Já há algum tempo que se pode notar no Direito Brasileiro uma alteração das funções que se atribui aos Tribunais Superiores, principalmente ao Supremo Tribunal Federal.
Afasta-se, seja em razão da promulgação de leis, seja pela releitura feita pelos próprios Tribunais Superiores de seu papel perante a sociedade, a idéia de que eles devam atuar como meros órgãos revisores das decisões proferidas pelos Tribunais de segunda instância.
As mudanças empreendidas atribuíram aos Tribunais Superiores um papel mais consentâneo com a competência que lhes atribui a Constituição da República.
Assim, ao Superior Tribunal Federal compete a guarda da Constituição e, conseqüentemente, a análise acerca da constitucionalidade das leis. A ele compete a tarefa de atribuir unidade ao ordenamento jurídico a partir dos ditames da Constituição, bem como de modernizar o direito a partir de interpretações mais adequadas aos novos desafios que exigem dos operadores do Direito novos critérios jurídicos.[1]
Já ao Superior Tribunal de Justiça é atribuída a interpretação e preservação da legislação federal em seu âmbito material de competência, bem como a uniformização da jurisprudência quanto à interpretação e aplicação de tais espécies de norma.
Fredie Didier Jr. assevera que uma vez que a função de explicitar o sentido das normas infraconstitucionais compete ao Superior Tribunal de Justiça, a decisão a ser proferida em um caso específico serviria não apenas a corrigir a decisão recorrida, mas também de paradigma a ser seguido pelos demais Tribunais[2].
João Luís Fischer sustenta que as bases do direito empírico precisam vir assinaladas a partir de posicionamentos dos Ministros do STF[3] e acrescenta que Casos paradigmáticos de conteúdo histórico advindos da mais alta corte são imprescindíveis para orientar todo arcabouço jurídico pátrio[4].
Marinoni e Mitidiero questionam qual o modo mais adequado ao Supremo Tribunal Federal exercer as funções que lhe são hordienamente atribuídas – se analisando todas as questões que são submetidas a sua apreciação ou apenas as mais relevantes – afirmando que o pensamento jurídico que prevalece atualmente é o de que a instância extraordinária justificar-se-ia não para resguardar o direito individual, (já satisfatoriamente protegido pelo duplo grau de jurisdição), mas para garantir a concreção da unidade do direito[5].
Essa tendência pode ser observada, em relação ao Supremo Tribunal Federal, na exigência para acesso ao Tribunal de repercussão geral da questão debatida, de modo que o STF somente despenderá atenção àqueles casos cuja solução possua relevância do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico[6], ou seja, exige-se que a questão a ser analisada transcenda os interesses subjetivos das partes do processo. É a chamada repercussão geral trazida, ao menos em seu formato atual, pela Lei 11.418.
Gilmar Ferreira Mendes assevera que:
A função do Supremo nos recursos extraordinários – ao menos de modo imediato – não é a de resolver litígios de fulano ou beltrano, nem a de revisar todos os pronunciamentos das cortes inferiores. O processo entre partes, trazido à Corte via recurso extraordinário, deve ser visto apenas como pressuposto para uma atividade jurisdicional que transcende os interesses subjetivos. Tal perspectiva, a par de fortalecer o papel principal da Corte, qual seja a defesa da Constituição, representa a única alternativa possível para a viabilização do Supremo[7].
Além da repercussão geral, outras alterações introduzidas no Código de Processo Civil disseminaram os chamados expedientes de compatibilização vertical, que são instrumentos que atribuem especial relevância às posições já pacificadas pelos Tribunais Superiores, que ficam desonerados de funcionar como órgão revisor da jurisprudência das cortes inferiores[8].
Essa valorização da jurisprudência pode ser observada nas chamadas súmulas impeditivas de recurso, prevista no § 1º do Artigo 518 do CPC pela qual “O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal”.
Visualiza-se esse fenômeno ainda nas regras que permitem ao relator de órgão colegiado, liminar e monocraticamente, negar seguimento a recurso cuja fundamentação esteja em confronto com “súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior[9]” ou, ainda, como possibilita o § 1o-A do artigo 557 do CPC, dar provimento, também de forma liminar e monocrática, a recurso contra a decisão recorrida quando esta “estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior”.
Além disso, merece destaque a chamada “Súmula Vinculante”, que permite ao prejudicado por decisão que deixar de aplicar o enunciado da súmula ou aplicá-la de maneira inapropriada, propor, diretamente ao Supremo Tribunal Federal, reclamação objetivando restabelecer a compatibilidade vertical.
Isso sem falar nos artigos 543-B e 543-C que previram procedimento diferenciado para os casos em que haja multiplicidade de recursos extraordinários e especiais com idêntico fundamento, hipótese que merece análise mais acurada.
Diante da hipótese de multiplicidade de recursos cuja fundamentação seja idêntica, caberá aos Tribunais de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça, conforme o caso, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte[10]. No caso do STJ, não adotada tal providência pelo Tribunal de segunda instância, é possível, diante da verificação de que já há posição firmada ou que a questão já se encontra submetida à Corte especial, a determinação de que não subam mais recursos com o mesmo fundamento[11].
As decisões nesse caso produzirão efeitos para além dos processos em que proferidas, já que em ambos os casos os Tribunais inferiores poderão declarar prejudicados os recursos interpostos na origem, quando a decisão recorrida possuir o mesmo entendimento adotado pelo Tribunal Superior ou retratar-se, adequando a decisão às razões de decidir adotadas pelo STF ou STJ, (a depender do caso concreto)[12].
Note-se essa vinculação às razões de decidir adotadas pelo Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça é essencial para o funcionamento do procedimento especial previsto para o caso de recursos repetitivos com idêntico fundamento, haja vista que, inicialmente, apenas alguns processos subirão às mais elevadas cortes do país para apreciação. A decisão proferida nestes processos será paradigmática, servindo de norte para os demais Tribunais que deverão adotá-las. Os recursos excepcionais (especial ou extraordinário) somente serão admitidos caso a decisão dos Tribunais inferiores contrariarem o precedente formado, do contrário serão inadmitidos na origem por contrariar a posição dominante no Tribunal Superior.
Com efeito, o fato de o resultado de dada demanda influenciar no resultado de outras é a razão de ser dos artigos 14, § 7º, in fine, da Lei 10.259/2001[13], 543-A, § 6º[14] e 543-C, § 4º [15] do CPC, que prevêem a possibilidade de terceiros estranhos ao processo nele intervirem para o fim de trazer elementos que auxiliem uma decisão mais correta.
A mesma intenção impregna a parte inicial do § 7º do artigo 14 da Lei 10.259/01 e o § 3º do Artigo 543-C[16], que permitem que sejam colhidas informações de outros órgãos do Poder Judiciário acerca da demanda.
Busca-se com isso permitir que se leve àquele processo todos os elementos necessários para que a decisão a ser proferida seja a mais acertada possível, uma vez que será paradigmática, servirá como leading case a nortear as situações jurídicas análogas[17].
Objetivação do Recurso Extraordinário
Dentre as significantes alterações pelas quais vem passando o Processo Civil brasileiro, não há como não dar relevo à que diz respeito ao sistema de controle de constitucionalidade. Essa mudança, é bom que se diga, não resulta apenas do trabalho do legislador, mas também é fruto da evolução do entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca do papel do Recurso Extraordinário.
Tradicionalmente, o Recurso Extraordinário sempre foi encarado como o instrumento por excelência para o exercício do controle difuso de constitucionalidade. Há que se ressaltar que embora o controle difuso esteja ligado à idéia de controle concreto de constitucionalidade das leis, tais institutos não se confundem.
Diz-se que o sistema é difuso (ou aberto) quando se permite que a análise da constitucionalidade das leis seja realizada por qualquer órgão jurisdicional, ou seja, por qualquer componente do Poder Judiciário. Esse sistema originou-se nos Estados Unidos da América, em 1803, com o julgamento do leading case Marbury vs. Madison, relatado pelo Chief Justice da Corte Suprema americana John Marshal, sendo conhecido como sistema americano de controle[18].
Contrapõe-se ao sistema concentrado, (ou austríaco) idealizado em 1920 a partir das idéias de Hans Kelsen, no qual o cotejo entre as leis de índole infraconstitucional e a Constituição é função atribuída com caráter de exclusividade à Corte Constitucional, que não deveria desempenhar nenhuma outra função (ou, excepcionalmente a um número restrito de órgãos judiciais)[19].
Ao lado da conceituação de modelos ou de sistemas de controle judicial é preciso introduzir a noção de vias de controle judicial, que se traduz na forma pela qual o Judiciário exercerá o controle, podendo ocorrer de forma concreta (incidenter tantun) ou abstrata (pricipaliter tantun)[20].
O controle concreto de constitucionalidade é instaurado com o fim precípuo de solucionar uma controvérsia, por fim a uma lide. Com efeito, as partes debatem a inconstitucionalidade da lei apenas como questão prejudicial de mérito, incidentalmente. Busca-se a declaração apenas como meio apto a afastar a incidência da norma atacada naquele caso concreto. O objeto mediato, o bem da vida buscado pelo autor não é a retirada da regra inconstitucional do ordenamento, em si[21].
Considerando que no controle concreto a (in)constitucionalidade da norma será analisada na sentença apenas como razão de decidir, essa manifestação situar-se-á na fundamentação da decisão, não sendo atingida pela coisa julgada. Assim, tradicionalmente, sempre se entendeu que a solução dada pelo Juízo ou Tribunal ao caso específico não vincularia decisões futuras, seja interna, seja externamente, salvo se o Senado sustasse, com efeito erga omnes e ex nunc a aplicação da norma, com fulcro no inciso X do Artigo 52 da Constituição da República[22].
Já a finalidade visada no controle abstrato, é a defesa do ordenamento jurídico. A análise não é feita a partir de um caso concreto, mas leva em consideração a lei em tese. O objeto litigioso do processo, o pedido deduzido pelo autor é justamente a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinada regra legal.
Por isso, ao julgar o pedido procedente ou improcedente, estar-se-á declarando se aquele dispositivo impugnado deve ou não ser expurgado do ordenamento jurídico. Como tal declaração é feita no dispositivo da decisão, a posição manifestada Tribunal (no Brasil a função é exercida pelo Supremo Tribunal Federal, com exclusividade) estará abrangida pela coisa julgada e gozará de eficácia erga omnes, vinculando decisões futuras.
Com efeito, no controle abstrato, ao contrário do que normalmente ocorre nos ditos processos subjetivos, a coisa julgada nas ações de controle concentrado de constitucioalidade opera efeitos erga omnes (art. 28. p. Único, da Lei 9.868/99; art. 102, parag 2º, da CF). Isto quer dizer que, quanto aos seus limites subjetivos, ela atinge tantos quantos sejam os sujeitos submetidos à jurisdição do STF, ainda que não participantes do processo em que tal decisão se formou.[23]
Pelo que foi exposto, é possível perceber que pode ocorrer de o controle de constitucionalidade ser difuso (pois apreciado em sede de recurso extraordinário), mas abstrato (apreciado a partir da lei em tese). Nesse caso a decisão será eficaz tão-somente em relação às partes que compuseram o processo,mas a análise da lei, haja vista ser realizada abstratamente, vinculará o Tribunal a adotar o mesmo posicionamento ao analisar casos da mesma natureza[24].
A chamada objetivação do controle concreto de constitucionalidade, ou como prefere Fredie Didier Junior, abstrativização do recurso extraordinário, consiste na possibilidade de as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade irradiar efeitos para além daquele processo nas quais foram proferidas. Obviamente, não para impor o resultado a terceiros que não integraram a lide ou para atribuir-lhe a qualidade da coisa julgada material (efeito erga omnes), mas para o fim de acarretar a vinculação do próprio Tribunal para decisões futuras, bem como servindo de paradigma aos demais Juízos e Tribunais, (efeito ultra partes), que deverão observá-la, já que ao STF compete a interpretação da Constituição[25].
Conforme leciona José Levi Mello do Amaral Júnior[26]
“A decisão plenária não se equipara plenamente às decisões tomadas no controle em abstrato de constitucionalidade dado não surtir efeito típico erga omnes de, por exemplo, uma ação direta de constitucionalidade. Mas, por outro lado, fica muito longe de se restringir ao caso concreto que lhe deu ensejo, porquanto dela emana – em razão de normas legais e regimentais – eficácia vinculante intra muros, isto é vincula os colegiados fracionários do Tribunal que dirimiu o incidente, valendo para todos os casos concretos subseqüentes que envolvam a mesma quaestio iuris constitucional”.
Isso é o que o ocorre no procedimento de argüição de inconstitucionalidade perante Tribunais. Ao se deparar com questão já decidida pelo Pleno ou Corte Especial, o órgão fracionário ficará desobrigado a submeter a questão novamente a apreciação.
Mancuso adverte que mesmo no caso em que a manifestação do Supremo ocorra por via difusa, no controle concentrado, não há como restringir a eficácia da decisão às partes que integram o processo em que proferida, seja pela proeminência do órgão prolator a quem compete de forma precípua a guarda da Constituição, seja em razão do princípio da isonomia que deve abranger não apenas a norma legislada, mas também a norma judicada e que não seria atingida se uma norma já considerada inconstitucional pelo Supremo, ainda que ao analisar caso específico pudesse continuar a gerar efeitos em relação aos demais jurisdicionados[27].
Aliás, essa conclusão pode ser extraída a partir do entendimento de que a função do Supremo não é a de solucionar conflitos específicos, mas de firmar a orientação da jurisprudência nacional acerca da matéria constitucional. Assim, no processo de controle de constitucionalidade, dado o nítido interesse público na solução do litígio, mais do que partes, os litigantes atuam como vetores que, por meio do caso concreto levam ao Supremo a discussão acerca da constitucionalidade de determinada lei[28].
Essa abstrativização vem ao encontro do entendimento adotado pelos modernos Sistemas Constitucionais de que a Corte Suprema de um país não pode ser encarada como mero Tribunal de Apelação. Ou seja, sua função precípua não é solucionar a lide no caso concreto ou rever o acerto das decisões proferidas pelos Tribunais, mas sim dar a correta interpretação das leis do país em cotejo com a Constituição[29].
Além disso, como salienta Luiz Guilherme Marinoni,
A força da Constituição está ligada à estabilidade das decisões do Supremo Tribunal Federal. Justamente por conta disso, aplica-se ao Recurso Extraordinário a teoria de que o efeito vinculante da decisão se estende aos seus fundamentos determinantes e não apenas à sua parte dispositiva – essa última abarcada pela coisa julgada material. Tratando-se de interpretação da Constituição, a eficácia da decisão deve transcender ao caso particular, de modo que os seus fundamentos determinantes sejam observados por todos os tribunais e autoridades nos casos futuros[30].
O célebre voto proferido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes no Processo Administrativo no 318.715 bem resume tudo o que foi dito até aqui. Nele o Ministro asseverou que o recurso extraordinário:
“(...) deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesses da partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistema de corte constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao recurso constitucional (...)
A função do Supremo nos recursos extraordinários – ao menos de modo imediato – não é a de resolver litígios de fulano e beltrano, nem a de revisar todos os pronunciamentos das Cortes inferiores. O processo entre as partes, trazido à Corte via recurso extraordinário, deve ser visto apenas como pressuposto para uma atividade jurisdicional que transcende os interesses subjetivos[31]”
Com isso, entende o citado Ministro que a função do Senado não seria mais de suspender a aplicação da lei julgada inconstitucional pelo Supremo, mas apenas de dar publicidade à decisão que, por si só, teria o condão de retirar a vigência da lei[32].
Luiz Flávio Gomes afirma, acertadamente em nosso entender, que nem todos os casos resolvidos pelo Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade terão o condão de espraiar seus efeitos para além do caso concreto. Sustenta a existência de algumas notas básicas que devem se fazer presentes para que a decisão sirva de paradigma, tornando-se de observância obrigatória em casos análogos, atingindo, reflexamente, aqueles que não foram partes no processo. Tais exigências seriam a necessidade da decisão ser do Pleno do STF, de que haja discussão acerca da lei em tese, não levando em conta apenas o caso concreto e que na decisão haja a preocupação com a definição da extensão dos efeitos da decisão[33].
O mesmo autor cita como casos emblemáticos dessa nova postura o Recurso Extraordinário 197.917 e o Habeas Corpus 82.959 que, respectivamente decidiram acerca do número de vereadores em cada município brasileiro e sobre a progressão de regimes em crimes hediondos[34].
Contudo, há abalizadas vozes que questionam a atribuição de efeito vinculante à ratio essendi das decisões do Supremo Tribunal Federal, argumentando que se os enunciados de sua Súmula para serem dotados de efeito vinculante necessitam de procedimento próprio, sendo que sua edição demanda quórum de aprovação de 2/3 dos Ministros, não seria possível que a razão de decidir adotada por maioria simples (exigida para o Pleno do STF reconhecer a inconstitucionalidade de lei) ao se analisar questão trazida à Corte por meio de controle difuso pudesse vincular os demais Tribunais e a Adminsitração Pública.
Súmula Vinculante
A Emenda Constitucional 45/04 que acrescentou o artigo 103-A à Constituição da República introduziu em nosso país a chamada Súmula Vinculante que tenha como fundo matéria constitucional e como objeto a validade, interpretação e eficácia normas constitucionais sobre a qual exista controvérsia atual que acarrete insegurança jurídica e multiplicação de processos sobre questão idêntica, exigindo quórum de aprovação de 2/3, superior, portanto, ao exigido para declaração de inconstitucionalidade de lei, que é de maioria simples [35].
Marcelo Alves Dias de Souza faz questão de ressaltar que a previsão da súmula vinculante no ordenamento brasileiro não significa a adoção à doutrina do stare decisis, já que esta não se confunde com o precedente vinculante (biding precedent) da common law, embora afirme que é mais ponto de aproximação entre a civil law e a common law[36].
Mancuso prega que a filiação jurídica brasileira tornou-se híbrida, a meio caminho entre a common law e a civil law[37].
Deve-se observar que o precedente obrigatório do stare decisis forma-se a partir de uma decisão proferida por um Tribunal Superior e em razão de sua autoridade no território em que possui jurisdição[38].
Pela assertiva acima, nota-se uma primeira diferença entre nossa Súmula Vinculante e o precedente vinculante da common law: enquanto este é formada a partir de uma única decisão, aquela é a sintetização da posição dominante do Supremo e, ao menos pelo que dispõe o texto constitucional, exige a existência de uma série de julgados naquele sentido[39].
Além disso, a Súmula sempre dependerá da existência de norma legislada que a sustente, ou seja, caso alterada a lei para que lhe seja atribuído sentido oposto ao da Súmula, esta se tornará superada. Já a precedente vinculante possui eficácia própria de lei, sendo fonte primária de criação do direito[40].
Em relação, a seus efeitos, não obstante alguns autores, mesmo antes da emenda que instituiu a Súmula Vinculante, já reconhecessem a impossibilidade de os Juízes e Tribunais inferiores decidirem de forma divergente das Súmulas do STF[41], a posição prevalecente era no sentido de que as súmulas possuíam tão-somente força persuasiva, com o artigo 103-A tal impossibilidade é inconteste.
Isso porque para corrigir eventual jurisprudência recalcitrante que contrarie a disposição de enunciado da Súmula Vinculante a parte prejudicada terá a sua disposição a reclamação constitucional, instrumento cuja função é resguardar a supremacia do Supremo Tribunal[42] (e do Superior Tribunal de Justiça[43]) nos assuntos de sua competência, a ser interposto no próprio Tribunal Superior (no próprio STF no caso da súmula vinculante) para restabelecimento do entendimento por ele esposado.
Assim, o efeito prático foi o de atribuir à Súmula Vinculante o mesmo efeito que já gozavam as decisões proferidas pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade.
Aymoré Roque Pottes de Mello leciona que, a partir da edição do artigo 103-A, o princípio da legalidade tem sua força mitigada, uma vez que ao lado da lei, a Súmula Vinculante terá força de regular as relações jurídicas, asseverando que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei ou de súmula vinculante”.[44]
Sérgio Shimura afirma que a Súmula Vinculante, ao lado das ações coletivas e do controle concentrado de constitucionalidade possui o condão de expandir os efeitos da coisa julgada, já que amplia os efeitos da ratio essendio da decisão, permitindo que a mesmo regra seja aplicada onde exista a mesma razão, o que potencializa a prestação de justiça pelo Judiciário[45].
[1] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel Francisco. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2008. pp.14-17.
[2] JR., Fredie Didier; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. V. 3. 5ª ed. Juspodivm: Salvador, 2008. p. 60.
[3] DIAS, João Luís Fischer. O efeito vinculante: dos precedentes jurisprudenciais: das súmulas dos tribunais. 1ª ed. São Paulo: IOB Thomson, 2004. p. 63.
[4] Idem.
[5] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel Francisco. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2008. p.18.
[6] CPC - Art. 543-A. § 1o Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa
[7] MENDES, Gilmar Ferreira. As decisões do Supremo Tribunal Federal no controle abstrato de normas (art. 22 a 26). Material da 6ª aula da Disciplina Controle de Constitucionalidade, matéria da aula ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Direito Constitucional - UNISUL–IDP–REDE LFG. p.100
[8] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel Francisco. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2008. pp.19-21.
[9] Conforme artigos 527 e 557 in fine do CPC
[10] Conforme § 1o dos artigos 543-B e 543-C do CPC.
[11] Artigo 543, § 2o do CPC.
[12] Artigos 543-B, § 3o e 543-C, § 7º, I e II, ambos do CPC.
[13] Art. 14. Caberá pedido de uniformização de interpretação de lei federal quando houver divergência entre decisões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais na interpretação da lei. (...)§ 7o Se necessário, o relator pedirá informações ao Presidente da Turma Recursal ou Coordenador da Turma de Uniformização e ouvirá o Ministério Público, no prazo de cinco dias. Eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo, poderão se manifestar, no prazo de trinta dias.
[14] Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo. (...) § 6º O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
[15] Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo. (...)§ 4o O relator, conforme dispuser o regimento interno do Superior Tribunal de Justiça e considerando a relevância da matéria, poderá admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia.
[16] § 3o O relator poderá solicitar informações, a serem prestadas no prazo de quinze dias, aos tribunais federais ou estaduais a respeito da controvérsia.
[17] DIDIER JR. Fredie; CARNEIRO DA CUNHA, Leonardo José. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3. 8ª edição. Editora Juspodivm: Salvador, 2010.
[18] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Atlas: São Paulo, 2005. p.334
[19] PAULO, Vicente; Alexandrino, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. Editora Impetus: Niterói, 2008. p. 707
[20] Idem p. 708
[21] Idem.
[22] Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: (...) X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;
[23] JR., Fredie Didier; BRAGA; Paula Sarno e OLIVEIRA, Rafael. Aspectos processuais da ADIN (ação direta de inconstitucionalidade) e da ADC (ação declaratória de constitucionalidade). pp.414-415. In: JR., Fredie Didier (Org). Ações Constitucionais. 1ª ed. Juspodivm: Salvador, 2006.
[24] JR., Fredie Didier; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. V. 3. 5ª ed. Juspodivm: Salvador, 2008. p. 324.
[25] DIDIER JR, Fredie – Transformações do recurso extraordinário.
[26] (AMARAL JR., José Levi Mello do. Incidente de arguição de inconstitucionalidade. São Paulo: RT, 2002, p. 47, nota 21.
[27] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 402.
[28] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 404.
[29] MENDES, Gilmar Ferreira. As decisões do Supremo Tribunal Federal no controle abstrato de normas (art. 22 a 26). Material da 6ª aula da Disciplina Controle de Constitucionalidade, matreia da aula ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Direito Constitucional - UNISUL–IDP–REDE LFG.
[30] MARINONI, Luiz Guilherme. Ações repetitivas e julgamento liminar. Disponível em: www.marinoni.adv.br/principal/pub/anexos/2007061901303435.pdf. Acesso em: 19/08/2008.
[31] O excerto foi retirado de MADOZ, Wagner Amorim, “O recurso extraordinário interposto de decisão de Juizados Especiais Federais”. Revista do Processo. São Paulo:RT, 2005, no 119, p.75-76. APUD Fredie Didier Junior. Transformações do recurso extraordinário. p. 3.
[32] MENDES, Gilmar Ferreira. As decisões do Supremo Tribunal Federal no controle abstrato de normas (art. 22 a 26). Material da 6ª aula da Disciplina Controle de Constitucionalidade, matreia da aula ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Direito Constitucional - UNISUL–IDP–REDE LFG.
[34] Idem.
[35] Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.
[36] SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. 1ª ed. Juruá Editora: Curitiba, 2008. p. 263.
[37] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 365.
[38] LIMA, Augusto César Moreira. Precedentes no direito. São Paulo: LTR, 2001. p. 60
[39] Marcelo Alves Dias de. ob. cit. p. 255.
[40] Idem. p. 255-257.
[41] Nesse sentido: MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. 316 “Assim dá notícia Lênio Luiz Streck, reportando-se a Anete Vasconcelos de Borborema, onde esta admite que vários autores reconhecem ‘um caráter normativo jurisprudência contida na súmula, entendendo-a obrigatória para todos os tribunais do país. Explicam que, constituindo o STF (e acrescentaria o STJ)os mais altos sodalícios da justiça brasileira e sendo suas decisões, conseqüentemente e respectivamente, irreformáveis por outro tribunal, não se pode conceber que juízes de primeiro grau e outros tribunais julguem à revelia das proposições constantes na súmula.Em face da autoridade que a Constituição outorga ao Supremo (e ao STJ), não dar força de lei à jurisprudência dominante firmada em súmula seria afrontar sua soberania, reconhecer a imperfeição do Poder Judiciário e, finalmente, impedir a certeza jurídica”..
[42] Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...) l) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões; (...)
[43] Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: (...) f) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões; (...)
[44] POTTES DE MELLO, Aymoré Roque. A aplicação do efeito vinculante/súmula vinculante no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro: as PECS ns. 500/97 (PEC n. 54/96 – STF) e 517/97. Disponível em: http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/1593. Acesso em: 31/08/2008.
[45] Gilmar Mendes, em seu já citado discurso de posse na Presidência do Supremo Tribunal Federal, asseverou que “Não se há de descuidar, entretanto, do contínuo esforço em vencer, vez por todas, a lendária e secular morosidade atribuída à Justiça, a despeito da notória reformulação de quadros e meios do Poder Judiciário brasileiro, com avanços expressivos no tocante à medidas como a criação de juizados especiais e a implementação das súmulas vinculantes e, mais recentemente, do instituto da repercussão geral, que hoje representa a grande possibilidade de descompressão no ritmo de atuação do Supremo”.
Procurador Federal - AGU
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GIANNINI, Marcelo Henrique. A função dos tribunais superiores e alguns instrumentos tendentes a viabilizá-la Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 ago 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40744/a-funcao-dos-tribunais-superiores-e-alguns-instrumentos-tendentes-a-viabiliza-la. Acesso em: 23 dez 2024.
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