RESUMO: Nesse artigo abordar-se-á uma das primeiras críticas feitas a Constituição de 1988 quando promulgada que foi o alegado casuísmo e patrimonialismo. Abordar-se os fatores que ocasionaram esses aspectos, desde o processo constituinte, e até que ponto corrobora ou corroborou para a perde da força normativa. Concluí-se que, embora verifica-se os dois aspectos levantados no texto, tais fatores não são preponderantes para a perda da força normativa.
Palavras-chave: Constituição. Constituição de 1988. Casuísmo. Patrimonialismo. Força normativa da constituição.
I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Nesses vários anos que já se passaram desde a promulgação da Constituição de 1988 diversas são as críticas ao seu conteúdo, muitas destas com o específico propósito de depreciá-la ou colocá-la como um entrave ao desenvolvimento nacional. Talvés a que tenha surgido até mesmo junto com a elaboração do seu texto foi a do patrimonialismo e casuismo. Embora seja interessante analisar as mais variadas críticas formuladas ao longo desses anos, ficarei restrito naquilo que diz respeito ao patrimonialismo incorporado ao texto e até que ponto pode acarretar a perda da sua força normativa.
Parto, para tanto, da assertiva de Luís Roberto Barroso ao propor que nosso texto constitucional, em alguns aspectos, tornou-se mais que analítico e sim casuístico e coorporativista/patrimonialista.
II – CASUISMO E PATRIMONIALISMO NA CONSTITUIÇÃO
Conforme Luís Roberto Barroso pode se afirmar que o texto tornou-se analítico e casuístico em primeiro, pela falta de um anteprojeto de Constituição; em segundo, em virtude da desconfiança[1] perfeitamente justificável da sociedade brasileira e seu descrédito nas instituições; em terceiro, pelo funcionamento da Assembléia Constituinte como uma constituinte congressual.
A falta de anteprojeto talvez seja o menores dos males, haja vista que a maior dificuldade foi no início do congresso constituinte, embora possa se admitir que contribuiu para uma menor organização do texto e sistematicidade. Como exemplo podemos citar o artigo 5 da Constituição, em que se observa não só um rol de direitos fundamentais, mas uma temática ampla que vai da segurança pública, aos deveres fundamentais e aos remédios constitucionais. Esse fator, como a própria prática jurisprudencial e a produção doutrinária acerca da temática dos direitos fundamentais demonstram, de longe não diminuiu a importância da matéria e própria força normativa do catálogo de direitos esculpido no artigo 5, mas não só nele, como seu parágrafo quarto estabelece.
Com relação a crítica do texto ser analítico e favorecer um patrimonialismo, para rebatê-la, pode se trazer a colação o exemplo português e espanhol, na medida em que não é exatamente um problema a sua extensão, e sim uma virtude, que, no caso brasileiro, em alguns aspectos, ultrapassou a tênue linha que separa este de um texto casuístico e detalhístico por demasia. A propósito: "Por oportunismo ou generosidade, é grave o equívoco e alto o preço da inclusão na Constituição de regras e sub-regras de ‘curto fôlego histórico, que conduzem a prematura obsolescência do texto, condenando-o ao desprestígio e à breve decadência"[2].
Nesse sentido acerca da extensão do texto, conforme Lenio Streck:
"Da dialética resultante dos confrontos políticos e sociais ocorridos no decorrer da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, optou-se por constitucionalizar as mais diversas questões, pela exata razão de que, no Brasil, a efetividade do sistema jurídico sempre deixou a desejar. Daí por que as diferentes correntes de opinião e grupos que participaram do processo constituinte - mormente às ligadas ao constitucionalismo comunitarista -, face a esse grave problema de efetividade, optaram por colocar diretamente no texto constitucional os seus anseios, esperando que, desse modo, haveria o cumprimentos das regras."[3]
O casuísmo que influenciou o Congresso Constituinte pode ser remetido, e resumido para parte da doutrina, a um fator muito importante na forma que se deu o processo constituinte brasileiro, qual seja: não foi feita um Assembleia Constituinte e sim um Congresso, responsável pela elaboração do texto constitucional e pela legislação infranconstitucional. Em resumo: o Congresso não era exclusivo.
A falta de exclusividade constituinte do congresso eleito, não só para elaboração da Lei Fundamental como também para a legislação ordinária e demais funções legislativas, muito embora não seja ideal do ponto de vista da teoria do poder constituinte, está longe de ser um vício insanável e que macule por inteira a Constituição. Ocorre que, esse aspecto, aliado ao fato de que todo constituinte era um candidato em potencial a algum cargo, seja reeleição ao parlamento ou mesmo a eleições municipais ou estaduais, corroborou para o corporativismo e patrimonialismo do texto constitucional. As decisões dos constituintes já eram cobradas nas eleições que ocorreram durante o processo e logo após a promulgação da Constituição, o que pode ter levado a um maior grau de casuísmo.
De outra banda, o resquício coorporativista está intrinsecamente relacionado com a tradição patrimonialista da formação do Estado brasileiro, refletindo na Constituição que, abrigou, dentre outros exemplos, "... os cartórios, tanto os literais como os figurados, e, de outro, acenam com benesses retóricas. O Estado, apropriado pelo estamento dominante, é o provedor de garantias múltiplas para os ricos e de promessas para os pobres."[4], [5] Como afirma Barrosso, o próprio combate ao patrimonialismo é uma das causas do longo texto da Constituição, citando o capítulo que trata da Administração pública.
É lapidar o que expõe Raymundo Faoro:
"A comunidade política conduz, comanda, supervisiona, os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar, nos casos extremos. Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade assenta no tradicionalismo - assim é porque sempre foi."[6]
Essas, em linhas gerais são as causas do casuísmo e patrimonialismo que influenciou o Congresso Constituinte. Passamos, agora, as consequências que tais fatores tiveram no texto e na realidade constitucional subjacente.
III – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como descrevemos, o caráter análitico-casuístico, foi provocado pelas circunstâncias inerentes ao processo constituinte e o patrimonialismo e também coorporativismo, vêm de longa data na história brasileira, levando-nos a concordar e afirmar com Barroso, que:
A verdade é que, em uma síntese de diversos males históricos, acumulamos, nesses primeiros 500 anos, as relações de dependência social do feudalismo, a vocação autoritária do absolutismo e o modelo excludente da aristocracia. A Constituição de 1988 é vítima, e não causa, dessas vicissitudes. E a muitas delas combate com bravura. A outras capitulou [7].
Portanto, a Constituição de 1988, embora verifica-se um casuísmo e patrimonialismo em seu texto, não é o problema central para a perda força normativa da Constituição, e sim, sua não efetivação de seu programa constitucional[8].
Nesse sentido:
"A Constituição - e tudo que representa o constitucionalismo contemporâneo - ainda não atingiu o devido lugar de destaque (portanto, cimeiro) no campo jurídico brasileiro. Nesse sentido vem bem a propósito a indagação de Gisele Cittadino: ou a Constituição é, na medida em que organiza a vida político-estatal e regula a relação Estado-cidadão, apenas um ordenamento marco e, portanto, o entendimento dos direitos fundamentais se resume a direitos subjetivos de liberdade voltados para a defesa contra a ingerência indevida do Estado, ou a Constituição é a ordem jurídica fundamental de uma comunidade em seu conjunto e a isso corresponde uma concepção dos direitos fundamentais como normas objetivas de princípio que atuam em todos os âmbitos do Direito? Lamentavelmente, a cultura jurídica brasileira (pensamento jurídico-dogmático dominante), positivista e privatista, defende uma concepção de Constituição que está inserida na primeira hipótese. E os prejuízos são inaculáveis, na medida em que o mundo da infraconstitucionalidade supera a força normativa emergente da norma superior"[9].
Retornando a Barroso, tal fato é verificado nas promessas não cumpridas das normas programáticas ou normas-fim, sendo este o problema fundamental de nossa Lei Maior[10], e não seu casuísmo e patrimonialismo. Desse modo, cabe não deixarmos, "... que o texto constitucional não se transforme em um latifúndio improdutivo, e que, em sua riqueza principiológica, não continue a ser vítima de grilhagem hermenêutica... e nem sentido seja só-negado!" (grifo do autor)[11], que lava, à análise da atual práxis constitucional brasileira.
Por conseguinte, o casuísmo e patrimonialismo verificado na Constituição de 1988, como uma decorrência do processo constituinte e suas vicissitudes – que não estão descoladas da realidade nacional – não são um fator preponderante para a perde de força normativa da lei maior, mas sim o não cumprimento das promessas e do ideário esculpidos no texto da Constituição cidadã e certamente a mais republicana da histórica brasileira.
IV – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luís Roberto. "Dez anos da constituição de 1988 (Foi bom para você também), in. O Direito Público em Tempos de Crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel", Organização Ingo Wolfgang Sarlet, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999.
_________. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas normas - limites e possibilidade da Constituição Brasileira, 7a ed., Renovar, Rio de Janeiro e São Paulo, 2003.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, Coimbra Editora Ltda., Coimbra, Portugal, 1994.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato brasileiro, 3a ed., Editora Globo, São Paulo, 2001.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1998.
STRECK, Lenio Luis. "E que o Texto Constitucional não se transforme em um latifúndio improdutivo... - uma crítica à ineficácia do Direito", in. O Direito Público em Tempos de Crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel", Organização Ingo Wolfgang Sarlet, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999.
VERONESE, Osmar. Constituição: reformar para que(m)?, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999.
[1] Nesse sentido, é a posição do professor Ingo Sarlet: "... cumpre salientar que o procedimento analítico do Constituinte revela certa desconfiança em relação ao legislador infraconstitucional, além de demonstrar a intenção de salvaguardar uma série de reivindicações e conquistas contra uma eventual erosão ou supressão pelos Poderes constituídos." SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1998, p. 67.
[2] BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas normas - limites e possibilidade da Constituição Brasileira, 7a ed., Renovar, Rio de Janeiro e São Paulo, 2003, p. 56.
[3] STRECK, Lenio Luis. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2002, p. 358.
[4] BARROSO, Luís Roberto. "Dez anos da constituição de 1988 (Foi bom para você também), in. O Direito Público em Tempos de Crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel", Organização Ingo Wolfgang Sarlet, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999, p. 214.
[5] Os cartórios literais, são os referentes aos serviços notariais, regrados pelo Art. 236 da Constituição Federal, e os figurados, na citação do autor, refere-se ao art. 199, § 3o, que veda a participação de capital estrangeiro, salvo com previsão legal, na assistência de saúde.
[6] FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato brasileiro, 3a ed., Editora Globo, São Paulo, 2001, p. 819.
[7] BARROSO, Luís Roberto. "Dez anos da constituição de 1988 (Foi bom para você também), in. O Direito Público em Tempos de Crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel", Organização Ingo Wolfgang Sarlet, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999, p. 215.
[8] Nesse sentido é o posicionamento de Osmar Veronese, expondo que: "... a Constituição brasileira de 1988 está muito distante de ser uma obra perfeita, por ser um criação humana e, mormente, por ser fruto do trabalho de parlamentares pressionados por grupos e interesses distintos (...) - apregoando o autor - duas eivas a reclamar corretivos: a má aplicação e a não-aplicação dos dispositivos constitucionais." VERONESE, Osmar. Constituição: reformar para que(m)?, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999, p. 155.
[9] STRECK, Lenio Luis. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. op. cit., p. 31.
[10] Nesse sentido, referindo-se a diferenciação entre normas e princípios, como critério a imediata aplicação das primeiras, sendo que os princípios necessitariam de uma normatização, Canotilho, expõe que: "A distinção, sem quaisquer outras precisões, é inconsequente em numerosas questões constitucionais, pois muitas normas (normas programáticas, normas fins), carecem também de «concretização», sendo precisamente esse um dos problemas fundamentais da constituição dirigente". CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, Coimbra Editora Ltda., Coimbra, Portugal, 1994, p. 280.
[11] STRECK, Lenio Luis. "E que o Texto Constitucional não se transforme em um latifúndio improdutivo... - uma crítica à ineficácia do Direito", in. O Direito Público em Tempos de Crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel", Organização Ingo Wolfgang Sarlet, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999, p. 188.
Procurador Federal da Adovocacia-Geral da União - AGU, especialista em Direito Público pela Universidade Nacional de Brasília - UNB, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FURIAN, Leonardo. O casuísmo e o patrimonialísmo na Constituição de 1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 ago 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40614/o-casuismo-e-o-patrimonialismo-na-constituicao-de-1988. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.