RESUMO: Nem sempre a sentença transitada em julgado guarda compatibilidade com a Constituição Federal. Há situações em que o comando sentencial fere princípios constitucionais de alta envergadura, sendo, a despeito disso, inalterável por já ter se verificada a coisa julgada. O doutrinador português Paulo Otero, em laborioso trabalho, cuidou do tema e traçou classificação das decisões que podem ser tidas por inconstitucionais, o que se abordará no presente trabalho, com intuito de fomentar a ideia de superioridade constitucional inclusive no caso de sentença transitada em julgado.
PALAVRAS-CHAVE: coisa julgada – inconstitucionalidade – classificação – Paulo Otero.
INTRODUÇÃO: Decisões que ferem a Constituição
Assente é que as sentenças nada mais são do que atos jurídicos, emanados do Poder Público, com o plus, em relação aos demais Poderes do Estado, de que suas decisões transitam em julgado. Todavia, como atos jurídicos que são, não podem se afastar da incidência da Constituição da República, de maneira que, embora o juiz seja livre no julgamento, cabendo julgar de acordo a sua consciência e os elementos probatórios dos autos, não pode o mesmo em seus pronunciamentos ir de encontro com os preceitos da Lei Maior.
Todavia, casos há em que decisões acobertam verdadeiras aberrações jurídicas, seja por menosprezar, escancaradamente, um princípio constitucional, seja porque se mostra injusta, no sentido de que não reflete a realidade da situação fática, seja porque, enfim, foi embasada em lei que é reconhecida inconstitucional pela Corte Superior.
Em laborioso trabalho sobre o tema, o jurista lusitano Paulo Manuel Cunha da Costa Otero (1993), esclarece que da mesma forma que sucede com os outros órgãos do poder público, também os tribunais podem desenvolver uma atividade geradora de situações patológicas, proferindo decisões que não executem a lei, desrespeitem os direitos individuais ou cujo conteúdo vá ao ponto de violar a Constituição. Nestes casos, quando tais decisões se mostram, pela sistemática processual, imune a ataques, está-se diante da chamada coisa julgada inconstitucional - aquele provimento judicial que, a despeito de transitada em julgado, não se coaduna com a Constituição Federal. É como asseverou o Ministro Eduardo Ribeiro, como relator do REsp 7.556/RO, 3a T. do STJ, defendendo que “a coisa julgada desconforme a Constituição padece do vício da inconstitucionalidade que, nos mais diversos ordenamentos jurídicos, lhe impõe a nulidade” (RSTJ 5/439).
Nesse diapasão, é unânime o entendimento no sentido de que a função jurisdicional também deve obedecer ao princípio da constitucionalidade e os Juízes e Tribunais devem proferir suas decisões com embasamento em dispositivos que sejam consentâneos com a Constituição, sob pena de ferirem o princípio de sua supremacia ao preterirem quaisquer dos princípios (explícitos ou implícitos) que o Constituinte consagrou.
Carlos Valder do Nascimento (2002), autor pátrio que segue a esteira de entendimento de Paulo Otero, reafirmando a necessidade de se verificar compatibilidade entre os atos judiciais e a Constituição, sob pena de inconstitucionalidade leciona que
pensar que a decisão jurisdicional, coberta pelo manto da irreversibilidade, faz-se ato jurisdicional intocável é relegar a regra geral, segundo a qual todos os atos estatais são passíveis de desconstituição. Não há hierarquia entre os atos emanados dos Poderes da República, pois, todos eles são decorrentes do exercício das funções desenvolvidas pelos agentes políticos em nome do Estado. Tanto os atos jurisdicionais quanto os legislativos e administrativos têm o mesmo peso, em face do princípio constitucional de que os Poderes da República (Judiciário, Legislativo e Executivo) são 'independentes e harmônicos entre si'. De sorte que a submissão dos atos praticados pelo Legislativo e Executivo ao crivo da Constituição não afasta o exame daqueles de responsabilidade do Judiciário, que atentem contra as normas dela emanadas. (NASCIMENTO, 2002, p. 08)
E continua:
se a sentença não está em consonância com o texto constitucional, inegavelmente está ferindo a norma maior, de sorte que esta incompatibilidade de adequação aos ditames do ordenamento magno é que leva irremediavelmente ao patamar da inconstitucionalidade (NASCIMENTO, 2002, p. 09-10).
No escólio do Ministro José Delgado (2001), são inconstitucionais, além daquelas que foram proferidas com base em lei tida por inconstitucional pelo STF, as sentenças nas quais se verifica que houve ferimento direto às disposições constitucionais, o que se afere nas situações concretas, caso a caso, verbis:
não posso conceber o reconhecimento de força absoluta da coisa julgada quando ela atenta contra a moralidade, contra a legalidade, contra os princípios maiores da Constituição Federal e contra a realidade imposta pela natureza. Não posso aceitar, em sã consciência, que, em nome da segurança jurídica, a sentença viole a Constituição Federal, seja veículo de injustiça, desmorone ilegalmente patrimônios, obrigue o Estado a pagar indenizações indevidas, finalmente desconheça que o branco é branco e que a vida não pode ser considerada morte, nem vice-versa. (DELGADO, 2001, P. 24, realces nossos)
Nesta esteira, cita casos práticos de decisões que se mostram como autêntica coisa julgada inconstitucional e, por isso, a despeito da imutabilidade que se lhe pinça o direito processual, não pode mostrar-se intocável, tais como aquelas sentenças:
- expedidas sem que o demandado tenha sito citado com as garantias exigidas pela lei processual;
- baseadas em fatos falsos depositados durante o curso da lide;
- ofensivas à soberania estatal;
- violadoras dos princípios guardadores da dignidade da pessoa humana;
- provocadoras de anulação de valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
- que obriguem alguém a fazer ou deixar de fazer algo, contrário à lei;
- que impeçam a liberdade de atuação de cultos religiosos;
- que não permitam a liberdade na atividade intelectual, artística, científica e de comunicação;
- que consagrem a violação de direito à intimidade, vida, honra e imagem.
Aludindo, casuisticamente, a situações que poderiam resvalar em sentenças inconstitucionais, cita Dinamarco (2002) caso ocorrido no Estado de São Paulo, em que a Fazenda Pública foi condenada (com trânsito em julgado há mais de três anos) a pagar a indenização decorrente da desapropriação para o pseudoproprietário de um imóvel que, em verdade, pertencia ao próprio Estado. As condenações à indenização, neste caso e noutras situações, iriam de encontro aos princípios constitucionais e, por isso, tais decisões estariam inquinadas de invalidade e, assim, nunca teriam força de coisa julgada podendo, a qualquer tempo, ser desconstituídas porque “praticam agressão contra o regime democrático no seu âmago mais consistente, que é a garantia da moralidade, da legalidade, do respeito à Constituição e da entrega da Justiça” (DELGADO, 2001, p. 24).
Em suma, sempre que uma decisão judicial transitada em julgado conflitar com o texto constitucional (seja conflito direto ou por meio de reconhecimento de lei inconstitucional pelo STF), está-se diante da chamada coisa julgada inconstitucional, nomenclatura que a despeito de já consagrada, é criticada por alguns doutrinadores, inclusive Barbosa Moreira, para quem o que é incompatível com a constituição não é a coisa julgada em si, mas a sentença, já que é o conteúdo desta que se mostrará destoante com a Constituição.
2. CLASSIFICAÇÃO DE PAULO OTERO
2.1 Sentenças em desconformidade direta com os princípios constitucionais
Todos que se predispõem a escrever sobre a relativização da coisa julgada inconstitucional vai abeberar-se na obra do escritor lusitano Paulo Manuel da Cunha Costa Otero (1993), que em obra ímpar tratou do tema de forma magistral. Em seus escritos, sustentando a necessidade de flexibilizar o dogma da coisa julgada, já que os tribunais, assim como outros órgãos do poder público, podem desenvolver atividades geradoras de situações patológicas cujo conteúdo vá ao ponto de violar a Constituição, apresenta classificação das decisões judiciais inconstitucionais que tornou clássica, passando a ser adotada pela doutrina pátria e alienígena.
Nesse sentido, apresenta como primeira sentença propensa a acobertar coisa julgada inconstitucional aquela que fere de forma direta e explícita um dispositivo ou um princípio constitucional. Ou seja: a sentença judicial cujo conteúdo viola direta e imediatamente um preceito ou um princípio constitucional. São aquelas decisões das quais emana um comando que, sem se respaldar em outro dispositivo legal que poderia vir a ser inconstitucional, não encontra amparo no ordenamento constitucional, ferindo de forma imediata o texto da Lei Maior. Tratando de tal assunto, e aduzindo que apenas com o método indutivo pode-se averiguar estes casos, já que só o casuísmo processual pode revelar situações deste tipo, o sempre referido Dinamarco (2002), esclarece e exemplifica tais tipos de sentenças, verbis:
Imagine-se uma sentença que declarasse o recesso de algum Estado federado brasileiro, dispensando-o de prosseguir integrado na República Federativa do Brasil. Um dispositivo como esse chocar-se-ia com um dos postulados mais firmes da Constituição Federal, que é o da indissolubilidade da Federação. Sequer a mais elevada das decisões judiciárias, proferida que fosse pelo órgão máximo do Poder Judiciário, seria suficiente para superar a barreira política representada pelo art. 1o da Constituição. Imagine-se também uma sentença que condenasse uma pessoa a dar a outrem, em cumprimento de cláusula contratual, determinado peso de sua própria carne, em conseqüência de uma dívida não honrada; ou que condenasse uma mulher a proporcionar préstimos de prostituta ao autor, em cumprimento ao disposto por ambos em cláusula contratual. Sentenças como essas esbarrariam na barreira irremovível que é o zelo pela integridade física e pela dignidade humana, valores absolutos que a Constituição Federal cultiva (art. 1o, inc. III e art. 5o). Pensar ainda na condenação do devedor à prisão por dívida, fora dos casos constitucionalmente ressalvados (art. 5o, inc. LXVII). (DINAMARCO, 2002, p.14)
Decisões deste jaez compõem o primeiro tipo de sentenças que poderiam acobertar uma coisa julgada inconstitucional, talvez a mais gritante, já que diretamente fere dispositivo constitucional, o que leva alguns autores a entender que na verdade a mesma nunca possui eficácia substancial, já que só aparentemente elas produzem os efeitos substanciais programados. Na realidade “não os produzem porque eles são repelidos por razões superiores, de ordem constitucional” (DINAMARCO, 2002, p. 14).
2.2 Decisões proferidas com base em lei declarada inconstitucional pelo STF
Outro caso de coisa julgada inconstitucional apresentado por Otero (1993), o mais frequente, diz respeito àquelas decisões proferidas por lei tida posteriormente como inconstitucional pela Corte Suprema. É sabido que no Brasil o STF tem a prerrogativa de dizer o que é ou não constitucional, exercendo de forma exclusiva o controle concentrado de constitucionalidade e, uma vez reconhecida uma norma como inconstitucional, sua decisão tem o condão de extirpar do ordenamento jurídico aquela lei ou ato normativo, a fim de que prevaleça o princípio da constitucionalidade das leis.
Tal situação ocorre porque o Brasil adotou sistema jurídico no qual se elege Órgão especialmente criado para dizer o direito válido e condizente com a Ordem Constitucional, estipulando a própria Constituição nos termos do artigo 102 “caput”, que compete precipuamente ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição. As decisões do STF sobre constitucionalidade, em sede de controle concentrado ou difuso, correspondem à correta interpretação do direito, a ser seguida por todos; o direito material é o que resulta da exegese do Pretório Excelso, a correta interpretação da norma vigente para o país, nenhuma outra sendo a melhor. Assim, em havendo reconhecimento de inconstitucionalidade de uma lei pelo Pretório Excelso, a mesma é expungida do ordenamento jurídico, com efeitos ex tunc (afora a situação prevista no artigo 27 da Lei 9.868/99 já referida); é dizer: retira-se tal dispositivo do ordenamento jurídico como se ele nunca o tivesse integrado.
Todavia, pode ocorrer que quando o STF seja provocado a manifestar sobre a constitucionalidade de determinada lei ou ato normativo, diversos juízes ou tribunais, a despeito da faculdade do exercício do controle de constitucionalidade difuso, já tenham aplicado tal lei como fundamento de sua sentença (ou acórdão). Sobrevindo decisão do Supremo retirando do ordenamento aquele dispositivo, com efeitos ex tunc (como é a regra), por óbvio que aquela decisão perde seu respaldo legal, seu embasamento que lhe dava sustentação, vindo a ruir juntamente com a Lei que a fundamentou.
Está-se, assim, diante de mais um caso de coisa julgada - se já transitada em julgado tal sentença - eivada de inconstitucionalidade, já que se a própria lei é eliminada com efeitos retroativos, a fortiori, também as decisões judiciais devem ceder espaço ao princípio da constitucionalidade e se conformar com a Carta Maior e com a interpretação que o STF lhe dar, não subsistindo após o reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei que a fundamentou.
Isso porque
o princípio da constitucionalidade determina que a validade de quaisquer atos do poder público dependa sempre da sua conformidade com a Constituição. Por isso mesmo, as decisões judiciais desconformes com a Constituição são inválidas; o caso julgado daí resultante é, também ele, consequentemente, inválido, encontrando-se ferido de inconstitucionalidade. (OTERO, 1993, p. 61)
Assim, a sentença proferida com base em lei que é objeto de ação declaratória de inconstitucionalidade julgada procedente perde seu fundamento, já que tal lei passa a ser juridicamente inexistente, contaminando da eiva de inconstitucionalidade a coisa julgada nela embasada, merecendo esta ser desconsiderada, mesmo porque ausente seu fundamento jurídico, como defendem Wambier e Medina (2003).
Reconhecimento expresso de tal tipologia de coisa julgada inconstitucional é o que consta do artigo 475-L, § 1o do CPC, com a redação dada pela Lei 11.232/06.
2.3 Decisões que afastaram leis consideradas inconstitucionais, posteriormente reconhecidas constitucionais pelo STF
Casos existem, ainda, em que juízes e tribunais afastam a aplicação de determinada lei, julgando-a inconstitucional e, posteriormente, o Supremo Tribunal Federal reconhece que a mesma é compatível com a Lei Maior, sendo possível sua aplicação. Neste ponto, aplica-se a mesma idéia de que no sistema judiciário pátrio, cabe ao Poder Judiciário, em especial ao STF, dizer a última palavra sobre a validade de leis e atos jurídicos frente ao Texto Magno, ou seja, dizer o que é a própria Constituição, e em sendo assim essa última decisão deve ser prestigiada e aplicada para todos os membros da coletividade, mesmo que a decisão definitiva da Corte Suprema esteja em confronto com outras decisões judiciais transitadas em julgado, em especial aquelas proferidas por cortes inferiores.
Neste diapasão, são também inconstitucionais, mesmo de forma oblíqua, sentenças que recusam a aplicação de uma norma sob o fundamento de que é inconstitucional, sem que o seja. É dizer: aquelas sentenças baseadas na não-incidência de determinada norma, porque considerada inconstitucional incidenter tantum, vindo posteriormente a ser proferida decisão pelo STF de procedência de ação declaratória de constitucionalidade, ou seja, considerando o dispositivo legal que não foi aplicado como constitucional. Nestes casos, houve, também, ofensa à Constituição, mesmo de forma indireta, pois se rejeitou aplicação e possível reconhecimento de direito que se coadunava com os ditames da Constituição da República, cabendo rever tal decisão para conformá-la com o que o que foi decidido pelo STF (órgão incumbido de dizer o que a Constituição Federal diz e de conformar o resto do ordenamento jurídico à sua dicção), que foi pela constitucionalidade do dispositivo.
Na classificação do doutrinador português, tais decisões são mais uma forma de manifestação de coisa julgada inconstitucional, que não merecem revestimento de imutabilidade, já que, como pondera Teresa Arruda Alvim Wambier (2003), “admitir que sobreviva decisão que rejeitou interpretação hoje considerada, pacificamente, pelo Judiciário, é prestigiar o “acaso” (WAMBIER e MEDINA, 2003, p. 60), em detrimento do princípio da supremacia constitucional e da efetividade das normas constitucionais.
3. Considerações finais: natureza e validade da decisão fundada em lei considerada inconstitucional
Incontroverso é que nenhum ato que contrarie a Constituição se sustenta por seus próprios fundamentos, não vale de per si e, portanto, fadada de mostra a quedar-se, não podendo subsistir indefinidamente. Todavia, não se pode ignorar que atos judiciais nestas condições são amiúde proferidos, razão pela qual debruça a doutrina na indagação da natureza jurídica de tal decisão, perquirindo se se trata de sentença inexistente, nula ou anulável, havendo marcante divergência entre as várias posições doutrinárias, em que pese seja unânime, mesmo entre aqueles que se posicionam contrariamente à relativização da coisa julgada, o entendimento de que detectando-se o vício de inconstitucionalidade, o efeito de tal decisão não pode protrair-se no tempo, sob pena de se transformar em instituto mais elevado e importante que a própria Constituição Federal.
Isso porque, ferindo diretamente um preceito ou princípio constitucional, tal decisão não se mostrará consoante com a ordem jurídica do sistema constitucionalista, posto que não encontrará fundamento na Norma Superior, que precisa lhe dá supedâneo, nos termos da concepção kelseniana do escalonamento do ordenamento jurídico. Por outro lado, se baseada em lei considerada posteriormente considerada inconstitucional, extirpada tal lei do ordenamento pelo Órgão Superior, a mesma não terá validade alguma, não se subsistindo, nem os atos praticados com fundamentação na mesma. Se a fundamentação não mais existe, os efeitos de eventuais atos que a tiveram por embasamento, ipso facto, perderão validade.
Partindo de tal princípio, parte da doutrina adota posicionamento contundente no sentido de que a sentença proferida com fundamente na indigitada lei - tida por inconstitucional - tal como o dispositivo legal é como se nunca existisse no ordenamento jurídico, uma vez que não tem força para impor-se sobre as normas ou princípios de ordem constitucional. Com tal entendimento se manifestam Wambier e Medina (2003), adotando a nomenclatura de Dinamarco para tratar tais sentenças como juridicamente inexistentes.
Para os citados autores, sentenças que ofendem diretamente princípios constitucionais são sentenças juridicamente inexistentes porque julgam o mérito sem existência das condições da ação, mas especificamente sem possibilidade jurídica do pedido. O autor, in casu, “instaurou o processo por meio de mero exercício de direito de petição e não de direito de ação, já que não havia possibilidade jurídica do pedido (WAMBIER e MEDINA, 2003, p. 39). Da mesma forma, acontece com as sentenças proferidas com base em lei tida, posteriormente, como inconstitucional pelo STF. A situação neste caso é que uma vez reconhecida a inconstitucionalidade, como já referido, a lei é extirpada do ordenamento com efeitos retroativos, via de regra. A sentença contendo o enunciado de efeitos juridicamente impossíveis é, em verdade, uma “sentença desprovida de efeitos substanciais, porque os efeitos impossíveis não se produzem nunca e, consequentemente, não existem na realidade do direito e na experiência da vida dos litigantes” (DINAMARCO, 2001, p.15).
Com isso, a lei expurgada do sistema jurídico não existe. É norma também juridicamente inexistente; é pura e simplesmente um fato jurídico, cujos efeitos às vezes devem ser mantidos em nome de outras normas jurídicas, o que, todavia, não invalida a regra de possuir o reconhecimento de inconstitucionalidade efeitos retroativos de onde se extrai a consequência de que todos os efeitos produzidos pela norma atingida são desconstituídos, já que a lei inconstitucional é lei natimorta, não cabendo reconhecer aos atos constituídos com base nela o suporte jurídico de existência. Nesse sentido, inclusive, tem decidido o STJ quando em recente julgado manifestou-se que lei inconstitucional é, de fato, lei que não possui qualquer momento de validade, é lei natimorta e asseverou que atos administrativos praticados com base nela devem ser desfeitos, de ofício pela autoridade competente, inibida qualquer alegação de direito adquirido[1].
Todavia, em que pese esta corrente doutrinária, encabeçada por Wambier e Medina (2003), da qual, de certa forma se filia o notável processualista Cândido Rangel Dinamarco (2001), no sentido de reconhecer a sentença que afronta a Constituição como inexistente (fala-se em sentença juridicamente inexistente), outros doutrinadores manifestam-se pela improcedência de tal qualificação, tendo em vista que se de fato é tal lei inexistente não há falar-se sequer em trânsito em julgado de decisões nela pautadas: os efeitos não existem de maneira que despiciendos quaisquer meios processuais para seu ataque.
Insurgindo contra tal posicionamento, Araken de Assis (2004) defende a necessidade de analisar a sentença nos planos da existência, validade e eficácia (planos da ordem jurídica de Pontes de Miranda (1955, p. 20, apud ASSIS, 2004, p. 40) sob os quais a decisão judicial, como qualquer outro ato jurídico, deve ser analisada), a fim de averiguar se se trata, de fato, de ato inexistente ou de inválido ou ineficaz.
Partindo de tal pressuposto, e considerando que o ato inexistente, na lição de Clóvis Beviláqua, é aquele ato que não tinha sequer aparência de um ato jurídico de seu gênero, sendo incapaz de gerar efeitos, não se sustenta o enquadramento da sentença inconstitucional em tal categoria, tendo em vista que a mesma, a despeito de tal pecha, produz de certa forma efeitos que não podem ser ignorados. Caminha o insígne doutrinador para indicar a coisa julgada inconstitucional como sendo sentença nula, embora rechaçando peremptoriamente a tese de José da Silva Pacheco (2001) segundo a qual “as sentenças nulas 'ipso jure' embora existentes, não valem, não tem eficácia, logo não produzem coisa julgada”. Refuta Araken de Assis (2004) tal concepção, advertindo que
é erro tão comum quanto lastimável entender que o nulo não gera efeitos. Existir, valer e ser eficaz são conceitos tão inconfundíveis que o fato jurídico pode ser, valer e não ser eficaz, ou ser, não valer e ser eficaz... o que se não pode dar é valer e ser eficaz, ou valer, ou ser eficaz, sem ser, porque não há validade, ou eficácia do que não é. Daí por que o ato processual nulo produz efeitos, se enquanto o juiz não o desconstituir, ex officio, ou a requerimento da parte. (ASSIS, 2004, p. 47)
Conclui o jurista do Rio Grande do Sul, seguindo a parte majoritária da doutrina pátria que o ato jurídico nulo (no que se insere a sentença inconstitucional), porque eficaz, gera coisa julgada material, que não passa de uma de suas eficácias, a teor do artigo 467 do CPC. De fato, acompanha tal autor boa parte da doutrina, como Alexandre Freitas Câmara (2004) para quem
a sentença, mesmo a inconstitucional é alcançada pela autoridade da coisa julgada. Preclusa a faculdade de interpor recurso contra tal sentença, terá a mesma alcançado a auctoritas rei iudicate. E, sendo de mérito a sentença, alcançadas serão a coisa julgada formal e material (CAMARA, 2004, p. 11)
O sempre referido professor Paulo Otero (1993) não discrepa de tal entendimento:
Os atos jurisdicionais, isto é, que sejam praticados por um juiz no exercício de suas funções, obedecendo aos requisitos formais e processuais mínimos, que viole, direitos absolutos ou os demais direitos fundamentais e a essência dos princípios integrantes da Constituição material não são atos inexistentes, meras aparências, antes se assumem como verdadeiras decisões jurídicas inconstitucionais
[...] todos os atos do poder público, incluindo os atos jurisdicionais, são inválidos se desconformes com a Constituição já que o princípio da constitucionalidade determina que a validade de quaisquer atos do poder público dependa sempre da sua conformidade com a Constituição. Por isso mesmo, as decisões judiciais desconformes com a Constituição são inválidas. (OTERO 1993 apud NASCIMENTO, 2002, p. 10, realces nossos)
Situando o vício da sentença inconstitucional ainda no plano da validade, e seguindo a trilha de Paulo Otero, manifestam-se Theodoro Júnior e Faria (2003), quando asseveram que
uma decisão judicial que viole diretamente a Constituição, ao contrário do que sustentam alguns, não é inexistente. Não há na hipótese de inconstitucionalidade mera aparência de ato. Sendo desconforme à Constituição o ato existe se reúne condições mínimas de identificabilidade das características de um ato judicial, o que significa dizer, que seja prolatado por um juiz investido de jurisdição, observando aos requisitos formais e processuais mínimos. Não lhe faltando elementos materiais para existir como sentença, o ato judicial existe. Mas, contrapondo-se a exigência absoluta da ordem constitucional, falta-lhe condição para valer, isto é, falta-lhe aptidão ou idoneidade para gerar os efeitos para os quais foi praticado. Assim, embora existente, a exemplo do que se dá com a lei inconstitucional, o ato judicial é nulo, estando sujeito em regra geral, aos princípios aplicáveis a quaisquer outros atos jurídicos inconstitucionais. (THEODORO JUNIOR e FARIA, 2002, p. 18).
Para esta corrente doutrinária, havendo uma sentença, já acobertada com o manto da coisa julgada, consolidada com base em uma lei que no momento do trânsito em julgado da decisão era vigente, esta decisão encontra-se em plena harmonia com o que prevê o artigo 458 do Código de Processo Civil, não podendo negar que se trata de ato jurídico existente.
Todavia, se posteriormente o Supremo Tribunal Federal em sede de ação direta de inconstitucionalidade declara inconstitucional a lei na qual se fundou a sentença, esta, outrora válida, deixa de preencher os requisitos do artigo 458 do CPC, pois como já apresentado, em regra os efeitos da declaração de inconstitucionalidade são ex tunc, trazendo à tona a nulidade absoluta da sentença, conforme pensam Theodoro Júnior (2002) e Amaral Santos (1998). Aquele, no já citado artigo em co-autoria com Faria (2002) tem defendido que a coisa julgada inconstitucional é nula e, como tal, não se sujeita a prazos prescricionais ou decadenciais.
Concluem, finalmente, que:
Dúvida não mais pode subsistir que a coisa julgada inconstitucional não se convalida, sendo nula e, portanto, o seu reconhecimento independe de ação rescisória e pode se verificar a qualquer tempo e em qualquer processo, inclusive na ação incidental de embargos à execução. (THEODORO JUNIOR e FARIA, 2002, p. 155)
Rodrigo Murad do Prado (2005), nesta esteira de entendimento e amalgamando a tese majoritária da doutrina pátria, define que a coisa julgada, oriunda de sentença fundamentada em lei declarada inconstitucional ou que fere direta e imediatamente a Constituição, é nula de pleno direito. Jesualdo de Almeida Júnior (2006), todavia, entende que frente à divergência doutrinária, a casuística é que dirá se a coisa julgada inconstitucional é nula, anulável, ou mesmo passível de aplicação apenas parcial, arrematando que o que não se pode admitir é que esse ato judicial inconstitucional não seja expurgado do sistema jurídico - embora formada, poderá ser suscetível de desconsideração provocada por instrumentos processuais adequados, já que não é superior ao primado da constitucionalidade dos atos do Poder Público.
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[1] STJ, 5a T. EDROMS 10527-SC, rel. Ministro Edson Vidigal, j. 03.02.2000, DJU 08.03.2000, p. 136.
Procurador Federal. Especialista em Direito Processual Civil.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Jeffersson Ferreira. O que é a coisa julgada inconstitucional? Uma análise do instituto e de sua natureza jurídica à luz da classificação doutrinária de Paulo Otero Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 set 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41005/o-que-e-a-coisa-julgada-inconstitucional-uma-analise-do-instituto-e-de-sua-natureza-juridica-a-luz-da-classificacao-doutrinaria-de-paulo-otero. Acesso em: 23 dez 2024.
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