RESUMO: A vontade da Constituição (Ville zur Verfassung), que pode ser entendida como a real intenção do constituinte, não se concretiza se sua aplicação se mostrar tênue e amesquinhada. Para garantir efetividade das normas constitucionais e tornar a Constituição uma força ativa mostra-se imperioso superar o vetusto método interpretativo silogístico (lógico-dedutivo) e pautar a interpretação constitucional em métodos capazes de amoldar a vontade da constituição aos casos práticos. Nesse sentido, assoma-se a lógica do razoável como método interpretativo de curial importância, que, aliado a outros métodos inovadores, asseguram a concretude e efetividade da Constituição.
Palavras-chave: Hermenêutica. Métodos hermenêuticos. Eficácia constitucional. Justiça.
1. INTRODUÇÃO
O Direito, como fenômeno social que é, essencialmente decorrente da natureza interativa do ser humano, tem como objetivo precípuo suturar as inquietações e querelas que brotam na arena social, e, também, oportunizar meios para garantir efetividade dos direitos fundamentais do homem.
A consecução de tais objetivos, porém, depende de uma escorreita aplicação do arcabouço normativo que, por sua vez, só é possível através da interpretação adequada e coerente por parte do aplicador do Direito. Assim, a hermenêutica, como ciência da interpretação, é ponto fundamental na Ciência do Direito, pois a depender do manejo e adesão a suas diversas teorias e a exteriorização destas quando da aplicação do Direito é que se poderá potencializar ou amesquinhar a eficácia de uma norma. Esta, na verdade, tem o tamanho que o intérprete lhe propõe dar, obviamente dentro dos ditames que o sistema jurídico pátrio estabelece.
Nesse sentido, questão nevrálgica diz respeito à hermenêutica constitucional, pois sendo a Constituição Federal o ponto de partida e o limite de toda e qualquer interpretação dos atos normativos além de ser, também, a matriz dos direitos e garantias, o resultado da interpretação de suas normas é ponto fulcral na definição de posições que possam alargar direitos ou malferi-los. A interpretação constitucional, assim, a depender da postura do operador, pode resvalar em pura manipulação retórica, justificando o tolhimento de direitos ou camuflando o desrespeito aos mesmos ou, noutro extremo, e assim se espera que seja nestes tempos de busca pela efetividade dos direitos e garantias fundamentais, pode resultar em meio de efetiva garantia de direitos, fazendo com que os ensinamentos da Lei Maior deixem de ser meras instruções ao legislador ou ao Poder Executivo, mas normas eficazes, dotadas de força e capazes de, por si sós, garantir direitos e efetivar a Justiça.
Nessa toada é que o Judiciário deve se enveredar, distanciando-se do método hermenêutico clássico e abraçando os métodos inovadores, entendendo a Constituição como documento aberto (ideia de Peter Haberle), o que impedirá a derrocada de sua força normativa, pois será (re)construída diuturnamente pelos diversos agentes sociais e de acordo a necessidade dos casos concretos.
2. HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL: EVOLUÇÃO E MÉTODOS
É cediço que a hermenêutica constitucional tem evoluído sistematicamente, desde meados do século XX, quando passou a surgir uma teoria da interpretação criada especificamente para o direito constitucional, tendo em vista que até então a interpretação constitucional era feita com os mesmos métodos aplicados ao Direito Civil.
Tal evolução e criação de métodos próprios de interpretação mostraram-se necessárias exatamente pelas particularidades que possuem as normas constitucionais. Com efeito, são normas superiormente hierárquicas em relação às demais (na concepção piramidal de Kelsen). Não bastasse, são normas essencialmente principiológicas, que necessitam de densificação e concretização, além de possuírem elasticidade na eficácia e no objeto, sendo fruto de concepções as mais diversas que foram amalgamadas pelo Constituinte, como observa o professor Marcelo Novelino (2008).
Nessa esteira de pensamento, a hermenêutica constitucional ganhou independência e métodos próprios, sendo já ultrapassada a utilização apenas do método clássico, segundo o qual a Constituição é uma lei e por isso deve ser interpretada por meio dos elementos tradicionais criados por Savigny, a saber: sistemático, histórico, gramatical e lógico. Tal concepção, abraçada por Ernest Forsthoff, não encontra eco no neoconstitucionalismo.
Representando avanço em relação ao método clássico, Rudolf Smend criou o método científico-espiritual (ou sociológico, integrativo), segundo o qual o intérprete não deve se ater apenas à descrição normativa constante do texto constitucional, mas averiguar os valores que levaram o constituinte a elevar a nível constitucional aquele preceito. É dizer: a constituição deve ser interpretada em seu contexto e não isoladamente, considerando a realidade social a partir de uma visão sistêmica. Preza tal método, portanto, pela consideração dos fatores extraconstitucionais, estreitando a relação entre as ciências sociais e a interpretação constitucional.
Mais inovador, o método tópico-problemático de Theodor Viehweg, ressalta o caráter prático da interpretação, que deve ser buscado e garantido pela estrutura normativo-material aberta e indeterminada da Constituição, relevando a necessidade de discussão dos problemas, já que a open texture do texto constitucional não permite qualquer dedução subsuntiva[1].
O termo tópica vem de topos, que significa “esquema de pensamento”, raciocínio, argumentação, ponto de vista, “lugar comum”. Como bem observa Novelino (2008) os topoi são extraídos de princípios gerais, decisões judiciais, crenças e opiniões comuns, tendo como função discussão de problemas[2]. Vê-se, assim, que se trata de método que prima pelos problemas nos casos concretos a partir dos quais se busca a resolução, com respaldo na norma constitucional. Embora possa difundir casuísmo exacerbado (e essa tem sido a crítica a este método), não se pode negar que tem o condão de preencher diversas lacunas, fazendo o intérprete constitucional mais voltado e mais perto dos problemas sociais que requerem solução, justa e consentânea com a Constituição Federal.
Sem olvidar do método normativo-estruturante, de Friedrich Muller (inclusive com marcante inspiração da tópica), que realça a necessidade de não se desvincular a realidade da norma, já que direito e realidade são indissociáveis e, exatamente por isso, não se deve falar sequer em interpretação mais em concretização, sendo indevido compreender a aplicação do direito por meio de adoção de métodos interpretativos, o método que de certa forma mais tem contribuído para dar efetividade às normas constitucionais é o método hermenêutico-concretizador.
Defensor árduo da força normativa da constituição, Konrad Hesse parte do princípio de que a interpretação constitucional é concretização, entendida esta como uma norma preexistente na qual o caso concreto é individualizado. O intérprete, assim, deve aplicar a Constituição como norma dotada de eficácia e força e não visualizá-la como mero texto de intenções, instruções a serem seguidas. Ela por si só já traz força suficiente para garantir e efetivar direitos.
Como obtempera o já citado professor Marcelo Novelino, parafraseando outros ilustres constitucionalistas:
o intérprete há de contemplar os fatos concretos da vida, correlacionando-os com as proposições normativas da Constituição, pois uma interpretação adequada deve ser capaz de concretizar o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação. Trata-se de uma metodologia positivista atenta à realidade concreta, pautada em um pensamento problematicamente orientado de teor empírico e casuístico” (2008, p. 109).
Tais métodos interpretativos, em franca ascensão, demonstram a necessidade de aplicar o texto constitucional a partir da análise de sua real intenção, afastando-se do apego formal e reconhecendo a normatividade também dos princípios, característica marcante do neoconstitucionalismo.
3. MODELO PROGRESSISTA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL COMO FORMA DE GARANTIR EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
Não há como negar que dentre os métodos apontados há aqueles que buscam de forma mais incisiva a garantia dos direitos constitucionalmente previstos, afastando-se dos formalismos e atentando para a praxis social, os reclames da sociedade. Isso porque, como norma superior, é cediço que a Constituição irradia princípios que deverão nortear todo o sistema jurídico de um Estado, devendo os mesmos ser sempre compatíveis entre si, de maneira que, atualmente, os textos constitucionais são caminhos, direções que o legislador e o aplicador do direito devem percorrer, no sentido de garantir efetividade da Constituição.
A Constituição, portanto, mostra-se como um grande celeiro de princípios que nortearão todas as atividades do Estado, devendo todo e qualquer ato a ela se submeter sob pena de possuir a pecha de inconstitucionalidade e, sendo assim, perder sua validade enquanto ato jurídico.
O texto constitucional, nessa toada, não se deve mostrar como mera linha de direção, como indicativo. É norma - e a Norma Maior - e sendo norma jurídica está imbuída de seus atributos, mormente da coercibilidade. A Constituição (suas regras e seus princípios), mais que qualquer outro dispositivo legal, precisa ser piamente seguida, já que a tarefa medular dos Estados atuais não é unicamente fazer a Constituição, mas cumpri-la, como adverte Paulo Bonavides (2003).
No mesmo sentido, o intérprete, valendo-se dos postulados normativos[3], no dizer de Humberto Ávila, ou princípios hermenêuticos, como preferem outros autores, deve buscar efetivo respeito aos comandos constitucionais, reconhecendo e garantindo a imperatividade que a mesma detém, quando impôs um amalgamado de ideologias provenientes do povo que, representado, compôs o Poder Constituinte originário.
Nessa esteira de entendimento é que Konrad Hesse (1991), em marcante obra traduzida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, defende, de forma veemente, a necessidade da efetivação da chamada vontade constitucional, rechaçando a teoria de Lassale de ser a Constituição mera folha de papel e defendendo a força normativa da Constituição, no sentido de que, em linhas gerais, os preceitos por ela expedidos devem ter efetiva aplicação, garantindo, assim, plena eficácia, já que “um ótimo desenvolvimento da força normativa da constituição depende não apenas do seu conteúdo, mas também de sua práxis.” (HESSE, 1991, p. 21)
A hermenêutica constitucional que esse contexto requer, portanto, exige plena aplicação e eficácia de todas as normas constitucionais.
Nesta linha de entendimento, os princípios, pela mais abalizada teoria sobre as normas constitucionais, tal como as regras também são normas e, assim sendo, devem ser aplicados, pois possuem efetividade. Assim lecionam (atribuindo força normativa aos princípios) os grandes doutrinadores no assunto, como Robert Alexy, Ronald Dworkim e, no Brasil, Paulo Bonavides. Como arautos do modelo progressista de interpretação constitucional, defendem que, embora a densidade normativa dos princípios seja diminuta em relação à das regras, isto não implica a sua inferioridade, pois se constituem em fundamento basilar, determinando o seu âmbito de aplicação das regras e a forma como deve se dar a integração das mesmas, além de incidirem diretamente sobre casos concretos. O festejado professor Celso Antonio Bandeira de Mello, neste ponto, foi marcante ao asseverar em uma de suas obras que “violar um princípio é bem mais grave que transgredir uma norma qualquer”[4].
Portanto, considerando o princípio da supremacia da Constituição e da máxima efetividade que há de ser concedida a seus dispositivos, deflui-se, por lógica, que quando da interpretação de seus enunciados deve-se buscar o máximo de efetividade dos mesmos, concretizando-se os direitos ali estatuídos, seja o legislador, executivo e, sobretudo, o Judiciário, inclusive no contexto da famigerada judicialização das políticas públicas, quando este Poder, face à inércia dos demais, e fazendo análise de juridicidade do ato (ou omissão), determina implementação de direitos garantidos pelo texto constitucional mas preteridos por quem os deveria efetivar.
Isso porque, garantindo efetivação a tais princípios, estar-se-á garantindo a real vontade da constituição, inclusive no viés da garantia do acesso à Justiça, valor supremo a qualquer princípio.
5. À GUISA DE CONCLUSÃO
Não há dúvida de que é na aplicação concreta da Constituição que se verificará a extensão dos direitos, e os garantirá, atendendo ao que fora proposto pela Constituinte. A proposta de interpretação progressista não encampa a ideia de desconsideração de qualquer limitação quando da aplicação do direito constitucional. Jamais. Mesmo porque, é imprescindível a correta ponderação de valores e observância de limites principiológicos e interpretativos sob pena de, pela interpretação demasiadamente elástica, ocorrer a possibilidade de manipulação do texto constitucional, seja para alargar por demais o alcance de suas normas, seja, por outro lado, para restringir sobremaneira sua aplicação.
De fato, não se trata de defesa da abertura de espaço para o arbítrio do julgador, que poderia construir o direito, como melhor lhe aprouvesse. Ocorreria, aí, certamente, o risco da banalização dos princípios, o que geraria instabilidade e, como paradoxo, iria de encontra ao próprio intento da Constituição (garantir a segurança jurídica, por exemplo).
De qualquer forma, é inegável que a hermenêutica constitucional hodierna exige postura aberta e integradora do aplicador do Direito. Já não mais justifica posições como as dos interpretativistas norte-americamos, marcadas pelo textualismo, originalismo e preservacionismo. A constituição altera, e altera sem modificar seu texto (mutação constitucional). Tal mudança, portanto, só será percebida pelo aplicador quando em situações concretas fazer incidir e garantir os direitos albergados pelo Texto Maior, exteriorizando no mundo fenomenológico a vontade da Constituição.
Tudo isso com intuito último de buscar a concreção da Justiça, valor-fim do Direito, que se afigura como a realização do bem comum, segundo a proporção exigida pelos valores da pessoa e pela conservação e o desenvolvimento da cultura, representando o valor-fim que serve de fundamento último e próprio do Direito” (FREIRE, 2008, p. 42)
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[1] CANOTILHO, JJ Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1.175.
[2] NOVELINO, Marcelo. Teoria da constituição e controle de constitucionalidade, p. 106.
[3] Postulados normativos enumerados por Konrad Hesse e Friedrich Muller: princípio da unidade da Constituição; princípio do efeito integrador; princípio da concordância prática; princípio da convivência das liberdades públicas; princípio da força normativa da Constituição; princípio da máxima efetividade; princípio da conformidade funcional.
[4] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 883.
Procurador Federal. Especialista em Direito Processual Civil.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Jeffersson Ferreira. Métodos hermenêuticos e efetividade constitucional: buscando concretude da vontade da Constituição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 set 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40997/metodos-hermeneuticos-e-efetividade-constitucional-buscando-concretude-da-vontade-da-constituicao. Acesso em: 23 dez 2024.
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