1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo abordar as solidificadas e refletidas mudanças introduzidas pela Emenda Constitucional n.º 66/2010, que alterou o artigo 226, § 6º, da Constituição da República e introduziu grande discussão acadêmica e jurisprudencial a respeito da extinção ou não do instituto da separação em nosso ordenamento jurídico. Favoravelmente à manutenção da separação, mencionaremos a interpretação sistemática do texto constitucional e especificamente a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Em seguida, mostraremos elementos favoráveis à sua extinção, v.g. a Teoria da Pirâmide de Kelsen. Por fim, nossas conclusões convergem para o entendimento já refletido da doutrina e jurisprudência de que o referido instituto não deixou de existir no ordenamento jurídico.
2. DESENVOLVIMENTO
Como dito acima, a Emenda Constitucional n.º 66/2010, alterou a redação do § 6º do artigo 226 da Constituição de República, que trata da dissolução do vínculo matrimonial. O referido dispositivo restou assim alterado:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(omissis)
§ 6º - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. (Redação original)
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010)
Tal modificação teve como objetivo atender aos anseios sociais para mitigar a ingerência estatal no casamento, afastando a exigibilidade de requisitos prévios como a separação, para pôr fim ao vínculo matrimonial.
Questão controversa que decorreu do advento da Emenda n.º 66/2010 se refere à permanência ou à extinção do instituto da separação no ordenamento jurídico brasileiro. Os defensores da extinção da separação argumentam que ela se prestava tão somente à preparação do divórcio sendo que por isso o instituto perdeu sua serventia. Assim, parte da doutrina enxergava a separação como uma mera etapa preliminar ao divórcio, deixando de atribuir àquele instituto importantes finalidades, como veremos a seguir. Advogam ainda a tese de que o instituto perdeu seu fundamento de validade quando saiu do texto constitucional, em observância à Teoria da Pirâmide de Kelsen,
Corrente diversa defende que o instituto da separação deve ser observado à luz dos princípios constitucionais de proteção à família vigentes, sendo que a modificação ocorrida por meio da Emenda n.º 66/2010 aduziu tão somente a inexigência de separação prévia, seja ela judicial, extrajudicial ou de fato, para a dissolução do vínculo matrimonial.
3. ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À MANUTENÇÃO DA SEPARAÇÃO
Muito se argumentou que a extirpação do instituto da separação do já citado § 6º do artigo 226 da Constituição o retirou do ordenamento jurídico brasileiro. Ocorre que, o simples fato de um instituto jurídico não mais se encontrar expressamente previsto no texto constitucional não significa sua inexistência no mundo jurídico. Ainda que nossa Constituição seja analítica, ela não trata expressa e exaustivamente de todos os institutos do ordenamento, assim, há que se atribuir à separação uma gama mais vasta de funções do que a simples etapa para a dissolução matrimonial.
O instituto continua perfeitamente válido para aqueles que desejam romper a sociedade conjugal sem a dissolução imediata do vínculo matrimonial. Muitas vezes o rompimento da sociedade conjugal, o que valida juridicamente a separação de corpos, se mostra necessário para que os cônjuges possam melhor refletir quanto à conveniência da dissolução ou manutenção do matrimônio. Dessa forma, a separação se revela um importante instrumento para a especial proteção que o Estado dá à família, de acordo com a cabeça do multicitado artigo 266 da Magna Carta. Neste desiderato, admitir a extinção da entidade familiar sem possibilidade de reconciliação contraria verdadeira norma principiológica, pois retira do cidadão a possibilidade jurídica da reconciliação e do restabelecimento do casamento, devendo este recorrer ao instituto mais gravoso, que é o divórcio.
Nesse sentido, aliás, tem caminhado a jurisprudência. Segue um aresto do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul prestigiando o mesmo entendimento:
Ementa: DIVÓRCIO DIRETO. VIABILIDADE DO PEDIDO. NÃO OBRIGATORIEDADE DO REQUISITO TEMPORAL PARA EXTINGUIR A SOCIEDADE CONJUGAL. 1. A Emenda Constitucional nº 66 limitou-se a admitir a possibilidade de concessão do divórcio direto para dissolver o casamento, afastando a exigência, no plano constitucional, da prévia separação judicial e do requisito temporal da prévia separação fática. 2. Essa disposição constitucional não retirou do ordenamento jurídico a legislação infraconstitucional, que continua regulando tanto a dissolução do casamento como da sociedade conjugal e estabelecendo limites e condições, permanecendo em vigor as disposições legais que regulam a separação judicial, como sendo a única modalidade legal de extinção da sociedade conjugal, que não afeta o vínculo matrimonial. 3. Com ressalva do entendimento pessoal de que somente com a modificação da legislação infraconstitucional é que a exigência relativa aos prazos legais poderia ser afastada, estou acompanhando o entendimento jurisprudencial dominante neste Tribunal de Justiça e admitindo abrandar a questão relativa aos prazos legais. Recurso provido.” (Apelação Cível Nº 70044794840, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Desembargador Relator Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgamento de 27/09/2011, DJRS de 03/10/2011)
Logo a partir da vigência da Emenda nº 66/2010 alguns magistrados, equivocadamente entendendo pelo fim do instituto da separação, ora extinguiam o feito sem resolução do mérito por considerar a impossibilidade jurídica do pedido, ora determinavam de ofício a alteração da natureza da ação de separação judicial para divórcio. Ocorre que a separação não foi extirpada do ordenamento pelo texto constitucional, estando pois, em pleno vigor, razão pela qual estas decisões foram reformadas. Nesse sentido segue o precedente do já mencionado Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul a respeito do tema:
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA. SEPARAÇÃO. SENTENÇA EXTINTIVA DO FEITO, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. SENTENÇA QUE DEVE SER DESCONSTITUÍDA. PEDIDO DE SEPARAÇÃO JUDICIAL QUE SE MOSTRA JURÍDICAMENTE POSSÍVEL, POIS A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66/2010, EMBORA TENHA POSSIBILITADO O DIVÓRCIO DIRETO, NÃO EXTINGUIU O INSTITUTO DA SEPARAÇÃO JUDICIAL. FEITO QUE DEVE TER SEU PROSSEGUIMENTO REGULAR. APELAÇÃO PROVIDA PARA DESCONSTITUIR A SENTENÇA. POR MAIORIA. (Apelação Cível Nº 70043207265, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Desembargador Relator Roberto Carvalho Fraga, Julgamento de 24/08/2011, DJRS de 25/08/2011)
Diante da argumentação acima exposta, verifica-se que o instituto da separação judicial se encontra em pleno vigor em nosso ordenamento jurídico, mesmo após a edição da Emenda n.º 66/2010, que se mostra como norma apenas formalmente constitucional, uma vez que ali não são reguladas as espécies de dissolução conjugal, que se mantêm no Código Civil.
Ademais, o artigo 1.577 do Código Civil prescreve a possibilidade de restabelecimento do casamento em caso de separação, o que não ocorre no divórcio, uma vez que este rompe o vínculo matrimonial. In verbis:
Art. 1.577. Seja qual for a causa da separação judicial e o modo como esta se faça, é lícito aos cônjuges restabelecer, a todo tempo, a sociedade conjugal, por ato regular em juízo.
4. ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À MANUTENÇÃO DA SEPARAÇÃO
Assim que foi promulgada a Emenda n.º 66/2010, houve várias interpretações acerca do fim da separação e até sobre o fim da culpa na dissolução do casamento.
A culpa no Direito de Família se traduz no descumprimento consciente de deve conjugal, sendo que a dissolução culposa tem por objetivo investigar este descumprimento. De fato, a promulgação da Emenda Constitucional retirou a necessidade de se apurar culpa na dissolução do matrimônio, mas ela não exclui essa possibilidade. Não há razão para se dispensar a análise da culpa sob o argumento de interferência estatal na vida privada do cidadão, ou mesmo de inexistência de consequência jurídica na declaração de culpa no fim do casamento. Tendo em vista a amplitude limitada do presente trabalho, não iremos abordar mais especificamente a questão da culpa.
A construção do argumento favorável ao fim da separação reside na análise do princípio constitucional de que a própria Constituição é a lei fundamental de um Estado Democrático de Direito, constituindo o topo da Pirâmide de Kelsen, se posicionando, portanto, em um patamar superior a todas as outras normas nos limites territoriais de um país. O princípio da máxima efetividade do texto constitucional tem por objetivo buscar dar aos dispositivos constitucionais não efeitos meramente programáticos, mas atribuir à Lei Maior sua máxima efetividade.
Dessa forma, em observância ao referido princípio, somente haveria a máxima efetividade do § 6º do artigo 226 da Constituição com a derrogação do instituto da separação em sentido amplo, seja ela judicial, extrajudicial ou de fato. Ainda que a separação esteja prevista em ordenamentos infralegais, eles não poderiam limitar a eficácia constitucional e não teriam de onde retirar seu necessário fundamento de validade para permanecer no ordenamento jurídico. Assim, os institutos que não encontrarem esse fundamento de validade no texto constitucional alterado estariam tacitamente revogados.
No entendimento desta corrente, dizer que a separação não foi revogada seria tirar da Constituição sua força normativa, e que qualquer interpretação dos dispositivos infralegais sobre a separação necessariamente deveriam ser conforme o Texto Constitucional. Nesse sentido, as normas infralegais perderam sua base de sustentação constitucional.
A jurisprudência, principalmente logo após a promulgação da referida Emenda, andou entendendo pelo fim da separação. Vejamos:
Apelação. Divórcio. Agravo retido. Pedido de apreciação. Decisão. Ausência. Não conhecimento. Casamento. Dissolução. Emenda 66/10. Aplicação. Regime de bens. Comunhão universal. Pacto antenupcial. Ausência. Regime legal. Comunhão parcial. Imposição. Herança. Partilha. Exclusão. Sentença. Confirmação. Recurso. Desprovimento. Deixando o apelante de expressamente pedir a apreciação do agravo retido e inexistindo decisão a ensejar a interposição deste recurso, dele não se conhece, de acordo com o § 1º, do art. 523 do CPC. A emenda constitucional 66/10, de aplicação imediata, restou possibilitada a decretação do divórcio independentemente de tempo de separação, sendo de se enfatizar que se o casamento foi realizado após a lei 6515/77, ainda que conste da respectiva certidão que o regime de bens é o da comunhão universal, por falta de pacto antenupcial, prevalece o regime da comunhão parcial, relação essa que exclui a partilha de bens herdados por um dos consortes, sendo, portanto, merecedora de confirmação a sentença nesse sentido prolatada. Recurso desprovido. Classe: APELAÇÃO Número do Processo: 0004074-2/2005 Órgão Julgador: QUINTA CÂMARA CÍVEL Relator: EMILIO SALOMAO PINTO RESEDA Data do Julgamento: 25/01/2011. TJBA
5. CONCLUSÃO
A Emenda nº 66 expressou grande evolução quanto ao tratamento dado ao instituto do casamento e suas modalidades de dissolução, no ordenamento jurídico brasileiro, vindo a dispensar a necessidade de separação judicial como etapa prévia. Como vimos, todavia, não pode o interprete dar-lhe uma interpretação extensiva daquela pretendida pelo legislador, afirmando que a separação judicial não mais subsiste no ordenamento jurídico brasileiro.
Diante dos argumentos acima apresentados, conclui-se que a separação não deixou de existir, mas apenas não constitui mais um requisito para o divórcio. Aliás, a V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal aprovou o seguinte enunciado sobre o tema, colocando verdadeira pá de cal sobre as discussões: “A EC 66/2010 não extinguiu a separação judicial e extrajudicial.”
A mencionada alteração constitucional extinguiu qualquer prazo para a realização do divórcio direto, instituto mais gravoso ao casal, uma vez que dissolve o matrimônio. Assim, mesmo que não haja referência expressa sobre o prazo da separação, entendemos que uma interpretação sistemática dos institutos em apreço autorizam a concluir pela realização da separação independentemente de qualquer prazo, tal interpretação tem o objetivo de manter o sentido original dos institutos, permitindo sua maior eficácia.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
BRANDELLI, Leonardo. Teoria geral do direito notarial. São Paulo: RT, 1998.
CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
CHAVES, Carlos Fernando Brasil e REZENDE, Afonso Celso F. Tabelionato de Notas e o Notário Perfeito. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, Volume VI - Direito de Família. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.
TAVAREZ, Regina Beatriz. A Emenda Constitucional do Divórcio. São Paulo: Editora Saraiva, 2011.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Pós-Graduado em Direito pela Universidade Anhanguera-Uniderp<br>Procurador Federal<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SECCO, Henrique de Melo. A separação e a Emenda Constitucional n.º 66/2010 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 set 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40778/a-separacao-e-a-emenda-constitucional-n-o-66-2010. Acesso em: 22 dez 2024.
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