RESUMO: Este artigo tem por primado a análise crítica quanto ao seguinte questionamento, literalmente discutível: o Judiciário, a Justiça e as Leis caminham na mesma direção? Para tanto, serão abordadas as necessárias considerações acerca dos conceitos envolvidos: a sociedade em si, que sem ela, seria impossível o estudo do direito, assim como os relativos ao Judiciário, à Justiça e às Leis. Por meio de estudos e pesquisas doutrinárias, conclui-se que os referidos conceitos encontram-se diretamente interligados, na medida em que as leis devem assegurar a justiça, isso por intermédio da aplicabilidade por parte do Poder Judiciário, sendo certo, porém, que a realidade prática em muitos casos não corresponde à teórica, resultando em um grande desafio para o aplicador do Direito a manutenção desses conceitos sob o mesmo trilho.
Palavras-chave: Judiciário. Justiça. Leis.
1 INTRODUÇÃO
O ser humano foi programado para viver socialmente, por sua natureza eminentemente social, é naturalmente guiado à sociedade, à convivência coletiva e a mesma é passiva de conflitos de interesses, tendo em vista os múltiplos fatores que atuam sobre as formas de convivência.
E é assim que surge a importância do Direto como principal forma de controle social capaz de manter e garantir a ordem, a paz e a segurança, tornando possível a sociedade em todas as suas etapas de evolução, isso porque pressiona à adesão de comportamentos, reprimindo os desvios.
Vale dizer, o Direito, como produto de decisões do Estado, é instrumento de controle social e ajuda o Estado a cumprir tal função, pois, ao estabilizar as expectativas, reduz a complexidade social e se torna fator de integração institucional.
O Direito tem a indispensável missão de modelar os comportamentos humanos, para considerá-los lícitos ou ilícitos, é a grande coluna que sustenta a sociedade. É por essa razão que as normas jurídicas são acompanhadas de sanções que visam reprimir os atos sociais que vão de encontro ao que nelas estabelecido.
Os conceitos de Judiciário, Justiça e Leis são aplicados à convivência em sociedade. Há uma relação recíproca: para o Direito, a sociedade é um grupo de pessoas em estado de interação regidas sob leis comuns, visando a harmonia da mesma. Enfim, onde se encontra sociedade, se encontra o direito e a sociedade sem o direito não existe, e vice-versa. Nesse sentido, faz-se necessário perquirir acerca da convergência de direção entre o Judiciário, a Justiça e as Leis.
2 CONCEITOS ENVOLVIDOS
No que pertine ao Poder Judiciário, tem-se que esse se constitui em um dos três poderes da República, ao qual compete privativamente e como função precípua promover a administração da justiça, tendo por missão aplicar a lei a fatos trazidos à sua apreciação. Vale dizer, a função típica do Poder Judiciário é aplicar a lei ao caso concreto, resolvendo um conflito de interesses em substituição à vontade das partes, com força de definitividade.
Por intermédio de suas atribuições de jurisdição e competência, cumpre-lhe declarar o direito e administrar a justiça, porquanto a Constituição Federal assegura a todos que a lei não poderá excluir de sua apreciação qualquer lesão ou ameaça a direito (art. 5º, inciso XXXV, da CF/88).
Sua instância mais alta é o Supremo Tribunal Federal, sendo ainda órgãos do Poder Judiciário o Conselho Nacional de Justiça (incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004), o Superior Tribunal de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais, os Tribunais e Juízes do Trabalho, os Tribunais e Juízes Eleitorais, os Tribunais e Juízes Militares e os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios (art. 92 da CF/88).
Por força do artigo 2º da Carta Magna, tem-se que o Poder Judiciário é independente em relação aos demais poderes, sendo certo ainda que emana da soberania nacional, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso I, da CF/88), e é exercido por órgãos dotados da própria autoridade estatal, embora os Estados federados organizem e mantenham as respectivas justiças.
O Poder Judiciário também é responsável pelo controle de constitucionalidade, visando à manutenção da força normativa da Constituição Federal.
Com efeito, em um dado momento histórico, as Constituições surgem como enunciados de princípios, como um elenco de intenções. No entanto, a partir do século XX, surge a ideia da força normativa da Constituição, o que faz com que essa se transforme em norma jurídica diferenciada, com imperatividade reforçada. O seu texto, de onde retiramos a norma, não é mais apenas uma declaração. A Constituição obriga.
Nesse sentido, tem-se que o encarregado da obediência da norma constitucional é o Poder Judiciário, por intermédio do controle de constitucionalidade, que é um instrumento para garantir a força normativa da Constituição.
De igual modo, pode-se ainda dizer que ao Poder Judiciário cabe a concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, tais como vida, liberdade, igualdade, propriedade etc.
Enfim, o Poder Judiciário se apresenta constitucionalmente como o Poder da República responsável por garantir os direitos individuais, coletivos e sociais e resolver os conflitos entre cidadãos, entidades e Estado, por meio da sua típica função jurisdicional, retrata o poder-dever e a prerrogativa de compor os conflitos de interesses em cada caso concreto.
De outro norte, tem-se o termo Justiça. A relação entre Direito e Justiça é visível, na medida em que aquele é o meio e essa é o seu fim, é a finalidade perseguida pelo Direito, que é seu modo de expressão, não se pode dissociar um do outro, visto que não têm (ou pelo menos não devem ter) vidas autônomas. Justiça é a constante e firme vontade de dar a cada um o que é seu, na medida das particularidades existentes: não causar dano injusto a outrem.
A norma jurídica é inspirada (ou pelo menos deveria ser) no princípio de buscar a Justiça, a igualdade de tratamento jurídico, bem como a proporcionalidade da pena ao delito, da indenização ao dano, do preço à coisa vendida, da prestação à contraprestação, e assim por diante.
O Direito é norma executável coercitivamente, enquanto a justiça é a finalidade por aquele buscada, vale dizer, a exigência moral de realizá-la no meio social, que nem sempre é atendida, quando então entra em ação os meios coercitivos de que se vale o Direito para o fim de se buscar o justo bem comum. Enfim, a Justiça é a meta a ser atingida pelo direito e, dessa forma, distingue-se deste como o “meio” da “finalidade.”
Na outra ponta dos conceitos envolvidos no presente escrito, encontram-se as leis.
Com efeito, é função essencial do Estado estabelecer as regras da vida em sociedade por meio de um dos seus Poderes, o Legislativo, que, ao lado do Poder Executivo e do Poder Judiciário, são responsáveis pela condução do Estado.
A fonte primária e obrigatória do Direito nos países de tradição romano-germânica é a lei. A definição mais básica aponta ser a lei uma norma jurídica geral, abstrata e escrita, o que a distingue dos costumes, normas que são imediatamente obrigatórias na tradição dos sistemas jurídicos consuetudinários (common law). As principais notas caracterizadoras dos sistemas de tradição germânico-romana (civil law) são, pois, a elaboração de normas jurídicas escritas e a tendência à codificação das mesmas.
A lei não é produto espontâneo como o costume, mas fruto de elaboração discursiva, de estudos, discussões, debates, votações, sanção, publicação, que permite, com facilidade, determinar o momento em que se torna norma obrigatória, o que não ocorre com o direito consuetudinário.
Conforme nos ensina DIMITRI DIMOULIS:
“A preferência pelo direito escrito corresponde a duas exigências: por um lado, atende o requisito da segurança jurídica […], já que a palavra escrita permite a comprovação da existência da norma e sua interpretação de forma muito mais objetiva do que a comunicação oral. Por outro lado, a forma escrita satisfaz a exigência da publicidade, podendo o escrito alcançar a todos os interessados, sendo divulgado de forma rápida, eficaz e segura.”[1]
Em sentido amplo, pode-se dizer que lei é toda norma geral de conduta, que disciplina as relações de fato incidentes no direito e cuja observância é imposta pelo poder estatal, é a forma poderosa, visto que é coercitiva, ou seja, é a emanação de autoridade reconhecida e imposta coercitivamente à obediência de todos. É aprovada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo. Tem validade, eficácia e aplicabilidade no território do Estado (princípio da territorialidade do direito).
Nesse sentido, WALLACE RICARDO MAGRI preleciona que as leis são compostas por três elementos essenciais, quais sejam, material, formal e instrumental, senão veja-se:
“3. Elemento material. A lei é um preceito geral, abstrato e permanente. a) Geral: porque obriga a todos os jurisdicionados indistintamente; b) Abstrato: porque prevê casos em tese que abarcam variadas situações da vida social; c) Permanente: porque, uma vez validamente inserida no ordenamento jurídico, tem vocação de perdurar no tempo, observadas as regras de vigência e revogação da norma jurídica.
4. Elemento formal. A lei, para que passe a integrar o ordenamento jurídico, deve obedecer a determinadas formalidades, daí falarmos em elemento formal da lei que corresponde ao processo legislativo.
[…].
5. Elemento instrumental. A lei, por ser um comando que obriga a todos sob pena de sanção, deve ser escrita para que seja do conhecimento de todos.”[2] (grifo original).
Portanto, caracteriza-se a lei por ser uma uma norma escrita, geral e abstrata, garantida pelo Poder Público, aplicável por órgãos do Estado enquanto não revogada.
3 O JUDICIÁRIO, A JUSTIÇA E AS LEIS CAMINHAM NA MESMA DIREÇÃO?
Tecidas essas considerações conceituais, eis que surge a indagação objeto do presente escrito: o Judiciário, a Justiça e as Leis caminham na mesma direção? É fato: as leis foram criadas para assegurar a Justiça perante as relações sociais, por intermédio da garantia de seu cumprimento por parte do Poder Judiciário.
No entanto, apesar de cada um desses conceitos depender intrinsecamente um do outro para pôr em prática os fins a que se propõem e de necessitarem conviver, pois, de forma harmônica, tem-se que a realidade prática se apresenta, por vezes, contraditória, na medida em que é perceptível e notória a existência de uma distância entre o plano da teoria e o plano da prática.
Criadas pelo Poder Legislativo, as leis asseguram os direitos e deveres mais necessários para a manutenção da justiça social e a convivência harmônica em sociedade. Por sua vez, é por meio do Poder Judiciário que a aplicabilidade dessas normas tem uma garantia. Infelizmente, sabe-se que isso nem sempre acontece e, muitas vezes, acaba-se por tornar o arcabouço legislativo pátrio em obras fadadas ao lixo cultural. Nesse sentido, forçoso reconhecer que leis escritas e não praticadas são piores do que leis precisas e não escritas.
Por outro lado, há de se ponderar também a possibilidade de, em determinadas situações, a mera subsunção da lei ao caso trazido ao Judiciário resultar em uma injustiça. Certamente, esse não é um caminho que deve ser trilhado pelo Poder garantidor da Justiça.
Em verdade, com o hodierno avanço, contínuo e desenfreado, das relações sociais, já não se mostra incomum o fato de uma determinada hipótese normativa não mais se subsumir ao fato que previamente a originou; ou mesmo, se subsumir, mas, em assim o fazendo, alcançar um resultado desproporcional.
Para ilustrar, LUIS RECASÉNS SICHES cita em sua obra um fato ocorrido em uma estação ferroviária da Polônia, onde se proibia a entrada de pessoas acompanhadas de cães, e um dia chega ali um camponês fazendo-se acompanhar de um urso. Pela mera subsunção da norma legal, o urso não se enquadra na categoria dos caninos, de ordem que não haveria proibição. Porém, não se discute o fato de ser inteiramente razoável admitir-se que tal comando se estenda sem sombra de dúvidas aos ursos.[3]
Nesses casos, o aplicador do Direito, consubstanciado na figura do Poder Judiciário, para o fim de manter sob a mesma direção os conceitos estudados, poderá (deverá) afastar a norma ou interpretá-la no sentido de melhor alcançar o seu objetivo, fazendo Justiça no caso concreto.
Portanto, nada obstante seja o desejo de todos que o Judiciário, a Justiça e as Leis estejam sob a mesma direção, o desafio de mantê-los sob o mesmo trilho é constante e exige um árduo trabalho por parte dos aplicadores do Direito, na medida em que nem sempre a aplicação da lei ao caso concreto se revelará a providência mais justa ou racional.
Se as experiências práticas fossem tão perfeitas como as teorias estudadas, certamente Judiciário, Justiça e Leis estariam caminhando sempre juntos, não deixando assim, visíveis lacunas para discussão (se bem que este é o fascínio que engloba o mundo jurídico), apesar de no Direito nada ser exato ou absoluto.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito está intimamente ligado ao conceito de sociedade, bem como essa ao conceito de direito. Essa correlação se manifesta justamente na função exercida pelo direito na sociedade, qual seja, a função ordenadora, agindo a ordem jurídica como vetor de organização social, materializando-se na coordenação dos interesses antagônicos manifestados pelos seus membros, harmonizando as relações sociais intersubjetivas, de modo que essa ordem atue como forma de controle social.
Os conceitos de Judiciário, Justiça e Leis são aplicados à convivência em sociedade. Há uma relação recíproca: para o Direito, a sociedade é um grupo de pessoas em estado de interação regidas sob leis comuns, visando a justa harmonia da mesma. Enfim, onde se encontra sociedade, se encontra o direito e a sociedade sem o direito não existe, e vice-versa.
Com efeito, a convivência harmônica no âmbito das relações sociais exige uma convergência de caminho entre o Poder Judiciário, a Justiça e as Leis. No entanto, até mesmo em razão do hodierno avanço contínuo e desenfreado dessas relações, em muitos casos, a aplicabilidade da realidade teórica à prática revelará o surgimento de uma realidade injusta e desproporcional.
Com efeito, em muitos casos, o desafio de manter sob o mesmo trilho o Judiciário, a Justiça e as Leis poderá demandar do Poder responsável pelo exercício da função jurisdicional o afastamento de uma determinada norma ou interpretação no caso concreto, sob pena de a obediência incondicional à lei resultar numa situação de injustiça.
Portanto, nada obstante seja o desejo de todos que o Judiciário, a Justiça e as Leis estejam sob a mesma direção, o desafio de mantê-los sob o mesmo trilho é constante e exige um árduo trabalho por parte dos aplicadores do Direito, na medida em que nem sempre a aplicação da lei ao caso concreto se revelará a providência mais justa ou racional.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
DIMOULIS, Dimitri. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
Enciclopédia BARSA. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda. Volumes 1, 10 e 12. Rio de Janeiro – São Paulo, 1994.
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
LUIZ, Valter Corrêa. Introdução ao Estudo do Direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
SICHES, Luis Recaséns. Tratado General de Filosofia del Derecho. 5ª ed. México: Editorial Porrua, 1975.
Vade Mecum humanístico / coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Nathaly Campitelli Roque. 3ª. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
[1] Manual de Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 73.
[2] Vade Mecum humanístico / coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Nathaly Campitelli Roque. 3ª. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 22-23
[3] Tratado General de Filosofia del Derecho. 5ª ed. México: Editorial Porrua, 1975.
Assessor Jurídico Ministerial da 15ª Procuradoria de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. Bacharel em Direito e Pós-graduado em Criminologia, Direito e Processo Penal pela Universidade Potiguar - UnP. Autor do livro "O Ministério Público e a Investigação Criminal: aspectos constitucionais legitimadores".
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Pablo de Oliveira. O Judiciário, a justiça e as leis caminham na mesma direção? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 ago 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40593/o-judiciario-a-justica-e-as-leis-caminham-na-mesma-direcao. Acesso em: 23 dez 2024.
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