I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Discute-se, de há muito, quais seriam as funções precípuas de uma Constituição. Klaus Stern, constitucionalista alemão, resumiu-as de forma lapidar em seu manual. No presente artigo, vamos desenvolver duas importantes funções constitucionais: Constituição como ordem jurídica e com a função de estabilidade.
Em sede de conclusão vamos analisar as conclusões do desenvolvimento com os olhos voltados para a nossa Constituição e a nossa realidade constitucional, especialmente com relação a experiência que estamos ainda a vivenciar pós a promulgação da Lei Fundamental de 1988 e se conseguiu cumprir essas funções em seus mais de vinte anos.
II – CONSTITUIÇÃO COMO ORDEM JURÍDICA
Do processo em busca da unidade política[1], se faz necessário o estabelecimento de regras e procedimentos para os fatores reais de poder[2] não caírem na luta pela preponderância da sociedade de forma desordeira e inconsequente.
A função de ordem jurídica da Constituição tem como tarefa, a regulação das funções e dos poderes do Estado e do ordenamento jurídico estatal para possibilitar a convivência da coletividade dentro de certos limites e programas estabelecidos pela Lei Fundamental.
Constituição como ordem jurídica está relacionada ao direito como um todo por possuir a função de ordenar a coletividade. A acentuação da Lei Fundamental como ordem, está nas concepções oriundas das revoluções liberais, como forma de sistematizar e ordenar a coletividade para o desenvolvimento do capitalismo.
Nesse sentido Boaventura de Souza Santos:
A esse respeito, esclarece Boaventura de Souza Santos: "O Estado constitucional do século XIX é herdeiro da rica tradição intelectual descrita na secção anterior (As Teorias do Contrato Social). Contudo, ao entrar na posse dessa herança, o Estado minimizou os ideais éticos e as promessas políticas de modo a ajustar uns e outros às necessidades regulatórias do capitalismo liberal. A soberania do povo transformou-se na soberania do Estado-nação dentro de um sistema inter-estatal; a vontade gral transformou-se na regra da maioria (obtidas entre as elites governantes) e na raiso d'état; o direito separou-se dos princípios éticos e tornou-se um instrumento dócil da construção institucional e da regulação do mercado; a boa ordem transformou-se na ordem tout court".(grifei)[3]
A Constituição como norma superior e ordenadora de todo o ordenamento jurídico possui um caráter de determinação e regulação das demais leis, tanto as que vieram depois de sua promulgação, como as anteriores, sendo que, nenhuma poderá ser incompatível com a Lei Fundamental. Da supremacia da Constituição que se assenta o caráter de coerência do ordenamento jurídico que, em suma, pretende lhe dar ordem e estabilidade.
Conforme Klaus Stern "lo determinante debe ser no el government by men, sino el government by constitution. El poder del estado sólo se legitima si puede apoyarse en la constitución"[4], sendo essa a grande conquista do Estado Constitucional.
Não é admissível que o Estado, dentre outros objetivos, para alcançar ou concretizar o que está inserido na Constituição atue ao bel prazer do governante, ou do soberano, ou de uma maioria ocasional e momentânea. É indispensável a disciplina e ordenação do processo de poder estatal e, em termos mais amplos, de toda a coletividade, para possibilitar, em suma, a própria convivência humana.
De forma brilhante expõe Konrad Hesse:
“ … não menos carece o Estado, para tornar-se capaz de atuar em seus poderes, da constituição desses poderes por meio de organização e, para poder cumprir suas tarefas, das regulações de procedimento: colaboração organizada, procedimentalmente ordenada, torna ordem jurídica necessária, e, precisamente, não uma discricional, senão uma ordem determinada, que garante o resultado da colaboração formadora de unidade e o cumprimento das tarefas estatais e que excluí um abuso das faculdades de poder confiados ou respeitados por causa daquele cumprimento de tarefas - em que tal garantia e asseguramento é, não só uma questão da normalização, mas, sobretudo, também da atualização da ordem jurídica”[5].
A ordem jurídica é a própria condição de existência da coletividade, sem a qual, retrocederemos ao autoritarismo ou anarquismo social, impossibilitando o desenvolvimento da coletividade.
Retornando a Konrad Hesse:
"Somente quando direito histórico - consciente ou inconscientemente - passa a conduta humana ele ganha vida e ele torna-se existente. Essa atualização carece do apoio e garantia por meio do Estado: ordem jurídica deve, em amplas partes, ser formuladas e com obrigatoriedade estabelecida pelos poderes estatais, ela deve ser concretizada e sua realização ser assegurada. Estado e direito, por conseguinte, também nesse aspecto, não estão um ao lado do outro sem relação; eles, em múltiplas formas, dependem um do outro e são dependentes um do outro"[6].
A Constituição como ordem jurídica é uma função que se confunde com o próprio sentido de existência de uma Constituição, pois visa, precipuamente, o estabelecimento de uma unidade jurídica de forma hierarquizada formal e materialmente.
III – ESTABILIDADE DA CONSTITUIÇÃO
Consoante a lição de Hesse, "o efeito estabilizador e racionalizador da Constituição é reforçado quando a Constituição é Constituição escrita"[7]. A Constituição escrita e num documento ao alcance de todos, como uma conquista do constitucionalismo liberal,[8] é, por certo, um dos grandes efeitos estabilizadores da Lei Fundamental, contendo normas que estabelecem a forma em que a própria Constituição poderá ser modificada.
Tomando por base um conceito ideal de Constituição, sua pretensão recai em que a Lei Fundamental seja duradoura e imutável. Entretanto, como bem ensina Klaus Stern:
Las constituciones como toda obra humana no pueden ser eternas. Esto no afecta en absoluto al hecho de que es un objetivo de todo proceso constituyente el crear un ordenamiento com pretensiones fundamentalmente de duración; una fijación de la decisión tomada tras una reflexión madura, que debe tener vigencia para un futuro amplio. A fin de hacer efectivo el principio de durabilidad, una constitución tiene que poseer una medida adecuada de elasticidad y flexibilidad, para poder hacer frente a situaciones de tensión ... precisión y claridad aseguran más bien la inviolabilidad y la durabilidad que pueden esperarse de una obra humana[9].
A estabilidade da Constituição, em certa medida, possui uma relação com o grau de sua legitimidade e força normativa. A imutabilidade de uma constituição não significa sua estabilidade, podendo, tendo em vista as circunstâncias em que está inserida, ser um indício de estagnação do desenvolvimento da sociedade. A própria mutação constitucional - obviamente, com ressalvas aos excessos que descaracterizam a pretensão do Poder Constituinte Originário - pode transformar-se em fator de estabilidade constitucional acompanhando o desenvolvimento da realidade, pois, embora a Constituição tenha "vocação para a continuidade (há um compromisso no âmago de qualquer constituição), o direito é um corpo em constante movimento, é algo vivo, é síntese dialética do entrechoque entre as forças transformadoras e as tendências conservadoras)"[10].
Retornando a Klaus Stern "Una constitución no vive exclusivamente en un estado de quietud; vive en su época y está expuesta a las ideas y fuerzas que actuan en ella"[11], portanto, o bom senso indica um caminho de cautela, quando analisa-se a função de estabilidade da Constituição, devendo-se levar em conta, sempre a realidade onde está inserida e a qual pretende regular. Dessa forma, a realidade política social dos Estados desenvolvidos exige um menor grau do cumprimento da função de estabilidade da Constituição do que dos países subdesenvolvidos, onde, por vezes, até mesmo, o princípio democrático é incipiente ou se quer foi alcançado.
IV – CONCLUSÕES
Em sede de conclusão e sem voltar as considerações feitas no desenvolvimento do presente trabalho para não se tornar redundante, cabe retornar a pergunta inicial de que até que ponto a Constituição de 1988 promoveu e foi eficaz no estabelecimento de uma nova ordem jurídica e um novo fundamento de validade do ordenamento jurídico brasileiro e se cumpriu sua função de estabilidade nesses mais de vinte anos de sua promulgação.
Não temos dúvida em afirmar que a Constituição de 1988 cumpriu tanto a função de ordem jurídica como de estabilidade para coletividade brasileira. Embora possa se criticar a baixa força normativa de algumas passagens da Constituição, especialmente os direitos sociais e o combate as desigualdades sociais e regionais – o que também não deve ser remetido exclusivamente ao texto constitucional mas sim a sua realidade e de como se aplicou o programa de constituiçao –, fato é que foi inaugurado um novo fundamento de validade do ordenamento jurídico. Todas as normas infraconstitucionais passam e devem passar pela filtragem da Lei maior, seja formal seja substancial e valorativa.
A prova de que estabilidade está sendo alcançada é o fato de que vivemos o maior período democrático da história nacional, ou seja, a estabilidade constitucional somente pode se dar na e pela democracia, pois assim se dá legitimidade para a permanência de uma mesma Constituição.
Assim, é possível afirmar que a Constituição de 1988 tornou-se a ordem jurídica da coletividade brasileira cumprindo a função de estabilidade desde a sua promulgação.
V – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, Tradução de Luís Afonso Heck, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1998.
FURIAN, Leonardo. Promoção da unidade política como uma função constitucional. Conteúdo Jurídico, Brasilia-DF: 01 set. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.49709&seo=1>. Acesso em: 08 set. 2014.
________. Origem e significado histórico da Constituição do estado liberal. Conteúdo Jurídico, Brasilia-DF: 14 ago. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.49431&seo=1>. Acesso em: 08 set. 2014.
LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998.
SANTOS, Boaventura de Souza, A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência, 3a ed. Cortez Editora.
STERN, Klaus. Derecho del Estado de la Republica Federal Alemanha. Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1987.
STERN, Klaus. Derecho del Estado de la Republica Federal Alemanha. Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1987.
VERONESE, Osmar. Constituição: reformar para que(m)?, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999.
[1] Vide para tanto artigo de minha autoria: FURIAN, Leonardo. Promoção da unidade política como uma função constitucional. Conteúdo Jurídico, Brasilia-DF: 01 set. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.49709&seo=1>. Acesso em: 08 set. 2014.
[2] Para o conceito de fatores reais de poder: LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998.
[3] SANTOS, Boaventura de Souza, A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência, 3a ed. Cortez Editora, p. 140.
[4] STERN, Klaus. Derecho del Estado de la Republica Federal Alemanha. Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1987, p. 220 e 221.
[5] HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, Tradução de Luís Afonso Heck, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1998, p. 35.
[6] Idem, p. 36.
[7] HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, Tradução de Luís Afonso Heck, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1998, p. 43.
[8] A respeito das conquista do constitucionalismo liberal, especialmente da Constituição em documento escrito, vide: FURIAN, Leonardo. Origem e significado histórico da Constituição do estado liberal. Conteúdo Jurídico, Brasilia-DF: 14 ago. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.49431&seo=1>. Acesso em: 08 set. 2014.
[9] STERN, Klaus. Derecho del Estado de la Republica Federal Alemanha. Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1987, p. 227 e 228.
[10] VERONESE, Osmar. Constituição: reformar para que(m)?, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999, p. 27.
[11] STERN, Klaus. Derecho del Estado de la Republica Federal Alemanha. Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1987, p. 229.
Procurador Federal da Adovocacia-Geral da União - AGU, especialista em Direito Público pela Universidade Nacional de Brasília - UNB, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FURIAN, Leonardo. A Constituição como ordem jurídica e sua função de estabilidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 set 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40883/a-constituicao-como-ordem-juridica-e-sua-funcao-de-estabilidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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