Introdução
Este artigo visa esclarecer alguns pontos sobre os efeitos retroativos da Constituição e o direito adquirido, mostrando por meio da doutrina os pontos controversos desse assunto entre os doutrinadores, através da legislação o que a lei diz a respeito desse tópico e através da jurisprudência mostrar como o assunto vem sendo tratado nos tribunais brasileiros por meio de ações diretas de inconstitucionalidade e de recursos extraordinários.
O artigo mostrará as diferenças entre direito adquirido, coisa julgada e ato jurídico perfeito, além de apresentar como o direito adquirido se relaciona com a retroatividade da Constituição. Para isso, mostrar-se-á também, as diferenças de retroatividade da constituição e que podem influenciar esses assuntos.
Efeitos retroativos da Constituição e o direito adquirido
Tipos de efeitos retroativos das normas constitucionais
Primeiramente para iniciar a discussão do assunto, é necessário um esclarecimento sobre tipos de efeitos retroativos das normas constitucionais que irão interagir com o direito adquirido e com as normas jurídicas.
O primeiro efeito é o da retroatividade máxima, na qual a norma atinge a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e a coisa consumada; é também chamado de eficácia restituitória.
A retroatividade média é o efeito da norma que atinge os fatos pendentes de ato jurídico verificado antes dela, interferindo nos direitos exigíveis, mas não realizados antes de sua vigência.
Por último, a retroatividade mínima ocorre quando a norma atinge apenas os efeitos dos fatos anteriores, mas produzidos após a data de sua vigência. Alguns doutrinadores se mostram a favor da teoria que a chamada retroatividade mínima nada mais é do que uma das decorrências do efeito imediato da norma.
Todas as Constituições brasileiras consagraram o princípio da não-retroatividade da lei, salvo a de 1937. Até no Supremo Tribunal Federal já corre a tese de que esse princípio aplica-se inclusive às normas de ordem pública, razão pela qual nenhuma lei poderá sofrer efeitos retroativos, de acordo com o preceito do artigo 5º, XXXVI, da Constituição de 1988. A entrada em vigor de uma nova Constituição, automaticamente, atinge os efeitos futuros de fatos passados (retroatividade mínima). Porém, não pode se negar à hipótese em que o Poder Constituinte Originário pode, mediante dispositivo expresso, consagrar a retroatividade máxima ou média. Por isso, diz-se que não há direito adquirido contra a Constituição.
Existem controvérsias em torno da aplicação do princípio da irretroatividade da norma em relação às emendas constitucionais. A Constituição de 1988 incluiu as cláusulas pétreas, nas quais grande parte dos doutrinadores sustenta que sequer as emendas constitucionais poderão surtir efeitos retroativos. Analisando o inciso XXXVI do art. 5º, denota-se que, a despeito do art. 60, § 4º, IV, o princípio da irretroatividade não se aplica às emendas constitucionais.
O tema em pauta repercute sobre um rico e complexo campo do Direito, palco de elaboradas construções doutrinárias, jurisprudenciais e até filosóficas. Enveredamos num terreno polêmico, predicado assíduo nas temáticas férteis do Direito. A base da discussão sobre o direito adquirido e o ato jurídico perfeito situa-se sobre a temática da estabilidade dos direitos subjetivos e consequentemente a garantia constitucional da segurança dessas relações, que corresponde a um valor de ordem, de paz e de respeito inatos à consciência e desejos dos cidadãos. Vê-se, pois, que o tema transcende direito positivo, fincando raízes no direito natural, Pois, se é verdade que o direito é dinâmico e muitas vezes deve mudar, não é menos verdade que as relações constituídas sob o império de uma norma devem perdurar ainda que tal norma seja substituída.
O art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República alberga a garantia de segurança na estabilidade das relações jurídicas, essas continuarão a produzir os mesmos efeitos jurídicos tal qual produziam antes de se mudar a lei que regulava a relação jurídica de tais direitos subjetivos se formaram, desde que tenham se constituído em direito adquirido, ato jurídico perfeito ou em coisa julgada.
Pois esses institutos jurídicos têm por escopo salvaguardar a permanente eficácia dos direitos subjetivos e das relações jurídicas construídas validamente sob a égide de uma lei, frente futuras alterações legislativas ou contratuais. Eis o sentido de segurança que proporcionam aos cidadãos. Constituem direitos constitucionais de primeira geração, os quais impõem limites na ingestão do Estado na vida dos cidadãos, esculpindo círculos intocáveis na vida das pessoas livres e imunes da ingerência estatal. Examinar-se-á apenas as linhas gerais dos dois primeiros institutos: o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, na perspectiva do direito material.
No decorrer desse artigo trar-se-á a lume os conceitos técnicos jurídicos dos institutos e a distinção entre o direito adquirido e o ato jurídico perfeito. Trata-se de conceitos técnicos, os quais devem ser bem compreendidos pelo operador do direito em face da relevância em que apresentam ao sistema jurídico.
Quando o constituinte erigiu o direito adquirido, o ato jurídico perfeito como disposições assecuratórias em defesa dos direitos subjetivos, limitou o poder do legislador, circunscrevendo os limites da legiferância, pressupôs que tais expressões já trouxessem, de per si, um teor de significação, impassível de restrição por parte do legislador ordinário, sob pena de se desconstituir a garantia esculpida pelo constituinte. Tal norma é dirigida primeiramente ao legislador ordinário, consequentemente esse deve se ater ao significado dos institutos, segundo a ratio constitutionis e não conforme o próprio legislador os entenda. A tônica original desses institutos fora esculpida na Lei de Introdução do Código Civil (LICC) que traz as linhas gerais desses institutos e na construção interpretativa que a doutrina e jurisprudência embasaram sobre os institutos, a qual deve ser preservada pelo legislador ordinário em prol da própria Carta Magna.
A distinção preliminar básica que devemos perfazer entre direito adquirido e ato jurídico perfeito consiste na própria idéia semântica de um e de outro. O primeiro nada mais é do que uma espécie de direito subjetivo definitivamente incorporado ao patrimônio jurídico do titular, mas ainda não consumado, sendo, pois, exigível na via jurisdicional se não cumprido pelo obrigado voluntariamente. O titular do direito adquirido está protegido de futuras mudanças legislativas que regulem o ato pelo qual fez surgir seu direito, precisamente porque tal direito já se encontra incorporado ao patrimônio jurídico do titular – plano/mundo do dever-ser ou das normas jurídicas – só não fora exercitado, gozado – plano/mundo do ser, ontológico.
O titular do direito adquirido extrairá os efeitos jurídicos elencados pela norma que lhe conferiu o direito mesmo que surja nova lei contrária a primeira. Continuará a gozar dos efeitos jurídicos da primeira norma mesmo depois da revogação da norma. Eis o singelo entendimento do direito adquirido. Já o ato jurídico perfeito é o título ou fundamento que faz surgir o direito subjetivo, é todo ato lícito que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos (art. 81 do CC).
Ato jurídico perfeito é aquele que sob o regime de determinada lei tornou-se apto para produzir os seus efeitos pela verificação de todos os requisitos a isso indispensável. Assim, o ato jurídico perfeito deve ser analisado sob ótica de forma. Podemos dizer que o ato jurídico perfeito é um instituto irmão do direito adquirido, algumas vezes aquele surge antes desse, como no caso do testamento válido, lavrado e assinado, mas ainda vivo o testador, ou, um negócio jurídico sujeito à condição suspensiva.
Nesses exemplos há ato jurídico perfeito, pois tais atos foram constituídos validamente sob a égide de uma lei válida, porém em ambos inexiste direito adquirido, vez que, respectivamente, o testador ainda vive, e, a condição suspensiva ainda não ocorreu (art. 118 do CC). Logo, não houve a completude do fato concreto gerador do direito subjetivo. Focaremos no direito adquirido sob ótica de fundo, já o ato jurídico perfeito sob ótica de forma.
O direito adquirido emana diretamente da lei em favor de um titular, enquanto que o ato jurídico perfeito é negócio fundado na lei. Ou seja, o direito adquirido é uma espécie de direito subjetivo, ao passo que o ato jurídico perfeito é um negócio jurídico ou ato jurídico stricto sensu segundo a visão civilista. Tanto direta e imediatamente da lei como dos atos jurídicos – os contratos, as declarações unilaterais de vontade – e, portanto, indireta e imediatamente da lei, podem dar ensejo ao direito adquirido. Atente-se para o fato que só surgirá direito adquirido quando houver a completude dos seus requisitos e fatores de eficácia, elencados pelo regime jurídico peculiar do direito positivo que rege o ato, incidindo por completo o direito objetivo fazendo assim nascer o direito subjetivo, a partir daí adquirido.
Da própria lógica do sistema emerge e se funda o princípio da irretroatividade da lei, que é um princípio geral de direito, e não uma peculiaridade de um ramo do direito, apesar de certas especificidades em certos casos, especialmente no Direito Público e no Direito Penal. Decorre do pressuposto de que as leis são feitas para vigorar e incidir para o futuro. São portanto prospectivas, regem situações que descrevem em seu bojo somente a partir da sua vigência, pois somente a partir daí possuem força normativa ou imperatividade. Tal postura é consentânea com o princípio da segurança jurídica e do valor de ordem inerente ao direito. As leis só poderão surtir efeitos retroativos excepcionalmente, quando a própria lei assim o estabeleça, presumem (presunção relativa) irretroativas, restando ainda nessa exceção resguardados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Posto que o princípio da irretroatividade – ainda que relativo – é inerente à lógica do sistema normativo, e ainda que haja a retroatividade da lei, a qual deve ser expressa, deverá sempre respeitar os institutos em estudo, sob pena da eiva da inconstitucionalidade.
A atual Lei de Introdução ao Código Civil ao considerar como direitos adquiridos aqueles que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, assim como aqueles cujo começo de exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem, é de muito pouca valia para o efeito de determinação dos exatos lindes do conceito de direito adquirido.
Direito adquirido contra a Constituição
A doutrina e a jurisprudência afirmam que não pode haver direito adquirido contra a Constituição, pois se não pode haver direito adquirido contra a lei, não pode haver obviamente contra a Constituição. O ato assim praticado é inconstitucional e passível de anulação. Mas o que tanto a doutrina quanto a jurisprudência parecem ter em mira são os atos praticados sobre a égide de uma Constituição anterior. Então se pergunta: alguém que gozasse do benefício de uma vantagem auferida debaixo da Lei Maior precedente poderia continuar a percebê-la debaixo da nova, ainda que esta já não consagre a permissibilidade para a criação de novas vantagens do tipo?
Não se pode desprezar essa aparente antinomia e não se pode ignorar que a própria Constituição assegura o direito adquirido. Para que cessem, portanto, de viger os direitos adquiridos sob o manto da Constituição anterior, é necessário ou que a própria Lei Fundamental expressamente os faça cessar, ou então que suprima todo o instituto no seio do qual o direito adquirido se embutia.
Há que se considerar ainda o caso da Emenda Constitucional, a qual cabe, sem dúvida, pela força que está revestida de norma constitucional, cabe cassar direitos adquiridos. Não basta apenas que uma emenda se limite a suprimir o dispositivo constitucional sobre o qual se calcava o portador do direito adquirido. É da própria essência desse o continuar a produzir efeitos, mesmo depois da revogação da norma sob a qual foi praticado.
A irretroatividade na Constituição
A constituição não consagra o princípio da irretroatividade, nem de forma implícita, nem de forma explícita. Esse é o método escolhido pelo legislador para a proteção de situações pretéritas. Contudo, a lei nova, embora produtora de efeitos imediatos, pode em determinadas hipóteses retroagir no passado sem quebra de segurança para o indivíduo, que é a razão principal de ser da irretroatividade. Tal fato corre de todas as vezes que a lei impuser ônus ou cominar penas para comportamentos que antes eram livres, ou mesmo ainda aligeirar estas penas no caso já previstas, isto faz com que as leis se tornem, ou por disposição constitucional ou por estatuição da lei ordinária, retroativas.
A irretroatividade e o Direito Adquirido
Chega-se aqui, após várias explanações e esclarecimentos doutrinários e jurisprudenciais ao ponto-chave do assunto deste estudo. Até mesmo os grandes autores vacilam quando vão tratar deste tema que é bastante controverso e complexo.
Tem-se a retroatividade quando a lei volta ao passado para disciplinar atos que a seu tempo não eram regulados pelo direito ou para regulá-los diversamente. O direito adquirido é coisa bem diversa, porque se protege o passado e não o futuro. O direito adquirido consiste na faculdade de continuar a extraírem-se efeitos de um ato contrário aos previstos pela lei atualmente em vigor, ou seja, continuar-se a gozar dos defeitos de uma lei preteria mesmo depois de ter ela sido revogada.
Portanto o direito adquirido envolve sempre uma dimensão prospectiva, voltada para o futuro. Se se trata de ato já praticado no passado, tendo aí produzido todos os seus efeitos, é ato na verdade consumado, que não coloca nenhum problema de direito adquirido. Este envolve muito mais uma questão de permanência da lei no tempo, projetando-se, destarte, para além da sua cessação de vigência, do que um problema de retroatividade. O que o direito adquirido infringe é o princípio da imediata entrada da lei em vigor. É normal que a lei passe a produzir efeitos a partir de sua publicação; o caráter de direito adquirido, o imuniza contra uma lei nova, afastando-a, portanto.
A conceituação de direito adquirido é nuclear, porque ela é que vai nos permitir identificar quais estas situações protegidas contra a lei nova. Pode se identificar esse conceito e esses requisitos na ação direta de inconstitucionalidade nº 493 e no recurso extraordinário nº 140499-0.
Conclusão
Este artigo vem comprovar que a discussão sobre direito adquirido é bastante difícil e desafiadora, principalmente quando se compara com o princípio da irretroatividade das leis, isto porque coloca em conflitos dois princípios de grande amplitude dentro do sistema jurídico. De um lado coloca-se a segurança do cidadão sobre tudo aquilo que adquiriu em um tempo em que a própria lei vigente lhe facultava um benefício. De outro, não se pode ignorar a força da própria lei para regular todas as situações que constituem objeto de mutação.
O verdadeiro problema desta questão está em se saber quando é que fatos praticados no passado podem continuar a produzir efeitos no futuro, já que a nova lei não autoriza. Isto pode ocorrer tanto no direito privado quando convencionado pelas partes como no direito público, mesmo com a observância do requisito previsto na Lei de Introdução ao Código Civil. Toda a vez que a lei demandar o direito adquirido deve ser aceito, assim como por meio da interpretação, não da literalidade da norma, mas de sua racionalidade e finalidade.
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Procurador Federal com exercício na Procuradoria Regional da 1ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BORGES, Edilson Barbugiani. Dos efeitos retroativos da Constituiçâo e o direito adquirido Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 set 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41004/dos-efeitos-retroativos-da-constituicao-e-o-direito-adquirido. Acesso em: 23 dez 2024.
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