A despeito de não possuir unidade conceitual, definição de concepção, elementos e perspectivas que possibilite a formulação de uma teoria bem definida, o neoconstitucionalismo conquistou espaço na doutrina pátria desde a promulgação da Constituição da República, de 1988.
De forma sintética, pode-se afirmar que tal movimento erigiu a ideia de supremacia da Constituição; de preponderância da ponderação em detrimento da subsunção; de fortalecimento do Poder Judiciário frente ao Executivo e ao Legislativo; a idealização de uma justiça particular (concreta, individualizada) em lugar de uma justiça geral (abstrata); a prevalência dos princípios no lugar das regras.
Diante desse quadro, a doutrina passou a se debruçar sobre as modalidades de normas – os princípios e as regras – procurando diferenciar sua estrutura e formas de aplicação e interpretação.
Tanto a regra, quanto o princípio são espécies normativas, na medida em que preveem um dever ser. Ambas podem expressar um mandado, uma permissão ou uma proibição.
Não há se falar em prevalência de uma espécie normativa sobre a outra. A Constituição da República, assim como a legislação em geral, é composta por princípios e regras, ambas possuindo funções próprias e complementares.
Na tentativa de diferenciar os princípios das regras, vários autores buscaram estabelcer distinções tendo por parâmetro critérios que reputavam mais pertinentes.
É freqüente a afirmação de que um dos critérios que diferencia as regras dos princípios é o alto grau de abstração apresentado por este. Os princípios possuiriam maior generalidade, sendo dotados de conteúdo aberto.
Dessa maneira o princípio demandaria aplicação mediadora, seja por meio de integração legislativa, seja por meio de análise e ponderação do caso específico pelo aplicador da norma. A regra por sua vez, demandaria apenas a subsunção, sendo passível de aplicação imediata.
Josef Esser, afirma que os princípios são normas que estabelecem fundamentos para a tomada de decisão. Não exigiriam por si uma conduta.
Wollfbachof e Forsthoff entendem que os princípios não possuem qualidade de normas comportamentais, na medida em que não possuiriam determinação. A função que desempenham no ordenamento é de servir de fundamentos jurídicos para as decisões.
Karl Larenz sustenta que a função precípua dos princípios seria estabelecer fundamentos para a interpretação e aplicação do direito. Assim, falta aos princípios o caráter formal de proposição jurídica, de modo que a diferença em relação às regras está no fato de os princípios não possuírem aplicação imediata, por não preverem conseqüência jurídica decorrente de hipótese de incidência.
Ronald Dworkwin, por sua vez, entende que a diferença entre regra e princípio se encontra na forma de aplicação, em sua estrutura lógica.
Defende que a regra possui aplicação disjuntiva, sujeita a “ideia de tudo ou nada”. Assim, ou a situação se subsume perfeitamente à descrição normativa contida na regra ou é prontamente descartada por ser inaplicável ao caso concreto. Para o referido autor, o choque entre regras é sempre solucionado pelos critérios clássicos de superação de antinomias, em que se analisam hierarquia, especialidade e cronologia.
O princípio, por sua vez, possui uma dimensão de peso. Assim, o conflito entre princípios não é resolvido pela prevalência integral de um com o conseqüente descarte de outro, mas pela análise da importância que cada princípio envolvido na questão possui naquela situação específica, sem que o outro perca sua validade.
Para Robert Alexy, que parte da premissa estabelecida por Dworkin, a distinção está no fato de os princípios serem mandados de otimização com graus variáveis, a serem atendidos na maior extensão possível, consideradas as peculiaridades factuais e jurídicas do caso concreto[1]. Há em relação aos princípios um dever de proporcionalidade a ser observado diante do caso concreto.
As regras exigem para sua validade a implementação de toda a extensão daquilo que preveem, sob pena de não restarem atendidas. As regras determinam as conseqüências normativas de forma direta.
Do choque entre regras poderiam resultar duas situações: ou uma das regras é considerada exceção da outra ou se declara que uma delas é inválida no caso concreto. Já o choque entre princípios somente poderia ser resolvido no caso concreto, jamais em abstrato, pois o resultado da equação dependeria do valor assumido por cada princípio diante da situação específica.
Alexy se afasta da conclusão de Dworkin e sustenta que a diferença entre princípios e normas se resume a dois aspectos: a colisão[2] e as obrigações que estabelecessem[3].
Humberto Ávila resume os critérios usualmente estabelecidos para distinguir os princípios das regras em i) critério do caráter hipotético-condicional, ii) critério do modo final de aplicação, iii) critério do relacionamento normativo e iv) critério do fundamento axiológico.
Pondera, todavia, que: as distinções que separam os princípios das regras em virtude da estrutura e dos modos de aplicação e de colisão entendem como necessárias qualidades que são meramente contingentes nas referidas espécies normativas[4]. Além disso, o mesmo autor tece críticas aos critérios usualmente adotados e, ao final, propõe critérios distintivos que reputa possuírem implicações práticas.
Para o critério do caráter hipotético condicional, o fator de distinção se encontra no fato de que as regras predeterminam a decisão (por preverem a hipótese e a conseqüência necessária), enquanto os princípios apenas indicam os parâmetros a serem utilizados para se chegar à regra aplicável ao caso concreto.
No entanto, o critério se revela impreciso, na medida em que a despeito de os princípios indicarem os fundamentos a se chegar à norma, o conteúdo normativo de qualquer norma – quer regra, quer princípio – depende de possibilidades normativas e fáticas a serem verificadas no processo mesmo de aplicação.[5]
Além disso, o autor vislumbra em tal critério confusão entre dispositivo (texto legal) e norma, na medida em que, a existência de uma hipótese de incidência é questão de formulação lingüística e, por isso, não podem ser elemento distintivo de uma espécie normativa[6]. Afirma que diante das circunstâncias do caso concreto, qualquer norma termina por assumir uma formulação hipotética. Toda norma seria uma regra[7].
Um segundo critério seria o do modo final de aplicação, pelo qual o signo distintivo seria o fato de as regras serem aplicadas ao modo tudo ou nada, enquanto os princípios admitem um modo gradual de aplicação.
A crítica a esse critério reside no fato de o modo de aplicação não é determinado pelo dispositivo, mas é decorrente de conexões axiológicas a serem construídas pelo intérprete, diante de circunstâncias peculiares ao caso. Além disso, há regras compostas de expressões abertas, cabendo ao aplicador decidir pela aplicação ao caso concreto em maior ou menor grau, o que afasta o modo tudo ou nada de aplicação.
Destaca o referido autor que tal critério de distinção perde relevância na medida em que se constata que os princípios demandam a integração de regras para sua devida aplicação.
Afirma que a assertiva de que diante da hipótese de incidência, a regra acarretará necessariamente a conseqüência jurídica não se revela inteiramente correta, seja por ocorrerem situações em que as conseqüências da regra estarão presentes mesmo sem que se verifique a hipótese de incidência (como no caso da analogia), seja por existirem situações em que da hipótese de incidência não advirá a respectiva consequência jurídica (hipótese de cancelamento da razão justificadora por razões tidas por superiores pelo aplicador).
Assim, entende que esse critério perde sua utilidade, pois somente permitirá a dissociação em concreto, após a aplicação da norma, não possibilitando a antecipação das características da norma e tampouco minorando a necessidade de justificação argumentativa do aplicador do direito.
Há, ainda, o critério do relacionamento normativo, pelo qual o conflito entre regras se resolve pela declaração de invalidade ou a criação de uma exceção, enquanto o conflito entre princípios é superado pela ponderação da importância dos princípios colidentes no caso concreto.
A ressalva no caso consiste no fato de a ponderação não se aplicar exclusivamente aos princípios, podendo ser aplicada também às regras quando entrem em choque sem que percam sua validade.
Inicialmente, porque o conflito entre regras não ocorrerá, necessariamente, sempre em abstrato, sendo perfeitamente possível que duas regras válidas ao caso concreto se choquem concretamente sem que a solução para tal antinomia passe pela declaração de invalidade ou pelo enquadramento de uma como hipótese de exceção de outra. Há a possibilidade de realização de ponderação entre os valores em jogo no caso concreto para a superação de seu sentido preliminar em decorrência da existência de razões contrárias. Assim, a atividade de ponderação de razões não é exclusiva aos princípios, sendo potencialmente inerente a qualquer espécie normativa e decorre do caráter argumentativo do próprio direito.
Além disso, é incorreta a afirmação de que os princípios possuem uma dimensão de peso, sempre resolvida pela ponderação. Não é a norma em si que possui dimensão de peso. Na verdade, a importância (peso) é atribuído no caso concreto pelo aplicador aos fins e valores a que o princípio faz referência. Ou seja, a noção de dimensão de peso decorre de um juízo de valor realizado pelo aplicador da norma, sendo algo extrínseco à norma.
É perfeitamente possível que no caso de colidirem princípios que determinam a concretização de fins antagônicos tenha-se que albergar integralmente um deles, reconhecendo que o outro princípio não terá aplicação ao caso concreto.
Dessa maneira, enquanto é possível conceber incompatibilidade em abstrato entre duas normas, os princípios somente poderão chocar-se no plano concreto.
Por fim, há o critério do fundamento axiológico que vislumbra nos princípios apenas fundamentos de valores a serem observados para a aplicação da norma ao caso concreto.
A crítica que se tece a tal critério é exclusivamente ao fato de atribuir o valor primordial à norma, e não às razões utilizadas pelo aplicador, a partir dela[8].
Humberto Ávila defende um critério de dissociação que nomina de heurístico. Utiliza esse termo por entender que haja vista ser a norma construída pelo intérprete, dependendo de juízos de valor que não estão contidos no texto legal, qualquer classificação realizada a priori somente possuirá valor provisório, até que elaborado o processo de construção da norma.
Sustenta que uma norma poderá dar origem a mais de uma regra ou mais de um princípio ou a ambos, de forma que não se está a falar sobre alternativas exclusivas.
São três os critérios para se realizar a distinção entre princípios e regras: i) o da natureza do comportamento prescrito, ii) o da natureza da justificação exigida e iii) o da medida para a contribuição da decisão.
Pelo primeiro, as regras são normas que definem a conduta a ser adotada (estabelecendo obrigações, permissões e proibições), enquanto os princípios determinam a realização de um fim juridicamente relevante sem, entretanto, estabelecer quais comportamentos devem ser realizados que o atinja.
Pelo critério da justificação exigida, A interpretação e a aplicação das regras exigem um avaliação da correspondência entre a construção conceitual dos fatos e a construção conceitual da norma e da finalidade que lhe dá suporte, ao passo que a interpretação e a aplicação dos princípios demandam uma avaliação e correlação entre o estado das coisas posto como um fim e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária[9].
Assim, a regra tem como determinante o elemento descritivo, o que minora a necessidade de justificação comparada ao princípio, que por possuir como característica um elemento finalístico, demanda a utilização mais intensa da argumentação para justificar a conduta adotada com o intuito de atingir o fim almejado pela norma.
Por fim, há o critério da medida de contribuição para a decisão.
Por tal critério de distinção, enquanto os princípios não possuem a pretensão de resolver a situação apenas pelos elementos nele contidos, mas apenas de apresentar elementos relevantes para a tomada de decisão, as regras objetivam não apenas elencar todos os elementos necessários à conclusão, mas de pronto apresentar a solução para o conflito específico.
A partir de tal análise, Humberto Ávila formula conceito de princípio e de regra, que se revelam mais consentâneos com a utilidade prática que se almeja a dissociar espécies do mesmo gênero. Leciona que:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente restropectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporteou nos princípios que lhe são axiologicamente subjacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisa a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.
Bibliografia de referência
ÁVILA, Humberto. “NEOCONSTITUCIONALISMO”: ENTRE A “CIÊNCIA DO DIREITO” E O “DIREITO DA CIÊNCIA”. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 17, janeiro/fevereiro/março, 2009.
ÁVILA. Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. In Revista Diálogo Jurídico. Ano I, vol. I, n° 4, Salvador, julho de 2001.
ÁVILA, Humberto. TEORIA DOS PRINCÍPIOS da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São Paulo: Malheiro Editores. 2014.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitcional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2014
[1] Factuais na medida em que o conteúdo e extensão dos princípios em choque somente serão determinados diante de uma situação concreta, jamais em abstrato. Normativa, porque tal conteúdo será definido levando-se em consideração os princípios e regras em relação aos quais se contraporá.
[2] Em relação à colisão, os princípios limitam-se reciprocamente, enquanto no caso das regras há a invalidação de uma das colidentes ou o estabelecimento de uma regra de exceção que afaste a antinomia.
[3] Os princípios instituem obrigações que podem ser superadas ou derrogadas em virtude de outros princípios também aplicáveis ao caso concreto, enquanto as obrigações criadas pelas regras são sempre absolutas.
[4] Ávila, Humberto. TEORIA DOS PRINCÍPIOS da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São Paulo: Malheiro Editores. 2014. pp. 43/44.
[5] Ávila, Humberto. TEORIA DOS PRINCÍPIOS da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São Paulo: Malheiro Editores. 2014. p. 61.
[6] Idem.
[7] Idem. p. 89.
[8] Ávila, Humberto. TEORIA DOS PRINCÍPIOS da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São Paulo: Malheiro Editores. 2014. p. 91.
[9] Ávila, Humberto. TEORIA DOS PRINCÍPIOS da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª edição. São Paulo: Malheiro Editores. 2014. p. 97.
Procurador Federal - AGU
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GIANNINI, Marcelo Henrique. Princípios e regras - da distinção clássica à proposta de Humberto Ávila Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 set 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40891/principios-e-regras-da-distincao-classica-a-proposta-de-humberto-avila. Acesso em: 23 dez 2024.
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