I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Klaus Stern, constitucionalista alemão, expõe em seu Livro Derecho del Estado de la Republica Federal Alemanha, as mais variadas funções que possuem e que devem ter uma Constituição. Conforme o autor são funções, objetivos e sentido da Constituição: a função de ordem; de estabilidade; ocupar-se somente do fundamental; atuar promovendo a unidade integradora; limitar e controlar o poder; garantir a liberdade, autodeterminação e proteção do indivíduo; fixar a estrutura do Estado; conter normas básicas com a finalidade material do Estado e posição jurídica do cidadão em relação ao Estado.
Tendo por base as lições de Klaus Stern e com os olhos voltados para experiência brasileira pós Constituição de 1988, o presente artigo analisará a promoção da unidade política como uma função constitucional e, mais especificamente, se podemos contabilizar como um sucesso realmente efetivo da nossa Lei Fundamental.
II – PROMOÇÃO DA UNIDADE POLÍTICA PELA CONSTITUIÇÃO
Como função da Constituição, a promoção da unidade política, foi denominada por R. Smend, como um processo de integração estatal. "Smend distingue a continuación entre integración personal, funcional y material (por ejemplo, elecciones, decisión parlamentaria, banderas, ceremonias políticas). En cualquier caso los factores de integración tiene que garantizar el fundamento de la vida estatal"[1].
A função de promoção da unidade política da coletividade[2] pela Constituição, não se restringe a unidade nacional, mas, abrange a unificação interna com objetivos a serem atingidos e a metas conquistadas, ou seja:
la Constitución debe ser tambiém una expresión de la unificación dentro de un pueblo y tiene que cearla constantemente de nuevo, en el sentido de que las decisiones en ella tomadas son un componente del consenso político de los ciudadanos y no son puestas en duda - al menos en su contenido esencial[3].
Não basta a unidade política se restringir quando da convocação e o transcorrer da Assembleia Constituinte para a elaboração da Lei Fundamental, essa função/tarefa da Constituição deve ser constantemente incentivada e renovada, sob pena de ocorrer uma fragmentação social que ponha em risco os fundamentos e bases políticas dessa sociedade postos pela Lei Maior.
O Estado e o poder estatal, "ganham realidade somente na medida em que dê certo unir a pluralidade de interesses, aspirações e modo de comportar-se, existente na realidade da vida humana, para atuação e atividade uniforme, formar unidade política"[4]. A unidade política deve ser constantemente exercitada num processo permanente de reunificação das concepções e interesses contraditórios da realidade constitucional de tal modo que gere, como bem leciona Hesse, uma unidade de ação, por meios de acordos e compromissos firmados e, até mesmo, pela coação bem sucedida, tonando a unidade com uma índole funcional.
A promoção da unidade não pode pretender nem acarretar a eliminação dos conflitos existentes no seio de todas as sociedades plurais, mas coloca-los dentro de certos objetivos delineados pela Constituição. Noutras palavras, os fatores reais de poder, para utilizarmos a expressão da Ferdinand Lassale,[5] devem conviver harmoniosamente na realidade constitucional, dentro de um espaço delimitado pela lei Fundamental, que não pode ser extrapolado, por uma ou mais forças reais e efetivas, para não ocorrer a ruptura com a unidade política e com a ordem jurídica existente, postos pelos mesmos fatores de poder, quando da elaboração e promulgação da Constituição. Desse conflito entre os poderes que advém o risco da ruptura institucional, tantas vezes presenciada na história brasileira, caso não haja a constante renovação da unidade política, preservando-se as regras do jogo democrático.
Nesse sentido, necessário citar os ensinamentos do eminente Juiz do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha Konrad Hesse:
"Por isso, é importante, tanto dar lugar ao conflito e seus efeitos como, - não em último lugar, pelo modo de regulação de conflitos -, garantir a produção e conservação da unidade política, nem ignorar e reprimir o conflito por causa da unidade política, nem abandonar unidade política por causa do conflito"[6]
Se, quando a Constituição é fundada por um processo democrático com a ampla participação de todas as forças sociais, a manutenção da unidade política é um objetivo de difícil alcance, em face da multiplicidade de concepções e interesses em jogo, essa função é recrudescida, se não impossível de alcançá-la, quando a Lei Fundamental foi outorgada por uma ou mais forças reais de poder, cuja sua elaboração e concepção não abrangeu de forma igualitária todos setores da sociedade pluralística. Nesse contexto a almejada unidade política dificilmente será alcançada, tendo em vista que alguns dos fatores reais de poder, ficaram a margem e não foram contemplados, ou não conceberam, a Lei Maior. Ora, as forças políticas, econômicas e sociais, que não se sentem parte e não tem a Constituição como sua, não deixam de existir no seio da sociedade e lutarão ou para fazer parte do poder estatal ou para derrubar a ordem existente, correndo, deste modo, sérios riscos a unidade política, em verdade nunca alcançada, e a ordem jurídica existente. Essa situação é propiciada, se não na totalidade, em regimes ditatoriais e autoritários, quando somente um grupo político se apropria do poder estatal e os outros são excluídos, ou, ainda, em democracias meramente formais em processo de fragmentação social.
Portanto, de fundamental importância para o alcance da unidade política que essa seja incentivada desde o início da concepção e elaboração da Lei Fundamental, dessa forma, que abranja e contemple todos os fatores reais de poder na Assembléia Constituinte que elaborará e conceberá a Constituição, para essa desempenhar uma função integradora com o objetivo da unidade política e sua renovação constante, como bem escreve Pablo Lucas Verdú, que "es menester que los ciudadanos y sus agrupaciones políticas consideren como suya la Constitución..."[7]
Não bastasse, as dificuldades naturais para o alcance da unidade política, a Constituição como norma fundamental da coletividade, em virtude do pluralismo jurídico e do multiculturalismo social[8], enfrenta, como leciona Canotilho, dois dilemas, quais sejam: o dilema comunitário e o dilema liberal. O primeiro, "trabalha com o código binário unidade/comunidade, reconduzindo ou reduzindo a pluralidade de normas ... às normas adoptadas ou deliberadas pela comunidade e, por conseguinte, pela monocultura comunitária"[9]. O segundo, o dilema liberal, consiste na dicotomia um/todos que, "segundo as regras universais do voto ou do preço do mercado, esquecendo que a razão das regras, ditadas pelas eleições ou pelo mercado, pode marginalizar outras razões - as razões de outras culturas"[10].
Desta objeção que enfrenta a função de unidade política ou, como denomina Canotilho - assim como R. Smend - função integradora, a Constituição, na acepção do constitucionalista portugues, ganha mais uma função, qual seja: de estruturar e garantir um sistema constitucional pluralístico, denominado pelo professor de Coimbra de "A Função de Inclusividade Multicultural"[11] (grifos nosso).
Conforme o constitucionalista supracitado, "esta estruturação e garantia passa, desde logo, pala proibição de organizações aniquiladoras ou defensoras da aniquilação do pluralismo ideológico e do multiculturalismo racial (‘organizações fascistas`, ‘organizações racistas`)"[12]. Tais organizações, de cunho nazifascistas, pretendem negar, justamente, uma das características fundamentais das sociedades contemporâneas e do Estado Democrático de Direito conquistadas a duras penas pela modernidade, qual seja, o pluralismo de pensamento e o respeito das minorias.
Ademais, em virtude do exposto, indaga o professor duas questões, a saber: "se a constituição deve conter uma cláusula de proteção de minorias étnicas; se essa cláusula implica a abertura da ordem jurídico-constitucional a estruturas jurídicas específicas de tais minorias"[13]. A primeira indagação respondemos anteriormente consoante o cunho normativo do Estado democrático de direito. A segunda questão, assim expõe o constitucionalista, de antemão salientando que é mais dificultosa,
porque se trata, no fundo, se saber se a moderna estabilidade territorial deve de novo se substituída (ou complementada) pela personalização da ordem jurídica e, sobretudo, se ela pode se hiperinclusiva acolhendo grupos estratégicos fundamentalistas ou ‘enclaves tradicionalistas iliberais`[14].
Em relação a segunda indagação, exposta por Canotilho, entendemos que nossa Constituição de 1988, complementou na ordem jurídico-constitucional brasileira quando, disciplinando os povos indígenas, em seu art. 231, expressamente, dispôs, que "são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições ...".
Embora seja uma matéria controvertida, nosso estatuto jurídico do político, reconheceu aos povos indígenas, sua organização social e seus costumes, incluído-se, assim, seus regramentos e normas jurídicas próprias que, de certo modo, responde a questão formulada por Canotilho.
Muito embora, o eminente constitucionalista português, exiba em seu celebre livro, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, uma revisão das funções da Constituição, tendo como foco a Lei Maior portuguesa, a função de inclusividade multicultural e um sistema constitucional pluralístico, não deixa de ser um dos objetivos tanto da promoção da unidade política como da função da Constituição como ordem jurídica.
III – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em sede de conclusão, sem incorrer em redundância com as afirmações feitas no texto, reportamo-nos para a realidade brasileira afim de responder a questão inicial se a função de unidade política foi respondida em altura pela nossa norma fundamental.
Entendemos que sim. Hoje podemos dizer sem receio, e com base na prática constitucional e política após a promulgação da Constituição de 1988, que, extreme de dúvida, há plena efetividade da Lei maior no que se refere a promoção da unidade política nacional.
Não se discute um retorno as ditaduras. A democracia é um valor inerente ao debate político e um ponto de não retorno da vida nacional. Embora seja até mesmo sem sentido essa afirmação, não é excessivo lembrar que a democracia na política nacional é algo novo e que no século passado, em contagem de tempo, perdeu com folga para os períodos autoritários vividos na vida nacional.
Os grupos, partidos políticos e os fatores reais de poder da sociedade disputam as eleições dentro de regras democráticas sob a superioridade normativa e institucional da Constituição de 1988 e supervisão da Justiça Eleitoral. Demais disso, esses atores da vida nacional sabem com antecedência que devem respeitar as regras estabelecidas pelo jogo democrático.
Desse modo, embora devemos questionar os pontos constitucionais destituído de uma maior força normativa, com relação a unidade política, podemos dizer que a Constituição de 1988, que fez a transição de um período autoritário para outr democrático, tem cumprido sua função de unidade política.
IV – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Livraria Almedina, Coimbra, 1998.
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, Tradução de Luís Afonso Heck, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1998.
LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998.
STERN, Klaus. Derecho del Estado de la Republica Federal Alemanha. Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1987.
VERDÚ, Pablo Lucas, Curso de Derecho Politico: vl. II: las crises de la teoría del Estado en la Actualidad, Federalismo y estado federal, La teoría de la Constitución en el marco del Derecho Político. 3a ed., Editorial Tecnos, Madrid, 1986.
[1] STERN, Klaus. Derecho del Estado de la Republica Federal Alemanha. Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1987, p. 233.
[2] O termo coletividade, utilizado no presente trabalho, possui o mesmo significado dado por Konrad Hesse, qual seja: "a diferenciação de estatal e não-estatal na colaboração humana no interior do território estatal deve ser aqui expressada por o conceito de ‘coletividade` ser empregado como abarcador de ambos". HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, Tradução de Luís Afonso Heck, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1998, p. 30.
[3] STERN, Klaus. op. cit. p. 232.
[4] HESSE, Konrad. op. cit., p. 29.
[5] LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998.
[6] HESSE, Konrad. op. cit., p. 30.
[7] VERDÚ, Pablo Lucas, Curso de Derecho Politico: vl. II: las crises de la teoría del Estado en la Actualidad, Federalismo y estado federal, La teoría de la Constitución en el marco del Derecho Político. 3a ed., Editorial Tecnos, Madrid, 1986, p. 457.
[8] "Designa-se pluralismo jurídico a situação em que existe uma pluralidade heterogénea de direitos dentro do mesmo campo social. O ‘pluralismo de direitos` pressupõe uma sociedade multicultural (‘pluralismo cultural`) formadas por vários grupos culturais (‘índios`, ‘hispânicos`, ‘cabo-verdianos`, ‘africanos`, ‘turcos`, ‘indianos`) que produzem normas (relativas, por ex:, a casamentos, modas, contratos, ensino de religião) que actuam no mesmo espaço social e interagem com as normas produzidas pelas ‘macroculturas` dominantes nesse espaço" (grifo do autor). CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Livraria Almedina, Coimbra, 1998, p. 1286 e 1287.
[9] Idem, p. 1287.
[10] Idem, p. 1286.
[11] Idem, p. 1287.
[12] Idem, p. 1287.
[13] Idem, p. 1287.
[14] Idem, p. 1287.
Procurador Federal da Adovocacia-Geral da União - AGU, especialista em Direito Público pela Universidade Nacional de Brasília - UNB, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FURIAN, Leonardo. Promoção da unidade política como uma função constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 set 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40770/promocao-da-unidade-politica-como-uma-funcao-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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