema que respeita precedentes, a nenhum juiz é dada a possibilidade de aplicá-los a casos que têm peculiaridades que os tornam distintos, a repelir tratamento igualitário ou uniforme. (MARINONI, 2013, p. 193-195)
Assim, não se pode corretamente afirmar que o risco da aplicação errônea do precedente é uma decorrência própria do sistema do stare decisis. Também na ausência da vinculação judicial a decisões pretéritas é possível que se incorra em generalização indevida pela aplicação incorreta de fórmulas legais, aliás, muito mais amplas e abstratas que a regra de direito jurisprudencial, profundamente atrelada aos fatos da demanda concreta de que se originou. O efeito nefasto da violação à igualdade, eventualmente presente na aplicação de precedentes, não resulta da essência do regime do binding precedent, mas de uma postura equivocada dos agentes judiciais em relação a este, pelo que pode o resultado ser plenamente rechaçado tão somente pelo devido cuidado dos profissionais jurídicos. E o mesmo não se pode dizer da desigualdade descarada que resulta – aqui sim, por essência – da total liberação dos magistrados para decidirem cada um ao seu talante, quiçá ao humor que ostentarem a cada dia, nos sistemas em que, a despeito da gritante identidade fática de causas, não há qualquer obrigação de respeito a precedentes judiciais.
Argumenta-se, também, que a instituição de precedentes vinculantes viola o princípio da separação dos Poderes. Nessa perspectiva, a regra do stare decisis faz extrapolar as atribuições do Judiciário, cuja competência deveria cingir-se à aplicação de normas gerais aos casos concretos e jamais à edição de provimentos com eficácia geral sobre todos os membros da magistratura, sobretudo quando se admita o precedente como criador do direito (MARINONI, 2013, p. 196).
É preciso ter em mente, contudo, que, há muito, não mais subsiste a concepção rígida da separação de Poderes idealizada por Montesquieu e implementada ao tempo da Revolução Francesa. Vivencia-se uma nova concepção, fruto de um novo constitucionalismo, fundada na ideia de “sharing of powers”, em que o exercício de funções típicas não afasta a possibilidade do desempenho de funções atípicas por cada um dos Poderes de Estado (SOUZA, 2013, p. 295). Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino sintetizam com maestria a questão:
Utilizada com sectarismo nas revoluções americana e francesa, a separação rígida de poderes mostrou-se inviável na prática, restando, nos dias atuais, superada. Isso porque, opostamente ao que se propugnava originalmente, a separação rígida terminou por ensejar o arbítrio por parte de cada um dos poderes (órgãos) em razão da completa independência com que exerciam suas funções. Assim, o motivo precípuo para a superação da rigidez da separação de poderes foi a necessidade de impedir que os órgãos respectivos se tornassem tão independentes que, arbitrariamente, se afastassem da vontade central, da unidade política. Em face desse quadro, hodiernamente se exige uma maior interpretação, coordenação e harmonia entre os poderes. Com isso, eles passaram a desempenhar não só as suas funções próprias, mas também, de modo acessório, funções que, em princípio, seriam características de outros poderes. (PAULO; ALEXANDRINO, 2012, p. 429)
Na atual ordem jurídica brasileira, nitidamente, não foi a ideia de separação rígida das funções estatais que inspirou legislador constituinte, podendo-se vislumbrar a flexibilidade aqui referida desde a descrição genérica constante do art. 2º, da Constituição Federal, segundo o qual Executivo, Legislativo e Judiciário são Poderes “independentes e harmônicos entre si” (BRASIL, 1988, p. 1), [3] até à descrição minuciosa de atribuições constantes do Título IV, da CF/88, quando se verifica a outorga de competência executiva a todos os Poderes, os quais, no mínimo, administram seu patrimônio e pessoal e, demais disso, de funções explícitas de natureza jurisdicional ao Legislativo (art. 52, I), [4] legislativa ao Executivo (art. 62), [5] jurisdicional ao Executivo (art. 41, § 1º, II) [6] e legislativa ao Judiciário (art. 96, I, “a”), [7] para citar apenas alguns exemplos (LENZA, 2008, p. 293).
Ademais, ainda que se considerasse, exclusivamente, a estrita competência jurisdicional do Poder Judiciário, forçoso seria concluir pela pertinência, à luz do princípio da unidade institucional, da atribuição dos órgãos hierarquicamente superiores para a fixação de regras com eficácia interna corporis. No plano jurisdicional, é cediço que a atividade interpretativa comporta certo grau de criação, conclusão há muito difundida pela moderna filosofia da linguagem e do Direito, que apontam tanto para as deficiências comunicacionais dos signos linguísticos quanto para a quebra do dogma da completude do ordenamento jurídico (SANTOS, 2013, p. 5). Isto é: não se discute mais que a função de decidir envolve a fixação de normas para o caso concreto, as quais, por uma questão de insuficiência material da ordem positiva, inevitavelmente, comportam algum traço distintivo em relação ao direito objetivamente considerado. O que o regime de precedentes vinculantes realiza é, tão somente, condicionar essa normatividade judicial a um critério de igualdade, na medida em que passa a ser exigida a aplicação de uma tese predefinida para casos idênticos, tendo em vista a unidade da jurisdição enquanto função de Estado e a necessidade de coerência, lógica e sistematização no exercício desse mister.
Essa restrição do regime do stare decisis ao âmbito da função jurisdicional se torna ainda mais evidente quando se recorde que, mesmo no civil law, é permitido ao juiz singular, em controle de constitucionalidade, negar a validade de determinada lei, alterá-la, fixar seu conteúdo nos termos da Constituição ou, na omissão do legislador, suprir lacuna ou insuficiência de norma regulamentadora de modo a assegurar o exercício de direitos fundamentais (MARINONI, 2013, p. 202). Ora, se a decisão individual de um magistrado que se vale dessas prerrogativas é, inegavelmente, ato normativo, e, a despeito disso, não se cogita de invasão à esfera de competências do Poder Legislativo, não faz sentido questionar a legitimidade do pronunciamento judicial de uma alta corte nacional tão somente porque seja dotado de força vinculante em relação aos demais membros do Judiciário, porquanto, afora essa característica, em nada difere dos demais provimentos ordinariamente prolatados pelas autoridades judiciais.
Afirma-se, ainda, que a vinculação a precedentes importa em negação ao princípio do juiz natural. A violação estaria presente porquanto a questão jurídica judicializada não seria apreciada pelo magistrado a quem coubesse o julgamento do feito por distribuição, mas teria sido decidida por órgão jurisdicional diverso, a saber, a corte que, em momento prévio, fixou o entendimento (MARINONI, 2013, p. 208).
O exame da veracidade dessa declaração passa pela análise do conteúdo do princípio do juiz natural. A doutrina comumente relaciona-o com a regra da imparcialidade do juiz, implícita na vedação ao tribunal de exceção, prevista no art. 5º, inciso XXXVII, da CF/88, [8] a qual é pressuposto de constituição válida e regular do processo (DANTAS, 2007, p. 125). Nessa perspectiva, natural seria o juízo instituído segundo regras impessoais, objetivas e pré-estabelecidas, que não levam em consideração a pessoa ou o fato a ser julgado (instituição de juízo post facto ou ad personam), caracterizando-se como o juízo devido ou competente, no sentido do art. 5º, inciso LIII, da CF/88 [9] (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 92).
Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, na célebre obra que deu origem à disciplina de Teoria Geral do Processo na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ao abordarem o tema, além de identificarem o significado da competência própria do juiz natural, esclarecem que viola também a regra em comento a subtração indevida do juízo constitucionalmente competente. In verbis:
Aos tribunais de exceção – instituídos para contingências particulares – contrapõe-se o juiz natural, pré-constituído pela Constituição e por lei. Nessa primeira acepção, o princípio do juiz natural apresenta um duplo significado: no primeiro, consagra a norma de que só é juiz o órgão investido de jurisdição (afastando-se, desse modo, a possibilidade de o legislador julgar, impondo sanções penais sem processo prévio, através de leis votadas pelo Parlamento, muito em voga no antigo direito inglês, através do bill of attainder); no segundo, impede a criação de tribunais ad hoc e de exceção, para o julgamento de causas penais ou civis. Mas as modernas tendências sobre o princípio do juiz natural nele englobam a proibição de subtrair o juiz constitucionalmente competente. Desse modo, a garantia desdobra-se em três conceitos: a) só são órgãos jurisdicionais os instituídos pela Constituição; b) ninguém pode ser processado por órgão instituído após a ocorrência do fato; c) entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2009, p. 58)
Isto é: a regra do juiz natural diz respeito à não utilização pelo Estado de juízo ou tribunal de exceção, o que se contrapõe ao estabelecimento de regras objetivas e pré-estabelecidas de competência jurisdicional. Exige-se, assim, que o juiz encarregado do julgamento de determinada demanda seja formalmente imparcial, porquanto instituído de forma prévia e não atrelada a pessoa ou fato específico. O princípio não abrange, portanto, o mérito dos provimentos jurisdicionais. Não deixa de ser natural, o juiz, pelo simples fato de, por obrigação do ofício, ter de reproduzir determinada interpretação do direito. Vale dizer: a vinculação funcional do juiz a entendimento específico em matéria de direito não viola o princípio do juiz natural. A “naturalidade” exigida do juízo está relacionada à tutela da imparcialidade do julgador para a apreciação de controvérsias de fato e subsunção da verdade processual ao direito, e não à autonomia do magistrado para, segundo sua íntima convicção pessoal, interpretar livremente a ordem jurídica.
Não se é insensível à perspectiva segundo a qual os argumentos utilizados pelas partes para a sustentação de determinada tese jurídica não chegam sequer a influenciar na decisão relativa à questão de direito, porquanto o julgador, em sede de stare decisis, é obrigado a reproduzir decisão pretérita da corte superior, diante do que se reputa a existência de uma cisão de competências: a questão de direito não é julgada pelo juiz natural da causa, mas pelo tribunal, em momento anterior. Ainda que se adotasse essa visão, forçoso seria concluir que, nos países que adotam a obrigatoriedade do precedente, são as próprias normas objetivas, impessoais e pré-estabelecidas de processo (condizentes, pois, com a regra do juiz natural) que fixam a competência de um tribunal superior para a edição de precedente vinculante sobre determinada questão jurídica. E, precisamente em virtude da eficácia geral que a decisão há de tomar, permite o legislador que diferentes setores da sociedade, eventualmente interessados no tema, ainda que não integrantes da relação processual originalmente deduzida, participem na formação da convicção do tribunal por apresentarem argumentos na forma de memoriais ou de sustentação oral em audiência pública, sem prejuízo da juntada de documentos e da requisição de perícias (figura do amicus curiae, permitido, no Brasil, em sede de ADIN, ADC e ADPF, recurso extraordinário na sistemática da repercussão geral, recursos especiais repetitivos, procedimento de edição, revisão ou cancelamento de súmula vinculante e, na forma do Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil (PLNCPC), no incidente de resolução de demandas repetitivas nos tribunais locais e superiores). Logo, para um determinado caso submetido a juiz singular, ainda que se admita que a questão jurídica foi julgada previamente pela corte que editou o precedente vinculante, não se pode afirmar que esta o realizou em violação à regra do juiz natural.
Na realidade, o fenômeno da aplicação do precedente vinculante pode ser observado sob duas óticas distintas:
a) o juiz da causa não decide a questão de direito, pois apenas reproduz um julgamento adrede realizado pela corte prolatora do precedente vinculante. Consoante essa concepção teórica, os argumentos deduzidos pela parte para a sustentação da tese jurídica não influenciam na decisão, já que esta havia sido tomada em momento anterior, pelo tribunal. Nessa perspectiva, o tribunal seria o juízo competente para resolução da questão jurídica, ao passo que ao juiz prevento restaria a atribuição apenas para o julgamento de questões de fato e a aplicação do precedente ao caso concreto, com edição do dispositivo. Aqui, a liceidade do procedimento à luz do princípio do contraditório somente se sustenta pela teoria da legitimação extraordinária do amicus curiae e do Ministério Público para a apresentação de argumentos em favor dos interessados atuais e futuros na matéria de direito;
b) o juiz da causa decide a questão de direito, apreciando os argumentos deduzidos em favor da tese jurídica e julgando-os fundamentadamente segundo a interpretação constante do precedente. Sob esse prisma, não é o tribunal quem julga a questão de direito, mas é o juiz do feito, o qual apenas segue a tese constante do precedente por mera obrigação funcional. Não há cisão de competências. Essa perspectiva se funda na observação de que é possível ao magistrado, à luz dos argumentos suscitados pela parte, propor a revogação total ou parcial do precedente (overruling), o que é indicativo de que examina os fundamentos jurídicos do pedido e julga a questão de direito. Tanto em um como em outro caso, não há violação à regra do juiz natural.
Em síntese: o fato de haver uma restrição ao poder do magistrado de fixar teses jurídicas ante o dever de respeitar precedentes obrigatórios em nada viola o princípio do juiz natural, porquanto não produz uma quebra de imparcialidade em razão da instituição de juízo de exceção, destinado ao julgamento de situações ou pessoas específicas. A obediência a precedentes tem a ver com a uniformidade na interpretação do direito e não com o julgamento de fatos ou sujeitos, os quais continuam sendo objeto da livre apreciação do magistrado competente, incumbido da demanda por força de normas objetivas de repartição da atribuição jurisdicional previstas no ordenamento jurídico, que admitem, nos casos de concorrência de juízos material e territorialmente competentes, inclusive, o critério aleatório de distribuição. Caso se admita que a matéria de direito foi decidida, em verdade, não pelo juiz prevento para a causa, mas pela corte prolatora do precedente, reconhecendo-se, assim, uma espécie de cisão de competências entre o juiz do feito e a corte que anteriormente apreciou a questão jurídica, ainda assim, não há que se falar em violação ao juiz natural, vez que, nesse caso, o tribunal autor da tese reproduzida era, na forma da Constituição e da lei, o juiz natural da questão de direito posteriormente reprisada, tendo havido legitimação extraordinária dos amici curiae e do Ministério Público para a apresentação de argumentos em favor dos interessados atuais e futuros na questão.
Por último, comenta-se a alegação de que a força obrigatória do precedente importa em negação ao direito de acesso à justiça (MARINONI, 2013, p. 208). Para quem defende a ocorrência desse efeito, o sistema de precedentes vinculantes pressupõe uma negativa implícita de prestação jurisdicional, uma vez que o julgamento da matéria de direito estaria prejudicado pelo precedente.
Cuida-se de afirmação falaciosa, na medida em que o acesso à justiça deve ser compreendido como o direito dos cidadãos de submeter uma demanda concreta não a um magistrado que dela conheça sob todos os aspectos, mas ao Judiciário integralmente considerado, o que indiscutivelmente ocorre nos sistemas que adotam a regra do stare decisis. O que foi dito acima (item 3.1.7), quando da discussão acerca do atendimento ou não do princípio do juiz natural pelos sistemas de precedentes obrigatórios, vale também aqui. Caso se entenda que o juiz da causa não decide a questão de direito, porque esta já foi apreciada anteriormente pelo tribunal, a prestação jurisdicional, no que tange à tese jurídica, terá sido realizada na forma do julgamento de viés coletivo efetuado pala corte superior para fins de formação do precedente, no qual, por imposição legal, e no seio de amplo debate, aberto a diferentes setores da sociedade, analisa o tribunal o maior número possível de argumentos existentes antes da fixação da ratio decidendi.
Não nos parece, contudo, que seja necessário sequer recorrer a esse raciocínio. Tal ocorre porque a questão de direito não deixa de ser decidida pelo sentenciante, o qual tem o dever de examinar todos os argumentos suscitados pela parte e fundamentar sua decisão. O fato de o magistrado seguir a interpretação vinculante constante de um precedente constitui apenas detalhe técnico, que decorre de mera obrigação funcional do juiz, o qual deve trabalhar em harmonia com o inteiro organismo judiciário, visando à racionalidade e economicidade da jurisdição. Isso não faz, contudo, que a causa tenha deixado de ser julgada, inclusive na perspectiva do direito, pelo órgão de primeira instância. Prova disso é que o magistrado de primeiro grau, não obstante a existência de precedente vinculante aplicável, pode decidir de forma diversa deste, conferindo nova conformação jurídica aos fatos (transformation) ou procedendo à revogação parcial ou total do precedente (overruling), desde que fundamentado na alteração das condicionantes sociais do julgado, as quais, em verdade, correspondem a uma modificação no quadro jurídico. [10]
Isto é: não obstante a regra do stare decisis, o julgamento acerca da existência do direito continua sendo efetuado caso a caso, não havendo limitação da jurisdição de primeiro grau nesse sentido. Apenas quando entenda o juiz que a demanda é substancialmente idêntica à solucionada no precedente, inclusive na perspectiva dos elementos sociais de influência no direito (contexto histórico, grau de desenvolvimento científico-tecnológico, valores e costumes sociais) é que deve ser decidida a questão jurídica nos moldes preconizados pelo paradigma, e isso, repise-se, não em uma mecânica cega de aplicação, mas em um julgamento motivado dos argumentos colocados pela parte, o qual, por dever funcional, é efetuado sob a ótica do precedente vinculante. Seja por essa perspectiva, seja pelo entendimento de que a jurisdição é prestada pelo tribunal que fixa a tese jurídica vinculante, inexiste ofensa ao acesso à justiça.
Efetuado um exame dos argumentos contrários à regra dos precedentes, passa-se, agora, a uma análise sucinta dos benefícios apontados pela doutrina como advindos da utilização do stare decisis. A vinculação a precedentes favorece a segurança jurídica, a previsibilidade das decisões judiciais, a estabilidade do sistema jurídico, a celeridade processual, a tutela da confiança e a coerência do Poder Judiciário, além de promover um desestímulo à litigiosidade, incentivar o cumprimento voluntário das decisões judiciais, racionalizar a jurisdição de segundo grau, aprimorar o trabalho decisório do juiz, promover a economia processual e concretizar a igualdade de tratamento entre os jurisdicionados. Na sequência, comenta-se cada uma das referidas vantagens.
O sistema de precedentes promove a segurança jurídica necessária ao desenvolvimento econômico e à pacificação das relações sociais de uma nação (LIMA, 2013, p. 159). Em um Estado que se pretenda “de Direito”, a sociedade civil faz jus à observância, pelo Poder Público, de limites bem definidos de atuação e de critérios claros e regulares de apreciação da legalidade do agir particular, sob pena de vivenciar-se estado de insegurança que inviabilize a realização de investimentos e materialize um caos normativo que beire à arbitrariedade oficial.
O princípio da segurança jurídica, apesar de não figurar expressamente na Constituição brasileira, é vislumbrado pelos estudiosos como norma presente no ordenamento, que se manifesta, dentre outros, na forma dos princípios da legalidade (inciso II), da inviolabilidade do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito (inciso XXXVI), da tipicidade e anterioridade em matéria penal (inciso XXXIX) e da irretroatividade da lei penal desfavorável (inciso XI), todos previstos no art. 5º, da CF/88 (MARINONI, 2013, p. 120). Trata-se de uma ideia ampla, ligada às noções de previsibilidade e estabilidade do sistema jurídico, que surgiu em face da insuficiência da regra do direito adquirido para proteger determinadas situações e que, atualmente, é reconhecida pela doutrina nacional e estrangeira como corolário do Estado de Direito. Serve de base à tutela, por exemplo, do direito a normas de transição quando da alteração radical de determinados modelos jurídicos e do direito à regularização de situações fáticas consolidadas pelo decurso do tempo, ainda que constituídas sobre um quadro inicial de ilicitude (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 472). Em poucas palavras, é a segurança jurídica “um pilar do Estado Democrático de Direito, porquanto confere confiabilidade à sociedade no respeito aos seus direitos fundamentais.” (LIMA, 2013, p. 159)
Há um binômio, pois, que traduz o sentido da segurança jurídica: a estabilidade do ordenamento e a previsibilidade ou certeza do direito. A ideia de estabilidade está associada à noção de que a constante reformulação de normas impositivas, ou sua aplicação inconsistente, prejudicam a confiabilidade no sistema (SOUZA, 2013, p. 298). A ordem jurídica não deve ser substancialmente alterada em curtos períodos de tempo, sob pena de a sociedade perder a confiança nas instituições públicas, o que conduz à perda de efetividade do Direito integralmente considerado. Uma vez que a definição do direito, no plano concreto, se dá pela interpretação a ele conferida pelos juízes, nítido é que não basta zelar pela estabilidade no plano legal, fazendo-se necessários institutos que também a assegurem no âmbito jurisprudencial. A estabilidade das normas jurídicas exige a estabilidade das decisões judiciais, para o que o stare decisis contribui irrefutavelmente.
De seu turno, a previsibilidade ou “certeza” (certainty) do Direito diz respeito ao atributo, necessário a todo sistema normativo, de que, por meio de um instrumental adequado, possa a sociedade antever o conteúdo da ordem jurídica (SOUZA, 2013, p. 300). O Direito não pode ser um ente indecifrável e, portanto, distante da realidade social. Para que seja apto a balizar comportamentos, tem de estar na ordem do dia, junto à pauta de deliberações de organizações e indivíduos.
Não basta, pois, que o Direito seja estável; é preciso que seja previsível, cognoscível. Esse conhecimento, em sua forma mais profícua, dá-se pelo estudo das manifestações do Poder Judiciário, o qual, à luz do caso concreto, e pela atividade dialética dos tribunais, opera a síntese dos diferentes princípios legais e constitucionais para produzir a norma jurídica individualizada, traduzindo, de forma definitiva e prática, o significado do Direito. É evidente, nesse contexto, que a possibilidade de edição de decisões discrepantes pelos órgãos julgadores torna imprevisível o Direito – ao menos o autêntico, real, capaz de produzir efeitos materiais no plano fático, que é o direito jurisprudencial. [11]
Como, então, considerar satisfeito o princípio da segurança jurídica em um cenário de decisões absolutamente discrepantes do Poder Judiciário? Se o referido instituto diz respeito, precisamente, à estabilidade e à previsibilidade das regras de direito, cuja guarda incumbe aos juízes, como admitir que estes divirjam drasticamente entre si acerca do conteúdo das mencionadas normas? A coexistência de interpretações contraditórias pelo Judiciário representa, em verdade, o reconhecimento da assunção de regras divergentes de conduta pela ordem jurídica objetiva. E a adoção oficial de normas opostas entre si implica, na perspectiva social, a ausência de normatividade.
Os reflexos nefastos da irregularidade dos pronunciamentos judiciais nos planos cultural e econômico, por exemplo, são incomensuráveis. Torna-se temerário à iniciativa privada promover investimentos de alta envergadura sem a garantia de que o quadro jurídico atualmente vigente permanecerá dando sustentação aos negócios efetuados, o que sedimenta o atraso em diversos setores do País. Paralelamente, a anomia decorrente da instabilidade criada por um regime que tolera decisões judiciais díspares, para além da crassa violação ao princípio democrático, estimula a descrença no direito e o desrespeito às instituições públicas. Como bem pontuado por Tiago Asfor Rocha Lima,
É impossível imaginar-se um regime democrático no qual a sociedade não tenha o mínimo de previsibilidade dos comportamentos oriundos do Estado. Isso se faz importante na medida em que reflete no próprio modo de ser do cidadão. A prática de atos pela sociedade é ditada, ainda que indiretamente, pelas condutas às vezes estimuladas, outras vezes reprimidas ou sancionadas pela Administração Pública. Assim, é difícil compreender que possa o Poder Público se comportar de modo desuniforme perante situações jurídicas equivalentes. Tal possibilidade produz incerteza e descrença nos cidadãos em relação às instituições públicas, atentando, ainda, contra princípios fundamentais da Carta Política de 1988, a saber, e com destaque, a isonomia, a legalidade, a impessoalidade e a moralidade administrativas. O cidadão, como destinatário dos atos legislativos, jurisdicionais e executivos, tem o direito de conhecer previamente a regulamentação jurídica das situações fáticas a que pode estar sujeito. Há, ademais, um dever de clareza nos referidos atos, justamente a fim de que o cidadão não seja surpreendido com um efeito jurídico impensado. (LIMA, 2013, p. 159-160)
Na medida em que os sistemas de precedentes vinculantes asseguram a univocidade na qualificação das situações jurídicas, promovem a previsibilidade e a estabilidade do quadro normativo, pelo que favorecem a satisfação da segurança jurídica (MARINONI, 2013, p. 124-127). A liberação de juízes para interpretarem ao seu talante expressões legais polissêmicas, como ocorre atualmente no Brasil, consagra a incerteza quanto à atividade judicial e suprime a efetividade de um inteiro direito nacional. Contrariamente, o respeito a precedentes, além de possibilitar o conhecimento prévio das regras jurídicas pela sociedade, contribuindo para o desenvolvimento econômico e social de um povo, fortalece o Direito enquanto instituição, por instilar a confiança dos jurisdicionados nos organismos de Estado.
Outro efeito positivo do regime de vinculação a precedentes é a inegável redução que a sistemática provoca no tempo de duração dos processos judiciais (MARINONI, 2013, p. 184). Quando o órgão julgador de primeira instância segue a orientação dos tribunais superiores, há uma tendência de que o litígio se resolva no primeiro ou, no máximo, no segundo grau de jurisdição, o que reduz sensivelmente o tempo de duração do processo. Ademais, uma vez que o esforço interpretativo passa a se concentrar no momento de formação do prejulgado, promove-se inequívoca economia de jurisdição nas instâncias ordinárias, que passam a não ter de ponderar princípios e fundamentar largamente suas decisões a cada novo julgamento, bastando a remissão aos motivos determinantes do precedente.
A celeridade processual (time-saving) é indispensável a um processo efetivo e de resultados (SOUZA, 2013, p. 302). No Brasil, trata-se de valor consagrado constitucionalmente, nos termos do art. 5º, inciso LXXVIII, da CF/88, segundo o qual “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.” (BRASIL, 1988, p. 1) Foi a celeridade o norte constantemente perseguido nas sucessivas reformas da legislação processual brasileira e é ela uma das principais preocupações que levaram o Poder Público à elaboração de um novo Código de Processo Civil, objeto de projeto de lei atualmente em tramitação no Congresso Nacional. É inquestionável que um regime de precedentes obrigatórios favorece a agilidade da prestação jurisdicional, pois exonera de tormentoso trabalho intelectual o sentenciante e promove a racionalização do duplo grau de jurisdição.
A previsibilidade decorrente do regime de precedentes obrigatórios contribui, inegavelmente, para uma redução no nível de litigiosidade da população. A parte que, com segurança, antevê que sua pretensão não é acolhida pelo Judiciário, por certo, deixa de promover demanda judicial custosa e demorada. O estado de instabilidade próprio de um Judiciário inconsistente em seus pronunciamentos, porém, em verdade, estimula a judicialização dos conflitos, na medida em que, na maioria dos casos, a possibilidade de ganho, ainda que reduzida, justifica as despesas com o processo, sendo certo que o tempo de espera pelo término da prestação jurisdicional é irrelevante para quem tem ciência de que é mínima a corrente doutrinária que sustenta seu direito. Em diversas hipóteses, instala-se o fenômeno da denominada “loteria judiciária”, que, a um alto custo social e econômico, favorece apenas o apostador. Consoante assevera Marinoni,
Quando a parte que se julga prejudicada tem conhecimento de que o Judiciário não ampara sua pretensão, esta certamente não gastará tempo e dinheiro em busca de uma tutela jurisdicional que, de antemão, sabe que lhe será desfavorável. Contudo, quando ao advogado não resta outra alternativa a não ser informar o seu cliente de que, no que diz respeito ao seu problema, o Judiciário já decidiu e tem decidido de várias formas, fica a parte com a viva impressão de que deve propor a demanda, arriscando obter uma decisão favorável. Afinal, se um juiz ou uma Câmara ou Turma pode lhe dar ganho de causa, entre outras que lhe podem dar decisão desfavorável, vale a pena arcar com os custos e com a demora do processo. O autor da ação é obrigado a pensar com a lógica de um apostador, transformando o distribuidor judicial em espécie de roleta, cujo último sopro determinará a sorte do litígio. Há nítida possibilidade de o Judiciário ser visto como casa lotérica, em que a aposta seja conveniente, mesmo pagando-se alto. (MARINONI, 2013, p. 179)
No Brasil, a adoção do instituto da súmula vinculante é prova inconteste do que se afirma. Segundo o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, então Presidente do STF, a estratégia da vinculação às decisões da Suprema Corte brasileira em matéria constitucional reduziu em 41% o número de processos analisados pelo tribunal no ano de 2008 (CARNEIRO, 2013, p. 1). Não resta dúvida de que um Judiciário estável e coerente em suas decisões outorga à sociedade a segurança necessária à pacificação e à solução extrajudicial dos litígios, com impacto positivo na redução da quantidade de demandas submetidas aos órgãos oficiais.
O respeito a precedentes também promove a economia de jurisdição e, consequentemente, da vultosa soma despendida com recursos humanos e materiais utilizados no desenrolar de atividade processual desnecessária (MARINONI, 2013, p. 185). Quando há entendimento vinculante, a decisão que corretamente aplica o precedente desestimula a instauração da instância recursal, pois fica evidente à parte vencida que a provocação da corte superior lhe será absolutamente inútil. Ademais, consoante examinado no item anterior (3.2.3), a estratégia produz comprovada redução no nível de litigiosidade da população, que, a partir da previsibilidade das decisões judiciais, passa a sequer procurar o Judiciário, resolvendo maior quantidade de conflitos de forma amigável, no plano extrajudicial. Economiza-se, em ambos os casos, enorme quantidade de trabalho, com reflexos na celeridade e efetividade do processo, e, igualmente, significativa quantia de recursos que poderiam ser empregados em outros setores da economia ou, ainda, ser utilizados pelo próprio Poder Judiciário para elevar a produção da instituição, resultando em ganho ainda maior de velocidade na prestação jurisdicional.
O custo econômico de um processo judicial é imenso, porquanto não se exaure nas despesas empregadas pelas partes com honorários de advogado. Há custas processuais, honorários de perito, taxas de depósito, comissões de leiloeiro e valores despendidos com transporte, alimentação e hospedagem de partes, testemunhas e procuradores; há a perda de produção resultante da ausência ao trabalho de partes e testemunhas (o que, considerado o conjunto das ações propostas no inteiro País ao longo de um ano, revela-se quantia expressiva); há juros moratórios que multiplicam o valor da dívida durante todo o período pelo qual se estende a duração do processo; e há a utilização de grande quantidade de magistrados e servidores, remunerados pelos cofres públicos, cujo número poderia ser bastante inferior caso houvesse redução na quantidade de processos em tramitação no Judiciário.
No plano estritamente recursal, as despesas envolvem, ainda, diárias e passagens de advogados para sustentação oral e acompanhamento de processos nas sedes dos tribunais (o STF e o STJ, por exemplo, possuem instalações, exclusivamente, em Brasília/DF) ou, em substituição, honorários de representação de escritórios conveniados situados nas proximidades dos juízos ad quem. Em todos os casos, ao fim e ao cabo, os custos do processo judicial são sustentados pela inteira sociedade, que os vê inseridos nos preços de mercado dos diferentes produtos e serviços (repasse, ao consumidor, das despesas com departamentos jurídicos e ações judiciais) ou nas alíquotas dos tributos cobrados pelo Estado para o custeio da máquina pública, que inclui o inteiro aparato judiciário. À evidência, qualquer estratégia que importe em economia processual representa importante e significativo avanço para a sociedade. Desperdício de jurisdição é desperdício de dinheiro público e privado – e em quantia avassaladora.
Nessa ordem de ideias, não faz sentido que a parte tenha de recorrer, tão somente, para ver aplicada uma interpretação que já sabia ser a devida para a hipótese, porquanto já fixada pelo tribunal superior na forma de precedente; não faz sentido que o tribunal superior tenha de, mais uma vez, assentar-se em sessão e desperdiçar precioso tempo com o julgamento de processos, somente para repetir tese jurídica que já havia proferido, apenas porque um tribunal local ou um magistrado de primeiro grau discordam da interpretação da corte de superposição; não faz sentido que juízos ordinários possam contrariar entendimento consolidado da Suprema Corte de um país se, por força da estrutura recursal, em última instância, é esta quem detém o poder de resolver o litígio.
A vinculação a decisões anteriores nada mais é que o reconhecimento da verdade óbvia de que o poder de definir teses jurídicas sempre foi das cortes superiores. É um agir racional e lógico, que se coaduna com a essência do duplo grau de jurisdição e simplesmente não pode deixar de ser a regra na atual era dos litígios de massa. A economia decorrente da medida, que impede um exercício processual inútil, representa ganho de recursos para toda a sociedade.
Regimes de precedentes vinculantes contribuem para a realização da justiça material na medida em que tutelam a confiança justificada dos que baseiam suas relações nas decisões do Judiciário. Na medida em que a jurisprudência dominante define uma questão jurídica de certo e determinado modo, a sociedade se sente a autorizada a balizar comportamentos e negócios jurídicos segundo a interpretação prevalecente nas cortes do País. É absurdamente injusto, pois, que, diante de conceitos jurídicos abertos e indeterminados utilizados pelo legislador ou de complexa superposição de normas que exija elaborada sistematização, seja o particular pego de surpresa pela engenhosa interpretação particular de um magistrado que siga na contramão da jurisprudência nacional.
E o inverso também importa em dano: cada decisão judicial que ampara determinada pretensão comporta o potencial de gerar a expectativa, pelo particular, de que uma demanda posteriormente deduzida venha a ser decidida no sentido conferido pelo precedente que lhe pareça favorável – ainda que, sabidamente, a hermenêutica majoritária trafegue em contrário. Isto é: a existência de uma decisão judicial divergente da jurisprudência pátria pode representar, para aquele a quem lhe seja conveniente, o raio de esperança suficiente à condução da relação social segundo a interpretação minoritária. A superveniência de julgamento desfavorável, em conformidade com a orientação dominante, proporcionaria, nesse caso, severa frustração ao particular, em prejuízo plenamente evitável, porquanto causado, tão somente, pela instabilidade do Judiciário, da boca de quem ouviu o particular, em um dado momento, ser lícita determinada exegese legal.
Em ambas as hipóteses, a ausência de uniformidade nas manifestações do Judiciário é a responsável pela injustiça consistente na negação do direito àquele que confiou nos pronunciamentos do Estado-juiz. A vinculação a precedentes elimina esse efeito nefasto da pluralidade de vozes do Judiciário, uma vez que aquele que regula seu agir com base no precedente passa a ter a garantia formal de que a orientação é de observância obrigatória tanto pelas instâncias ordinárias quanto pela corte que a emanou, salvo alteração das condicionantes sociais do julgado. A segurança que advém desse sistema, além de favorecer o planejamento público e privado, com evidente impacto no plano econômico, implementa a justiça no caso concreto, vez que não contraria a justa expectativa dos que, na ciência de que a verdadeira norma é a que emana dos tribunais, comportam-se segundo a leitura do direito apresentada pelas cortes.
A obediência a precedentes promove a coerência do direito jurisprudencial, que é importante feição da ordem jurídica. Não há Estado de Direito sem coerência no plano normativo (MARINONI, 2013, p. 167), pelo que a instabilidade do Judiciário, que, em esforço hermenêutico, produz a norma jurídica, representa séria questão de ordem política. Não obstante o reconhecimento de sua compatibilidade formal nos Estados que adotam o civil law, a adoção de decisões díspares para casos semelhantes proporciona nítido problema de coerência, ao ponto de sequer ser possível falar na existência de um sistema de normas de origem judicial.
Neil McCormick, citado por Marinoni (2013, p. 170-171), adverte que “fidelidade ao Estado de Direito requer que se evite qualquer variação frívola no padrão decisório de um juiz ou corte para outro”, pelo que, em um Estado com muitos juízes e cortes estruturados hierarquicamente para fins recursais, a decisão de cada órgão judiciário deve ser orientada por um padrão de regras e soluções, de modo a obter-se resultados semelhantes independentemente do juiz do caso.
A incoerência das manifestações do Poder Judiciário é um grave problema político, vez que está em risco o princípio basilar do Estado de Direito, sem o qual não há como se falar em justiça. O desenvolvimento social e a paz pública somente podem ser alcançados quando a população confie plenamente em seus juízes, o que definitivamente não ocorre em um sistema que tolera decisões judiciais contraditórias para casos idênticos.
A outorga de força obrigatória a precedentes judiciais contribui, ainda, para a melhoria da qualidade das decisões emanadas do Poder Judiciário, ensejando verdadeiro fortalecimento institucional. Segundo Marcelo Alves Dias de Souza (2013, p. 303-304), há quatro principais explicações para tanto: 1) a utilização de precedentes implica o aprendizado dos atuais julgadores a partir da sabedoria de longa data da corte, que se afirma como instituição que transcende o momento histórico; 2) a decisão pautada em princípios de casos anteriores preserva e mantém material precioso e escasso, que é aperfeiçoado a cada novo julgamento; 3) a consciência de que a decisão de um caso novo formará precedente a ser seguido pelos demais órgãos do Judiciário produz o efeito psicológico de conduzir os juízes a elaborarem a tese jurídica com maior cuidado e precisão; e 4) a aplicação de precedentes a casos já julgados libera o magistrado para analisar de forma mais detida e aprofundada casos mais complexos e relevantes, acerca dos quais não há precedente sedimentado.
Por último, o respeito a precedentes conduz à obediência ao princípio da igualdade, na medida em que obriga os membros do Poder Judiciário a conferirem idêntico tratamento jurídico a situações fáticas semelhantes. Verdadeiro dogma político da atualidade (SOUZA, 2013, p. 304), o princípio da isonomia, sobretudo após a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, tem sido reproduzido na totalidade das constituições dos Estados nacionais de base democrática, incluindo o Estado brasileiro que, pela atual Constituição, em seu art. 5º, caput, estabelece que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (BRASIL, 1988, p. 1). Consiste, na já visitada lição de Rui Barbosa, tão somente, na arte simples e complexa de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades (BARBOSA, 1997, p. 26). Trata-se do fundamento maior da democracia e da República, sem o qual não pode haver justiça em seu sentido mais pleno.
Consoante a jurisprudência alemã, o princípio da isonomia constitui norma suprapositiva, que antecede o Estado e informa a ordem jurídica, a tal ponto que, ainda que não estivesse inscrita ou prevista de forma explícita no ordenamento, teria de ser respeitada (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 147). Tem como destinatários tanto o legislador quanto o intérprete ou aplicador da lei. É, pois, “a igualdade diante da lei vigente e da lei a ser elaborada”, o que inclui, dentre outras manifestações, o impedimento ao reconhecimento legal de privilégios de qualquer sorte (FERREIRA apud D’OLIVEIRA, 2013, p. 3).
Ocorre que essa igualdade dos homens “perante a lei”, ou “igualdade formal”, precisa ser sucedida por uma “igualdade material”, compreendida como a implementação concreta do principio no plano dos fatos, sob pena de esfacelar-se a vida em comunidade. A isonomia é indispensável à manutenção do pacto social, vez que sem ela, a parcela excluída da população, cedo ou tarde, eclodirá em revolta contra os agentes do poder que compactuam com um estado de injustiça. Na lição de Maria Christina Barreiros D’Oliveira, a igualdade material
é o instrumento de concretização da igualdade em sentido formal, tirando-o da letra fria da lei para viabilizá-lo no mundo prático. Deve ser entendida como o tratamento igual e uniformizado de todos os seres humanos, bem como sua equiparação no que diz respeito à concessão de oportunidades de forma igualitária a todos os indivíduos. A igualdade material é um princípio programático, uma meta ou um objetivo a ser alcançado pelo Estado em atuação conjunta com a sociedade. Necessita da edição de leis para minimizar as diferenças que não sejam naturais entre os indivíduos, mas também de atos concretos por parte do Poder Público e da mudança de posicionamento de toda a sociedade para que se possa chegar à plenitude do princípio. A importância da igualdade material decorre de que somente ela possibilita que todos tenham interesses semelhantes na manutenção do poder público e o considerem igualmente legítimos. Apenas em contexto de igualdade poderiam prevalecer a vontade geral e a ética comunitária que é por ela proposta, em substituição ao individualismo do homem hobbesiano, criticado por Rosseau. Em uma sociedade igualitária, a política democrática deixaria de ser uma opção second best, para passar como um fundamento moral capaz de provocar a adesão da generalidade dos cidadãos. (D’OLIVEIRA, 2013, p. 3)
Nessa ordem de ideias, como conceber que um Poder do Estado, ao qual, por imposição programática, encontra-se obrigado à concretização do princípio jurídico da igualdade, confira, deliberada e reconhecidamente, tratamentos desiguais a fatos idênticos? A explicação, de difícil compreensão por parte do cidadão comum, decorre, tão somente, de regras de natureza instrumental, que asseguram a independência hermenêutica do magistrado e acabam por permitir o caos decisório que atualmente se vivencia. Cada juiz, valendo-se de sua liberdade interpretativa, ao aplicar a ordem jurídica conforme sua única e exclusiva razão, entende estar fazendo justiça no caso concreto; mas o Poder Judiciário e, por conseguinte, o Estado, integralmente considerado, promove, com tal política, precisamente o oposto, a saber, a desigualdade material. Roberto Rosas e Paulo Cezar Aragão, citados por Marcelo Alves Dias de Souza, em passagem lapidar, sintetizam o que por ora é declarado:
O princípio da igualdade de todos perante a lei parecerá irrealizável se a lei for interpretada de modo diverso, apesar de serem idênticas as situações. Não importa tanto a concepção do igualitarismo jurídico, mas sim a forma e a materialidade que o condicionaram, como frisou Kelsen. O homem do povo não concebe duas decisões antagônicas resolvendo a mesma tese, o mesmo princípio, o mesmo fato. Por isso, José Alberto dos Reis dissera: que importa a lei ser igual para todos se for aplicada de modo diferente a casos análogos? Antes jurisprudência errada, mas uniforme, que jurisprudência incerta. Perante jurisprudência uniforme, cada um sabe com o que pode contar; perante jurisprudência incerta, ninguém está seguro do seu direito. E a inconstitucionalidade dessa aplicação? A Constituição Federal erige a igualdade de todos perante a lei como o primeiro dos direitos e garantias individuais; logo, se a lei é uma, não admitirá duas teses consequentes. (ROSAS; ARAGÃO apud SOUZA, 2013, p. 305)
Não há nenhuma novidade no que aqui se afirma. A consciência da necessidade de uniformizar a jurisprudência, na prática jurídica brasileira, vem de longa data, sendo, para limitar-se a análise à ordem jurídica de 1988, a atribuição precípua do STJ a de conferir interpretação unívoca ao direito federal e, no que tange ao STF, declarar o sentido a ser atribuído aos princípios e regras de estatura constitucional. Trata-se de verdade sempre presente na experiência jurídica nacional. O que, contraditoriamente, não se fez até a presente data, foi, de maneira clara e destemida, suprimir, de uma vez por todas, a possibilidade de edição de decisão contrária à interpretação consolidada dos tribunais superiores, estratégia que, nos dias atuais, resta ainda limitada à matéria objeto de súmula vinculante. E, enquanto não se avança nesse sentido, assiste a sociedade brasileira à injustiça pelas mãos da Justiça, a desigualdade descarada por quem tem o dever funcional de promover a igualdade material.
Em um Estado de Direito, não há igualdade sem igualdade perante a jurisdição, que compreende a) a igualdade no processo – paridade de armas e respeito ao contraditório, b) a igualdade ao processo – igualdade de acesso à jurisdição e igualdade de procedimentos e de técnicas processuais e c) a igualdade diante das decisões judiciais – tratamento judicial igualitário de casos idênticos (MARINONI, 2013, p. 138-146). Vale dizer: em um contexto de plurissignificação da legislação construída a partir de cláusulas abertas e indeterminadas e, ainda, ante a sempre presente faculdade outorgada ao juiz da causa de proceder ao controle difuso de constitucionalidade, de nada adianta a igualdade perante a lei se não houver igualdade perante a interpretação judicial da lei.
A regra da vinculação às decisões anteriores, por uniformizar as manifestações do Poder Judiciário para casos idênticos, contribui para a efetivação do princípio da isonomia em sua perspectiva material. Favorece, por essa razão, a concretização do ideal de justiça, promovendo, pari passu, a confiança e a respeitabilidade do Estado enquanto instituição.
Por tudo quanto foi examinado, verifica-se que não há, no Brasil, óbices reais à utilização do stare decisis nos moldes em que vigora nos países de common law. Vivencia-se um momento histórico de recíproca aproximação entre os sistemas jurídicos anglo-saxônico e romano-germânico, na medida em que Estados da tradição de civil law tendem a identificar e a reafirmar o papel criativo da jurisprudência, ao passo que países que se estruturaram em torno do common law têm verificado um crescimento nunca antes visto de sua produção legislativa. O ponto de equilíbrio parece ser um Judiciário consciente de seu papel criativo, e por isso mesmo, limitado, para fins de coerência, por regras de vinculação a precedentes judiciais, acompanhado de um Legislativo produtivo e atento aos anseios sociais, que possibilite, quando necessário, a evolução rápida do direito e esteja pronto a corrigir eventuais interpretações da magistratura que se afigurem destoantes da imperiosa vontade popular, sem prejuízo, contudo, da indispensável função contramajoritária da jurisdição.
Em meio a essa tensão entre Judiciário e Legislativo, presente tanto no civil law quanto no common law, o stare decisis se revela o mais aparente consenso, qual elemento estabilizador e limitativo do amplo poder jurisdicional. Ante um cenário filosófico que considera o texto legal mero dado de entrada para o fenômeno hermenêutico-jurídico (SOBOTA, 1991, p. 1), necessária a contenção do poder normativo dos tribunais, cuja mudança de orientação tem de ser justificada pela alteração das condicionantes sociais da ratio decidendi, em motivação explícita do novo entendimento e com o mais amplo cuidado em se tutelar a confiança de quem se guiou pelo precedente, sob pena de se quedar a população refém de manifestações imprevisíveis do Judiciário. A isso faz jus a sociedade em um Estado de Direito, construído sobre as bases do princípio democrático.
No Brasil, o único obstáculo à imposição da regra do stare decisis é de ordem cultural. Filiado, por herança portuguesa, à tradição romano-germânica, conviveu o País, desde antes de sua afirmação como Estado independente, com um sistema de direito que valorizava a lei e propagava o mito da sujeição do juiz ao legislador. Em um contexto de suposta ausência de criatividade judicial, desnecessário falar-se em contenção dos poderes do julgador, que, no imaginário geral, se limitava a declarar a vontade soberana da lei. O aumento da complexidade das relações sociais, fruto do desenvolvimento econômico e tecnológico, que trouxe a globalização, e, a partir do pós-guerra, na segunda metade do século XX, a ampliação da tutela internacional dos direitos humanos, que se incorporou ao constitucionalismo contemporâneo, acabaram de vez com a ilusão do juiz enquanto mera bouche de la loi, na medida em que o sentido da lei ou a própria validade formal desta passaram a se condicionar a normas constitucionais e a princípios suprapositivos, como a igualdade, as liberdades individuais e coletivas e a dignidade da pessoa humana. Não mais se justifica, pois, um olhar sobre a atividade judicial tal como efetuada no século XIX, razão da crise política vivenciada no Brasil em tempos recentes, nos quais se chegou a cogitar, inclusive, da sujeição esdrúxula do STF ao Congresso Nacional em matéria de jurisdição constitucional (Proposta de Emenda à Constituição n.º 33/2011). [12] É preciso conceber o Judiciário como instância de produção jurídico-normativa que é, pelo que se faz necessário um mínimo de contenção e de coerência em suas manifestações, razão maior da estratégia de vinculação às decisões pretéritas.
O Brasil não somente pode implementar um regime de stare decisis como, paulatinamente, tem realizado isso. As recentes reformas do Código de Processo Civil demonstram a importância que se tem conferido à jurisprudência como fonte do direito nacional, à decisão judicial como norma vocacionada para a solução de casos futuros. Apenas optou-se, por força de um apelo nitidamente cultural, por estruturar a jurisprudência vinculante não em torno de precedentes, mas a partir de súmulas, que, com seus enunciados autônomos, gerais e abstratos, fazem lembrar a lei, tida, ao longo do meio milênio de influência do direito romano-germânico em território nacional, como a fonte por excelência do Direito. A motivação, porém, é muito mais psicológica que da essência da realidade jurídica brasileira. Prova disso é que os mais novos institutos processuais (repercussão geral em recurso extraordinário e julgamento unificado de recursos especiais repetitivos) já prescindem da fixação do entendimento em enunciado de súmula, no que se verifica uma tendência de reconhecimento do papel do precedente propriamente dito no sistema. O Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil brasileiro segue no mesmo sentido, dando espaço à figura do precedente, na medida em que demandas de massa passam a ser solucionadas por meio do incidentes de resolução de demandas repetitivas. Aliás, o texto do PLNCPC, o qual, em seu art. 938, estabelece que “Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada a todos os processos que versem idêntica questão de direito” (BRASIL, 2010, p. 1), é prova inequívoca de que o precedente – e não a “súmula” – vinculante é uma realidade não apenas possível, mas em vias de implantação no direito brasileiro.
Notas
[1] A doutrina costuma elencar como elementos do precedente a ratio decidendi (tese jurídica firmada) e o obiter dictum (argumentos utilizados apenas incidentalmente pelo julgador). A ratio decidendi, por sua vez, é formada por três elementos: a) statement of material facts (descrição dos fatos materiais); b) legal reasoning (raciocínio judicial); c) judgement (juízo decisório). Cf. DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 381. Para uma consideração detalhada sobre o stare decisis e o conceito de precedente judicial, vide LIMA JÚNIOR, 2014, p. 1.
[2] Especificamente nos Estados Unidos da América, no âmbito do stare decisis, consolidou-se a prática da formulação de “distinções inconsistentes” como instrumento dos tribunais para afastamento do precedente (técnica do drawing of inconsistent distinctions). Note-se, porém, que, inclusive lá, o instituto somente é utilizado em situações excepcionais, como quando a corte ainda não está plenamente convencida da necessidade de revogação do precedente e, portanto, com a decisão, acaba por sinalizar a intenção de mudança, ou, ainda, quando, apesar de ciente da necessidade de revogação, pretende tutelar a confiança justificada, impedindo que quem confiou no precedente, balizando por ele suas relações sociais, seja integralmente derrotado no Judiciário. Isto é, na prática, o que se denomina, entre os norte-americanos, de “distinção inconsistente” é uma técnica substitutiva da revogação parcial (overruling) justificada pelo caráter tipicamente provisório do período que contempla um processo de superação de determinada orientação jurisprudencial. Cf. MARINONI, 2013, p. 350-351.
[3] BRASIL, 1988, p. 1: “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”
[4] BRASIL, 1988, p. 1: “Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 02/09/99)”
[5] BRASIL, 1988, p. 1: “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)”
[6] BRASIL, 1988, p. 1: “Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) § 1º O servidor público estável só perderá o cargo: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) I - em virtude de sentença judicial transitada em julgado; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) II - mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)”
[7] BRASIL, 1988, p. 1: “Art. 96. Compete privativamente: I - aos tribunais: a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;”
[8] BRASIL, 1988, p. 1: “Art. 5º. (...) XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;
[9] BRASIL, 1988, p. 1: “Art. 5º. (...) LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
[10] Para uma análise das técnicas de aplicação, interpretação e superação de precedentes no sistema jurídico anglo-saxônico, vide MARINONI, 2013, p. 325-388.
[11] A previsibilidade está um passo à frente da estabilidade: de tão estável, o Direito torna-se previsível ou “certo”. É de se observar, contudo, que, não obstante a terminologia empregada no common law, a rigor, não se pode falar em “certeza” (certainty) da norma jurídica, porquanto é sempre possível que se opere a evolução jurisprudencial do Direito, a qual, em sede de stare decisis, realiza-se com a revogação total ou parcial dos precedentes judiciais, na forma do overruling (LIMA, 2013, p. 160). A certeza, conceito próprio do campo das ciências exatas, não é facilmente transponível ao Direito. É a previsibilidade, assim, não a certeza matemática do direito a ser declarado pela autoridade judicial, mas, em vez disso, o grau máximo de conhecimento da norma jurídica a que se pode chegar antes do processo – o que, porém, não a torna menos necessária.
[12] A referida PEC altera a quantidade mínima de votos de membros de tribunais para declaração de inconstitucionalidade de leis, condiciona o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal à aprovação pelo Poder Legislativo e submete ao Congresso Nacional a decisão do Supremo sobre a inconstitucionalidade de Emendas à Constituição (BRASIL, 2011, p. 1). Foi aprovada pela Comissão de Constituição de Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados em 24/03/2013 e, após intensa repercussão negativa na mídia e no meio jurídico, teve sua tramitação suspensa, mas, até a conclusão deste trabalho, ainda não havia sido arquivada. Na justificativa da proposta, o Deputado Nazareno Fonteles, autor do projeto, assim se manifesta: “O protagonismo alcançado pelo Poder Judiciário, especialmente dos órgãos de cúpula, é fato notório nos dias atuais. A manifestação desse protagonismo tem ocorrido sob duas vertentes que, embora semelhantes, possuem contornos distintos: a judicialização das relações sociais e o ativismo judicial. (...) O ativismo judicial tem sido fomentado pelo sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, que combina aspectos dos sistemas americano e europeu, sendo considerado um dos mais abrangentes do mundo. (...) O fato é que, em prejuízo da democracia, a hipertrofia do Poder Judiciário vem deslocando boa parte do debate de questões relevantes do Legislativo para o Judiciário. Disso são exemplos a questão das ações afirmativas baseadas em cotas raciais, a questão das células tronco e tantas outras. As decisões proferidas nesses casos carecerão de legitimidade democrática porque não passaram pelo exame do Congresso Nacional.” (BRASIL, 2011, p. 1) Trata-se, como dito, de proposta absurda, porquanto fundada em olhar retrógrado sobre a função judicial, a qual, ante a nova ordem dos direitos humanos internacionais, comporta o dever de agir contrariamente à vontade da maioria para assegurar os direitos das minorias ou de um único indivíduo, ainda que não se mostrem organizados politicamente ao ponto de ostentarem representação no Parlamento (caráter contramajoritário da jurisdição), razão maior da opção política do constituinte brasileiro pela afirmação do princípio democrático por um Judiciário selecionado por critérios técnicos, e não eleito pela população. Ademais, desapercebe-se o autor da proposta que, independentemente do que venha a ser decidido pelo STF, é sempre possível ao Legislativo exercer seu papel legiferante, incluindo reformas constitucionais que, não violando cláusulas pétreas ou princípios fundamentais, limitam formalmente o julgador, sobrepondo eventuais decisões judiciais que vigorem no vazio normativo.
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Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Pós-Graduado em Direito Empresarial pela Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Ex-Assessor judicial da Justiça Federal da 5ª Região (TRF-5). Ex-Assessor jurídico do Ministério Público Federal (MPF) na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CLáUDIO RICARDO SILVA LIMA JúNIOR, . Aplicabilidade da regra do stare decisis ao direito brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 ago 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40475/aplicabilidade-da-regra-do-stare-decisis-ao-direito-brasileiro. Acesso em: 21 nov 2024.
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