Resumo: O presente estudo pretende analisar as principais características dos modelos de controle de constitucionalidade, destacando-se as suas características principais, bem como os efeitos das decisões proferidas no âmbito do controle de constitucionalidade jurisdicional, sobretudo no que pertine ao modelo de controle brasileiro.
Palavras-chave: Sistemas de controle de constitucionalidade. Características. Modelo de controle brasileiro. Efeitos das decisões proferidas em controle de constitucionalidade.
Considerações iniciais
Consoante já referido, o tema central da presente pesquisa diz respeito ao estudo da coisa julgada inconstitucional. Porém, entendendo-se que o estudo de tal teoria também depende da análise do controle de constitucionalidade adotado em nosso ordenamento, traçaremos breves considerações acerca dos sistemas de controle de constitucionalidade.
As Constituições escritas correspondem a uma característica própria do Estado Moderno[1]. A Constituição, no sentido material, corresponderia ao conjunto de regras que regulam as normas essenciais do Estado, “organizam os entes estatais e consagram o procedimento legislativo”[2]. Por seu turno, a Constituição no sentido formal pressupõe a existência de regras que obedecem ao procedimento especial, tanto para a sua promulgação, quanto para a sua revisão.[3]
Conciliando as duas acepções da Constituição, em seu sentido formal e material, Konrad Hesse aduz que a Constituição representa a ordem fundamental jurídica da coletividade.[4] Ainda seguindo a lição do renomado constitucionalista alemão, a Constituição traça os princípios diretivos, segundo os quais irão se formar as unidades política e estatal, fixando regras gerais. Porém, esse regramento não é exaustivo ou codificado, mas sim aberto de forma a permitir uma livre discussão e configuração[5]. Desse modo, consoante bem observa Gilmar Mendes, embasado na doutrina de Hesse, a Constituição detém, a um só tempo, rigidez e flexibilidade, conciliando “estabilidade e desenvolvimento”, o que impede a dissolução da ordem constitucional, bem como o congelamento da ordem jurídica[6].
Consoante preleciona Jorge Miranda, constitucionalidade e inconstitucionalidade estão inter-relacionadas, sendo que a Constituição estabelece uma relação “com um comportamento que lhe está ou não conforme, que cabe ou não no seu sentido, que tem nela ou não a sua base”[7]. Alerta o nobre jurista lusitano que não se trata de uma relação de mero caráter lógico ou intelectivo, mas sim de uma relação normativa e valorativa, uma vez que “não estão em causa simplesmente a adequação de uma realidade a outra realidade, de um quid a outro quid ou a desarmonia entre este e aquele acto, mas o cumprimento ou não de certa norma jurídica”[8].
Visto isso, depreende-se que o texto constitucional necessita de instrumentos para a sua defesa e correta aplicação, o que acarreta na necessidade de controle da constitucionalidade dos atos normativos[9].
1. Os sistemas de controle de constitucionalidade
Seguindo, ainda, a lição de Jorge Miranda, vale destacar que não é necessário haver Constituição formal para que exista inconstitucionalidade, tampouco que a Constituição seja rígida (isto é, a alteração dos dispositivos constitucionais obedece a regramento mais complexo do que a alteração dos dispositivos infraconstitucionais), sendo suficiente a existência de Constituição no sentido material e não meramente institucional[10].
Frente ao exposto, cabe elencar as formas de controle de constitucionalidade, ao menos aquelas mais usuais ou conhecidas[11]. Quanto ao órgão de controle, tem-se: a) controle político; b) controle jurisdicional; c) controle misto.
O controle político, também denominado de controle francês, é justamente a espécie de controle realizada por um órgão político e não jurisdicional. São exemplos desta espécie o controle realizado pelas Casas Legislativas, comissões de Constituição e Justiça, assim como o veto oposto pelo Poder Executivo, com base na alegada inconstitucionalidade da proposta legislativa[12].
Já o controle jurisdicional corresponde àquele exercido pelos órgãos que compõem o Poder Judiciário ou por uma Corte Constitucional. Por seu turno, o controle jurisdicional divide-se, conforme o órgão julgador, em: a) controle difuso (ou americano); b) controle concentrado (ou austríaco, tendo como paradigma o Tribunal instituído pela Constituição austríaca de 1920 ou europeu, em razão do fato de que este modelo estendeu-se pela Europa); c) controle misto. Observaremos a seguir, um pouco mais detidamente, as características das espécies de controle jurisdicional, sendo que, antes disso, citaremos os tipos de controle no que se refere à forma ou ao modo de controle e do momento em que tal controle é exercido.
No que tange ao modo ou via processual de controle, este pode ocorrer de forma incidental ou principal. A via incidental corresponde ao caso em que o controle da constitucionalidade não representa o objeto da demanda, mas sim uma questão a ser apreciada incidentalmente pelo órgão jurisdicional. Em regra, associa-se o controle incidental ao modelo difuso. Porém, Canotilho faz ressalva no sentido de que, em Portugal, “o controlo difuso pode conduzir a um controlo concentrado através do Tribunal Constitucional. Noutros sistemas, o controlo concentrado pressupõe também o incidente da inconstitucionalidade, embora aqui o juiz (ao contrário do controlo difuso) se limite, como tribunal a quo, a suspender a acção fazendo subir a questão da inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional (ex.: sistema alemão, sistema italiano)”[13].
No controle por via principal a questão constitucional é o cerne da demanda judicial. Isto é, a ação é proposta visando à manifestação do órgão jurisdicional (Tribunal Constitucional, Tribunal Supremo), acerca da constitucionalidade do ato normativo. O controle por via principal é efetuado por meio de ação autônoma, como por exemplo, a ação direta de inconstitucionalidade ou por meios de impugnação in abstrato[14]. A legitimidade ativa para a propositura de ações autônomas de constitucionalidade é conferida a determinadas entidades, independente da existência de qualquer controvérsia[15].
Existe, ainda, uma terceira espécie de controle, conforme destaca Canotilho, nas hipóteses em que o controle principal pode guardar referência tanto a um controle abstrato de lei ou ato normativo quanto a uma garantia concreta de direitos fundamentais. Assim, refere o constitucionalista português que este último caso (garantia concreta de direitos fundamentais) “é que se observa na Verfassungsbeschwerde alemã (ação constitucional de defesa) e no recurso de amparo mexicano e espanhol”[16].
Ainda, observa-se que a inconstitucionalidade pode ocorrer de forma preventiva ou de modo repressivo (sucessivo). Diz-se que há controle preventivo da constitucionalidade, quando a lei ou ato normativo não está perfeito ou acabado, isto é, o ato ainda não está apto a produzir efeitos na ordem jurídica. Exemplo clássico de controle preventivo é o exercido pelo Conselho Constitucional Francês, que se aproxima de um controle político, e que é exercido não sobre normas válidas, mas sobre projetos de normas, consoante destaca Canotilho[17]. Nessa espécie de controle não há a declaração da inconstitucionalidade da lei, propondo-se a reabertura do processo legislativo para correção das inconstitucionalidades eventualmente detectadas.[18] Em nosso ordenamento, pode-se citar como exemplo de controle preventivo aquele exercido pelas Comissões de Constituição e Justiça das Casas parlamentares, bem como o veto do Presidente da República com fundamento na inconstitucionalidade do diploma legislativo (CRFB/88, art. 66, § 1º)[19].
Embora não seja a regra, admite-se em nosso ordenamento o controle preventivo da constitucionalidade pela via jurisdicional. Exemplo disso é a possibilidade de impetração de mandado de segurança por parlamentar, a fim de impedir tramitação de projeto de emenda constitucional que atente às cláusulas pétreas, conforme bem destaca Gilmar Mendes[20].
Por sua vez, o controle repressivo é aquele perpetrado após a promulgação da norma, que, nesse caso, já possui aptidão à produção de efeitos jurídicos.
Feitas essas breves considerações, cabe analisar um pouco mais detalhadamente as características principais do controle de constitucionalidade jurisdicional. Consoante já referido, o controle jurisdicional pode se dar de forma concentrada, difusa ou mista.
2. Principais características do modelo jurisdicional do controle de constitucionalidade
O modelo concentrado de controle da constitucionalidade pressupõe a existência de um único órgão encarregado de apreciar a conformidade das leis e atos normativos à Constituição, excluindo-se tal atribuição aos demais órgãos jurisdicionais. Esse órgão que detém a exclusividade para analisar e decidir acerca da constitucionalidade dos atos normativos pode integrar o sistema jurídico ordinário, como ocorre onde há Tribunais Supremos, ou pode ser exercido por um órgão criado especialmente para este fim, o que ocorre onde existem Tribunais Constitucionais[21].
Conforme relembra Canotilho, a concepção do controle concentrado de constitucionalidade está ligada a Hans Kelsen, que o concebeu, sendo tal sistema consagrado pela Constituição austríaca de 1920 e posteriormente aperfeiçoado na reforma constitucional austríaca de 1929[22]. A idéia de controle concentrado diverge do sistema de controle difuso. Isso porque no controle concentrado não há propriamente uma revisão/fiscalização judicial, como ocorre no judicial review do modelo americano, uma vez que o controle da constitucionalidade é concebido como uma função constitucional autônoma, que poderia ser caracterizada, até mesmo, como uma função legislativa negativa[23].
No modelo concentrado não haveria um caso concreto a ser decidido – sendo este caso reservado à apreciação do tribunal a quo – e dessa forma não se desenvolveria uma atividade judicial[24].
Em razão dessa característica, associa-se ao controle concentrado a idéia de controle abstrato da constitucionalidade (embora se verifiquem mecanismos abstratos no controle difuso, e elementos de controle concreto em sede de controle concentrado, conforme será esposado a seguir). O controle abstrato corresponderia exatamente à ausência de uma lide concreta a ser decidida, sendo o seu objeto estritamente a defesa da ordem constitucional, por meio da rejeição de normas que eventualmente atentem contra os dispositivos normativos da Constituição. Assim, não há contraditório entre partes, e em se tratando de processo objetivo a legitimidade ativa, em regra, é restrita[25].
Por seu turno, no controle difuso ou americano, consoante já mencionado, compete a todos os órgãos integrantes do Poder Judiciário a fiscalização da constitucionalidade dos atos normativos. O desenvolvimento deste modelo de controle, ocorrido a partir do constitucionalismo americano, representa uma ruptura à doutrina britânica de soberania do Parlamento, reconhecendo-se assim a judicial review, que corresponde exatamente ao controle judicial da constitucionalidade das leis[26].
A evolução desse modelo se dá a partir da sentença proferida pelo juiz Marshall, no caso Marbury vs. Madison, em 1803. Em razão da natureza desta espécie de controle lhe é associado o controle concreto da constitucionalidade, que pressupõe a existência de um caso concreto em que é suscitada a apreciação acerca da constitucionalidade do ato normativo a ser aplicado. Nesse ponto, merece transcrição a lição do juiz Marshall, em ponto explicativo acerca da gênese do judicial review, citado por Canotilho, em tradução de Rui Barbosa, observe-se:
É, sem dúvida, da competência e dever do Poder Judiciário interpretar a lei. Aqueles que a aplicam aos casos particulares devem, necessariamente, explaná-la, interpretá-la. Se duas leis se contrariam, os tribunais devem decidir sobre o seu âmbito de aplicação. Assim, se uma lei estiver em contradição com a constituição, e se tanto uma como outra forem aplicáveis ao caso, de modo a que o tribunal tenha de decidir de acordo com a lei desatendendo à constituição, ou de acordo com a constituição rejeitando a lei, ele terá inevitavelmente, de escolher dentre os dois preceitos opostos aquele que regulará a matéria. Isto é da essência do dever judicial. Se, portanto, os tribunais devem observar a constituição, e se esta é superior a qualquer lei ordinária do poder legislativo, é a constituição e não a lei ordinária que há de regular o caso a que ambos dizem respeito.[27]
No que concerne ao sistema considerado misto, pode-se dizer que corresponderia ao modelo que agrega elementos do modelo difuso e do modelo concentrado de controle de constitucionalidade. Em regra, é deferido a cada juiz o poder de apreciar a constitucionalidade de atos normativos, ao mesmo tempo em que existe um tribunal competente a apreciar a constitucionalidade de forma abstrata, em processos objetivos. Exemplos de países que adotam o sistema misto são Brasil e Portugal.
Em breve digressão histórica, convém mencionar que o Brasil adotou o sistema de controle difuso de constitucionalidade desde antes da promulgação da Constituição Republicana de 1891, por intermédio do Decreto nº 848, de 11 de novembro de 1890[28]. A partir da Constituição de 1934, o Brasil passa a adotar mecanismos do controle concentrado, cabendo à Corte Suprema, mediante provocação do Procurador Geral da República, a manifestação acerca da constitucionalidade de ato da União que decretasse intervenção nos Estados, visando assegurar o cumprimento de princípios constitucionais fundamentais e a execução de leis federais[29]. Ainda, havendo declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal de lei ou ato governamental, caberia ao Procurador Geral da República comunicar ao Senado Federal, para fins de suspensão da execução do ato reputado como inconstitucional[30]. Tais dispositivos foram mantidos pela Constituição de 1946. Em 1965 (Emenda Constitucional nº 16/1965) introduziu-se no ordenamento brasileiro a representação em face de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, encaminhada também pelo Procurador Geral da República, junto ao Supremo Tribunal Federal, passando a integrar a Constituição de 1967[31].
Hodiernamente, existe uma série de mecanismos no sistema brasileiro para o controle da constitucionalidade de leis e atos normativos, combinando elementos do modelo difuso, o que permite aos tribunais diante do caso concreto apreciar a constitucionalidade dos atos normativos - consoante previsão constante do artigo 97 da CRFB/1988 e do artigo 102, III, da CRFB/1988, que trata do Recurso Extraordinário - com instrumentos próprios do controle concentrado, sendo exemplos disso a Ação Direta de Inconstitucionalidade e a Ação Declaratória de Constitucionalidade (artigo 102, inciso I, alínea ‘a’, CRFB/1988), a Ação de inconstitucionalidade por omissão (artigo 103, parágrafo 1º), entre outros.
Conforme referido, embora os sistemas difuso e concentrado possuam premissas diversas, até mesmo sob os pontos de vista histórico e filosófico, representando concepções excludentes, percebe-se uma aproximação entre os modelos[32]. A reforma constitucional austríaca de 1929 introduziu naquele ordenamento a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça Administrativa trazer à Corte Constitucional a controvérsia acerca da constitucionalidade de um determinado ato suscitada no âmbito concreto. Assim, aqueles tribunais passariam a emitir um juízo provisório e negativo acerca da constitucionalidade[33], ao mesmo tempo em que se introduziria a análise concreta da constitucionalidade no âmbito do controle concentrado[34].
3. Os efeitos decorrentes das decisões declaratórias de constitucionalidade
Visto isso, faz-se necessário tecer algumas considerações acerca dos efeitos decorrentes das decisões declaratórias de inconstitucionalidade. Nas palavras de Canotilho, poder-se-ia distinguir os efeitos das decisões declaratórias de (in)constitucionalidade, primeiramente, em efeitos gerais e efeitos particulares[35]. Assim, teria efeitos gerais a decisão acerca da constitucionalidade da lei ou ato normativo que possui eficácia erga omnes, isto é, que atinge a todos, uma vez que a declaração da inconstitucionalidade traria por consequência a eliminação do ato normativo. Por outro lado, falar-se-ia em efeitos particulares quando a decisão atingisse somente às partes envolvidas na demanda, considerando-se que o ato normativo reconhecido como inconstitucional é desaplicado pelo juízo do caso concreto, permanecendo em vigor até ulterior anulação, revogação ou suspensão pelos órgãos competentes[36].
Em razão de sua natureza incidental e preponderantemente concreta e subjetiva a decisão com efeitos inter partes guarda relação com o controle difuso de constitucionalidade (judicial review), enquanto que o controle com eficácia erga omnes estaria relacionado com o sistema de controle concentrado[37].
Cabe, ainda, citar a possibilidade de se atribuir efeito erga omnes à decisão declaratória de inconstitucionalidade proferida no âmbito do sistema difuso, pelo menos em relação ao nosso ordenamento, por força do que preceitua o artigo 52, inciso X, da CRFB/1988[38]. Assim, declarada a inconstitucionalidade incidenter tantum proferida no âmbito do nosso ordenamento, o Presidente do Supremo Tribunal Federal poderá oficiar ao Senado Federal para que este suspenda o ato normativo reputado como inconstitucional. Dessa forma, após parecer do Procurador Geral da República, será editada pelo Senado uma resolução determinando a suspensão do ato normativo, ocasião em que a decisão passará a ter efeitos erga omnes, isto é, a eficácia geral passaria a valer a partir da edição da resolução do Senado (ex nunc)[39].
Outrossim, diz-se que a decisão de inconstitucionalidade possui efeitos prospectivos, isto é, da decisão para o futuro, quando lhe for atribuído efeito ex nunc, enquanto que se fala em efeitos retroativos ou de eficácia ex tunc, quando a decisão declaratória abrange todos os atos, ainda que praticados anteriormente à própria declaração[40]. De acordo com o escólio de Canotilho, a eficácia ex nunc seria própria ao controle concentrado de constitucionalidade, enquanto que a eficácia ex tunc corresponderia a um efeito típico do judicial review[41].
Segundo a tradição encontrada no sistema brasileiro[42], verifica-se a tendência de equiparação entre inconstitucionalidade e nulidade, de modo que as decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade também teriam, em regra, efeitos retroativos.
Porém, a partir da promulgação da Lei 9.868/1999 introduziu-se importante alteração no que concerne aos efeitos das decisões declaratórias de inconstitucionalidade, em razão da redação do artigo 27 do mencionado diploma legal que assim dispõe:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Extrai-se do dispositivo mencionado, portanto, a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão declaratória de inconstitucionalidade, sendo que se admite a restrição de efeitos tanto no âmbito do controle concentrado – ressaltando-se que a Lei 9.868/1999 refere-se às ações declaratórias de constitucionalidade e de inconstitucionalidade – como em controle difuso. Nesse sentido, observe-se o escólio de Gilmar Mendes:
A declaração de inconstitucionalidade in concreto também se mostra passível de limitação de efeitos. A base constitucional dessa limitação – necessidade de um outro princípio que justifique a não-aplicação do princípio da nulidade – parece sugerir que, se aplicável, a declaração de inconstitucionalidade restrita revela-se abrangente do modelo de controle de constitucionalidade como um todo. É que, nesses casos, tal como já argumentado, o afastamento do princípio da nulidade da lei assenta-se em fundamentos constitucionais e não em razões de conveniência. Se o sistema constitucional legitima a declaração de inconstitucionalidade restrita no controle abstrato, essa decisão poderá afetar, igualmente, os processos do modelo concreto ou incidental de normas. Do contrário, poder-se-ia ter inclusive um esvaziamento ou uma perda de significado da própria declaração de inconstitucionalidade restrita ou limitada.[43]
Nesse ponto, cabe trazer a lume o problema das “situações constitucionais imperfeitas” levantado por Canotilho[44]. Segundo o autor português, há situações em que a declaração da inconstitucionalidade não implica no reconhecimento da nulidade absoluta. Uma dessas hipóteses é a declaração de inconstitucionalidade sem as conseqüências da nulidade. Em tais casos, apesar da evidente inconstitucionalidade de uma norma, não se associam à sua declaração todos os efeitos decorrentes do reconhecimento da nulidade absoluta. Exemplo disso é a fixação da inconstitucionalidade apenas para o futuro – como ocorre na modulação dos efeitos supra explicitada -, sendo que Canotilho classifica tais hipóteses como “simples fixação de inconstitucionalidade”[45]. Outra hipótese levantada por Canotilho é a denominada “declaração de incompatibilidade”, que corresponderia à não aplicação de lei ou ato normativo até a emanação de um novo ato legislativo[46].
Outrossim, suscita o mestre lusitano a questão da situação ainda constitucional, mas a tender para a inconstitucionalidade, que diz respeito às hipóteses em que uma situação é considerada ainda como constitucional, porém, a ausência de medidas adequadas pode acarretar em uma situação manifestamente inconstitucional. Nesse caso, o tribunal emanaria decisão em forma de apelo ou de um sinal de perigo ao legislador, para que este produza uma nova legislação a fim de corrigir a tendência para a inconstitucionalidade[47]. Outros casos levantados seriam a interpretação em conformidade com a Constituição – interpretação conforme a Constituição -, que corresponde à hipótese em que não se declara a inconstitucionalidade de uma norma enquanto se puder atribuir-lhe uma interpretação compatível com o dispositivo constitucional, e a nulidade parcial, que ocorre quando a desconformidade da lei ou ato normativo em relação à Constituição não é total, de modo que o efeito do reconhecimento da inconstitucionalidade deve ser apenas parcial, evitando-se a plena destruição do ato normativo objeto da fiscalização[48].
Merece ser trazida a lume a conclusão de Canotilho acerca dos casos supracitados:
Todos estes exemplos do tipo de desconformidade constitucional não reconduzíveis à bipartição radical entre actos normativos constitucionais válidos e actos normativos nulos (entre constitucionalidade e inconstitucionalidade não há meio termo) demonstram que as exigências da vida obrigam a soluções conciliadoras das dimensões de constitucionalidade com as necessidades de segurança do direito.[49]
Assim, mediante um juízo de ponderação, considerando-se o princípio da proporcionalidade, em especial a proporcionalidade em sentido estrito, pode-se mitigar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, a fim de que se faça prevalecer a idéia de segurança jurídica ou outro princípio constitucional manifestado sob a forma de interesse social relevante[50]. Desse modo, resta evidenciado que a não aplicação do princípio da nulidade deve estar embasada em fundamentos constitucionais e não em razões de conveniência[51].
Conclusão
Diante desse quadro, tendo em vista a natureza mista do controle de constitucionalidade brasileiro, é interessante ressaltar, à guisa de conclusão, que podem ocorrer situações de conflito entre as decisões proferidas no âmbito de controle incidental, onde se atribuam efeitos ex tunc à declaração de inconstitucionalidade, e a decisão proferida em sede controle concentrado, com eficácia ex nunc – mitigação de efeitos. Em tais casos, poderá o Supremo Tribunal Federal, em decorrência da decisão com eficácia ex nunc proferida em ação direta, ressalvar os casos concretos já julgados e até mesmo os casos ainda pendentes de julgamento, até a data de ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade, com fulcro em razões de índole constitucional, sobretudo no princípio da segurança jurídica, destacando-se a possibilidade de haver, ainda, outras ponderações, em razão da repercussão da decisão tomada no processo de controle abstrato nos processos de controle concreto.
Referências bibliográficas
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MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. 1.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
SANTOS, Alberto Senna. “Coisa Julgada e o Controle de Constitucionalidade da Norma”. REPRO – Revista de Processo - n.º 141/94. Novembro/2006. São Paulo: Revista dos Tribunais.
[1] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 999.
[2] Ibidem, p. 1000.
[3] Ibidem, p. 1000.
[4] HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha (Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deustschland). 20.ª ed. trad. Luís Afonso Heck, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 37.
[5] Ibidem, pp. 38-39
[6] BRANCO; COELHO; MENDES, op. cit., pp. 1000-1001.
[7] MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. 1.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 473.
[8] Ibidem, p. 474.
[9] BRANCO; COELHO; MENDES, op. cit., p. 1004.
[10] MIRANDA, op. cit., p. 522. Jorge Miranda faz ressalva no sentido de que em se tratando de Constituição material e flexível, como é o caso da Constituição britânica, ou mesmo de Constituição formal e flexível, a inconstitucionalidade não configura uma violação jurídica autônoma, bem como não se propiciam as condições mais adequadas para a organização de uma fiscalização. Outrossim, anota o mestre português que condição imprescindível para a existência de um sistema de fiscalização da constitucionalidade é a concepção da supremacia da Constituição como um princípio jurídico operativo.
[11] Adotaremos, aqui, a classificação esposada por Gilmar Mendes. BRANCO; COELHO; MENDES, op. cit., pp. 1005-1007.
[12] Ibidem, p. 1005.
[13] CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 899.
[14] BRANCO; COELHO; MENDES, op. cit., p. 1006.
[15] CANOTILHO, op. cit., p. 900.
[16] Ibidem, p. 900.
[17] Ibidem, p. 901.
[18] Ibidem, p. 901.
[19] BRANCO; COELHO; MENDES, op. cit., p. 1007.
[20] Ibidem, 1007.
[21] CANOTILHO, op. cit., p. 898.
[22] Ibidem, p.898
[23] Ibidem, pp. 898-899.
[24] Ibidem, p. 899.
[25] Ibidem, p. 900. Diversos países adotam este modelo de controle de constitucionalidade, sendo exemplos, além da Áustria, a Itália (Constituição de 1947), a Alemanha (Constituição de 1949), Espanha (Constituição de 1978), Chile (com a Constituição de 1981e a redemocratização que teve início em 1989), Bolívia (revisão constitucional de 1994), República Checa (Constituição de 1992), Ucrânia (1996), Polônia (1997), entre outros, consoante relembra Jorge Miranda. MIRANDA, op. cit., pp. 528-529.
[26] CANOTILHO, op. cit., p. 898.
[27] Ibidem, p. 901. Além dos Estados Unidos, pode-se citar como exemplo de países que adotam o sistema difuso em sua forma pura a Grécia, a Noruega, a Suécia, a Dinamarca, a Alemanha de Weimar, o Japão desde 1946, entre outros (MIRANDA, op. cit., p. 527).
[28] MIRANDA, op. cit., p. 530.
[29] Ibidem, p. 530.
[30] Ibidem, p. 530.
[31] Ibidem, p.530.
[32]BRANCO; COELHO; MENDES, op. cit., p. 1007.
[33] Ibidem, p. 1008.
[34] Ainda, observa-se uma tendência para a objetivação da apreciação das questões constitucionais no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, sendo que a abertura processual proporcionada pela via do amicus curiae alarga ao mesmo tempo em que democratiza a discussão acerca da questão constitucional. Nos termos destacados por Mendes a “adoção de um procedimento especial para avaliar a relevância da questão, o writ of certiorari, como mecanismo básico de acesso à Corte Suprema e o reconhecimento do efeito vinculante das decisões por força do stare decisis conferem ao processo natureza fortemente objetiva” (Ibidem, p. 1007).
[35] CANOTILHO, op. cit., p. 903.
[36] Ibidem, p. 903.
[37] Ibidem, p. 903 Contudo, seguindo lição de Jorge Miranda, convém mencionar que, em se tratando de fiscalização concentrada, a decisão que reconhece a inconstitucionalidade do ato normativo pode possuir eficácia inter partes, quando tal fiscalização ocorrer de forma concreta e subjetiva (MIRANDA, op. cit., p. 501).
[38] Art. 52. [...] X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;
[39] SANTOS, Alberto Senna. “Coisa Julgada e o Controle de Constitucionalidade da Norma”. REPRO – Revista de Processo - n.º 141/94. Novembro/2006. São Paulo: Revista dos Tribunais.
[40] CANOTILHO, op. cit., p. 904.
[41] Ibidem, p. 904.
[42] BRANCO; COELHO; MENDES, op. cit., p. 1244.
[43] Ibidem, p. 1098. Vale dizer que, a partir da redação do artigo 27 da Lei 9.868/1999, o Supremo Tribunal Federal poderá proferir, nas palavras de Gilmar Mendes, uma das seguintes decisões: “a) declarar a inconstitucionalidade apenas a partir do trânsito em julgado da decisão (declaração de inconstitucionalidade ex nunc); b) declarar a inconstitucionalidade, com a suspensão dos efeitos por algum tempo a ser fixado na sentença (declaração de inconstitucionalidade com efeito pro futuro); e, eventualmente c) declarar a inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, permitindo que se operem a suspensão de aplicação da lei e dos processos em curso até que o legislador, dentro de prazo razoável, venha a se manifestar sobre situação inconstitucional (declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade = restrição de efeitos).” Ibidem, p. 1268.
[44] CANOTILHO, op. cit., pp. 957-960.
[45] Ibidem, p. 957.
[46] Ibidem, p. 957
[47] Ibidem, p. 958.
[48] Ibidem, p. 958
[49] Ibidem, p. 959. Ao discorrer sobre a mitigação dos efeitos da decisão declaratória de inconstitucionalidade, Gilmar Mendes nos lembra que essa técnica já era utilizada, há um razoável lapso temporal, por outros importantes órgãos de jurisdição constitucional, sendo exemplo disso a Suprema Corte americana (caso Linkletter v. Walker), a Corte Constitucional austríaca (Constituição, art. 140), a Corte Constitucional alemã (Lei Orgânica, § 31,2 e 79,1), Corte Constitucional espanhola (adotou a técnica de declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade desde 1989, embora não expressa na Constituição), a Corte Constitucional portuguesa (Constituição, art. 282, n.4), entre outros (BRANCO; COELHO; MENDES, op. cit., pp. 1269-1270).
[50] BRANCO; COELHO; MENDES, op. cit., p. 1268.
[51] Ibidem, pp. 1268-1270.
Bacharel em Direito pelo UNIRITTER/RS. Procurador Federal. Especialista em Direito Público pela UnB/CEAD.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DALMAS, Samir Bahlis. Sistemas de controle de constitucionalidade e o modelo brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 set 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40877/sistemas-de-controle-de-constitucionalidade-e-o-modelo-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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