Coautor: Francisco Sannini Neto, Delegado de Polícia, Mestrando em Direitos Difusos e Coletivos, Pós – graduado com especialização em Direito Público e Professor de Direito Penal e Processo Penal na graduação e na pós – graduação da Unisal.
No dia 20 de junho de 2013, foi publicada a Lei Federal n°12.830/13, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia. Destaque-se, de pronto, que o objetivo deste diploma normativo foi regulamentar – ou melhor, explicitar – algumas das atribuições da Autoridade de Polícia Judiciária, conferindo-lhe uma maior autonomia e independência na condução do inquérito policial.
Contudo, diferentemente do que muitos pensam e argumentam, a inovação legislativa não teve por foco a carreira de Delegado de Polícia. Na verdade, a intenção do legislador foi reforçar a própria investigação criminal e, com isso, fortalecer a Justiça, diminuindo a sensação de impunidade, o que, sem dúvida, beneficia toda a sociedade.
A partir da Constituição da República de 1988, muitas instituições ligadas à persecução penal ganharam força, especialmente o Poder Judiciário e o Ministério Público, que, por meio das prerrogativas estabelecidas ao longo do texto constitucional, passaram atuar com ampla autonomia e independência funcional. Ocorre que, ao que nos parece, o legislador se esqueceu da porta de entrada do sistema criminal, vale dizer, a Delegacia de Polícia. O Delegado de Polícia é o primeiro agente estatal a dar um contorno jurídico aos fatos aparentemente criminais do cotidiano social, fazendo justiça quase que de maneira imediata, ora decretando a prisão em flagrante de criminosos, ora restituindo o status libertatis de pessoas detidas de maneira ilegal ou arbitrária.
Demais disso, tendo em vista que a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia é responsável por subsidiar quase 100% das ações penais, tornou-se imprescindível a sua valorização. Num momento em que a criminalidade está cada vez mais organizada, cabe ao Estado fortalecer suas instituições. Quando falamos de segurança pública, a primeira coisa que se destaca é o recrudescimento das leis penais, como se o Direito Penal fosse a solução para todos os nossos problemas. Por outro lado, pouco se fala no fortalecimento das polícias judiciárias, que desempenham papel extremamente relevante no correto exercício do direito de punir pertencente ao Estado. Infelizmente, nossos “especialistas” (sic) em segurança pública, bem como nossos governantes e legisladores, não se atentaram para o fato de que mais importante que a severidade da pena, é a certeza da pena, o que só é possível através de uma escorreita investigação criminal.
Foi dentro desse espírito, ainda que de maneira muito acanhada, que surgiu, por exemplo, a Lei 12.830/2013, reforçando o inquérito policial que constitui verdadeira garantia ao indivíduo. Nesse sentido, são incisivas as palavras utilizadas pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, ao apreciar o tema em questão:
"Assim, o inquérito policial, ainda que visto como procedimento administrativo pré-processual, é um instrumento prévio e de triagem contra acusações levianas e precipitadas, uma verdadeira garantia do cidadão e da sociedade, tendo dentro dele uma significativa parcela de procedimento jurídico, vez que poderá ensejar prisão e outras providências cautelares que afetam os direitos individuais. Um inquérito policial bem elaborado presta-se tanto à justa causa para a subsequente ação penal, quanto à absolvição do inocente".
Feita essa breve introdução, consignamos que o objetivo desse artigo é discutir a abrangência do poder requisitório conferido ao Delegado de Polícia pelo nosso ordenamento jurídico, haja vista que, apesar da clareza de diversos diplomas legais, temos constatado que, na prática, algumas operadoras de telefone celular vêm se recusando a fornecer os dados cadastrais de seus usuários, o que vai contra a intenção do legislador.
Diante desse quadro, no intuito de evitar contratempos, dissabores e, especialmente, atraso e obstrução da devida investigação criminal com vistas ao preponderante interesse público, reiteramos que tal requisição encontra total respaldo na legislação atualmente em vigor que atribui clara e induvidosamente autonomia aos Delegados de Polícia, no curso de Investigações Criminais, para a obtenção direta de informações cadastrais existentes em bancos de dados, arquivos públicos e privados ou outras fontes.
É incontestável a atribuição constitucional das Polícias Judiciárias, chefiadas por Delegados de Polícia de Carreira, para a investigação criminal, nos estritos termos do artigo 144, I e IV e §§ 1º. e 4º., CF. No âmbito estadual a Constituição do Estado de São Paulo, em seu artigo 140, § 3º., reconhece a “independência funcional” e a “livre convicção do Delegado nos atos de polícia judiciária” (o que é ainda reforçado em âmbito estadual no bojo da Lei Complementar Estadual n. 1.152/11 com a nova redação dada pela Lei Complementar Estadual 1.249/14, artigo1o., §§ 1º. e 2º.).
Face a tais ditames constitucionais é mister concluir que o Delegado de Polícia no exercício de suas legítimas funções deve ser dotado dos poderes necessários para o cumprimento de sua atividade – fim, tal qual preconiza a chamada “Teoria dos Poderes Implícitos” de origem anglo – saxônica.
No entanto, não é apenas implicitamente que tais poderes requisitórios são atribuíveis ao Delegado de Polícia. Nos termos do artigo 4º., CPP, cabe à Polícia Judiciária, dirigida pelas “Autoridades Policiais” (Delegados de Polícia) em suas respectivas circunscrições, a apuração das infrações penais e sua autoria, devendo, obviamente, para tanto, serem dotadas dos instrumentos necessários. Nesse diapasão, o artigo 6º., inciso III do mesmo codex determina que cabe à Autoridade Policial “colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias”.
Em reforço a tudo isso, conforme já destacado, foi editada a Lei 12.830/13 que versa sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia, sendo que no seu artigo 2º., esse diploma deixa claro que as funções de Polícia Judiciária e apuração de infrações penais realizadas por Delegado de Polícia são “de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado”. No mesmo artigo, em seu § 2º., resta evidenciado o chamado “Poder Requisitório” do Delegado de Polícia, eis que no exercício de suas legítimas funções lhe é dado, por força da lei, o poder de requisitar quaisquer “informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”. É notório que os dados cadastrais e respectivas documentações constantes de arquivos e bancos de dados de empresas de telecomunicação móvel ou fixa ou mesmo de instituições financeiras, se adequam perfeitamente a essa espécie de informação a ser colhida diretamente pelo Delegado de Polícia na presidência do Inquérito Policial ou de qualquer outra investigação de Polícia Judiciária (v.g. Termo Circunstanciado).
Com todo respeito aos entendimentos em sentido contrário, mas o dispositivo em questão não necessita de grandes esforços interpretativos, tratando-se de uma verdadeira cláusula geral no que se refere ao poder requisitório da Autoridade Policial. Vale destacar que a “requisição”, nesse caso, tem o sentido de determinação, de ordem, não podendo ser desrespeitada pelo seu destinatário. Caso contrário, poderá restar caracterizado o delito de desobediência.
Não é outra a lição de Jeferson Botelho Pereira, senão vejamos:
“O sobredito poder requisitório permite à Autoridade Policial adotar todas as providências que se fizerem necessárias à coleta das provas, para a mais breve e salutar elucidação dos fatos em apuração, podendo assim requisitar a particulares, a agentes públicos, bem como a estabelecimentos públicos ou privados o auxílio necessário à identificação e instrumentalização das provas, a exemplo, da requisição de imagens registradas por circuito interno de gravação próprio e de informações não acobertadas por sigilo legal, materializando-as na investigação policial.”[1]
Não bastasse o já exposto, vem a lume a Lei 12.850/13, a qual em seu artigo 15 estabelece textualmente sem deixar sombra de qualquer dúvida:
“O Delegado de Polícia e o Ministério Público terão acesso, independentemente de autorização judicial, apenas aos dados cadastrais do investigado que informem exclusivamente a qualificação pessoal, a filiação e o endereço mantidos na Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e administradoras de cartão de crédito”.
No artigo 16 da mesma lei as empresas de transporte são obrigadas a manter registro pelo prazo de cinco anos de bancos de dados de reservas e registro de viagens para acesso direto e permanente do Juiz, do Ministério Público ou do Delegado de Polícia. O mesmo prazo é estabelecido para manutenção de informes pelas empresas de telefonia fixa e móvel para fins de acesso direto e independente de ordem judicial pelo Delegado de Polícia e Ministério Público.
Ora, percebe-se, pois, que a Lei 12.850/2013, que, frisamos, é posterior à Lei 12.830/2013, veio com o objetivo de aclarar e nortear o poder geral de requisição previsto no art.2°, §2°, desse último diploma normativo, especificando as hipóteses em que o Delegado de Polícia poderá requisitar informações diretamente às empresas telefônicas, instituições financeiras etc.
Segue ainda pela mesma senda a Lei 9.613/98, com a nova redação dada pela Lei 12.683/12:
“Artigo 17 – B – A Autoridade Policial e o Ministério Público terão acesso, exclusivamente, aos dados cadastrais do investigado que informam qualificação pessoal, filiação e endereço, independentemente de autorização judicial, mantidos pela Justiça Eleitoral, pelas empresas telefônicas, pelas instituições financeiras, pelos provedores de internet e pelas administradoras de cartão de crédito”.
Sobre o tema, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça já proferiu várias decisões no sentido de que o Delegado de Polícia pode requisitar os dados cadastrais constantes das empresas de telefonia ou financeiras, os quais não se confundem com as quebras do sigilo telefônico ou bancário propriamente ditos para os quais existe reserva constitucional de jurisdição. A título de exemplo:
“O teor das comunicações efetuadas pelo telefone e os dados transmitidos por via telefônica são abrangidos pela inviolabilidade do sigilo - artigo 5.º, inciso XII, da Constituição Federal -, sendo indispensável a prévia autorização judicial para a sua quebra, o que não ocorre no que tange aos dados cadastrais, externos ao conteúdo das transmissões telemáticas. Não se constata ilegalidade no proceder policial, que requereu à operadora de telefonia móvel responsável pela Estação Rádio-Base o registro dos telefones que utilizaram o serviço na localidade, em dia e hora da prática do crime. A autoridade policial atuou no exercício do seu mister constitucional, figurando a diligência dentre outras realizadas ao longo de quase 7 (sete) anos de investigação” (HC 247331/RS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª. Turma, DJ 21.08.2014, DJe 03.09.2014).
No mesmo sentido, expondo as posições firmadas pelo STJ e STF:
“Não há ilegalidade na quebra do sigilo de dados cadastrais de linhas telefônicas os quais, conforme o tribunal de origem, foram obtidos por autoridade policial que recebeu de magistrado senha fornecida pela Corregedoria de Polícia Judiciária. Isso porque, conforme entendimentos do STF e do STJ, o disposto no artigo 5º, XII, da CF não impede o acesso aos dados em si, ou seja, o objeto protegido pelo direito à inviolabilidade do sigilo não são os dados em si, mas tão somente a comunicação desses dados. O entendimento do tribunal de origem é que sobre os dados cadastrais de linhas telefônicas inexiste previsão constitucional ou legal de sigilo, já que não fazem parte da intimidade da pessoa, assim como sobre eles não paira o princípio da reserva jurisdicional. Tal entendimento está em consonância com a jurisprudência do STJ” (AgReg no HC 181546/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 5ª. Turma, DJ 11.02.2014, DJe 18.02.2014).
Nem é preciso salientar que essa é a posição mais recente dos tribunais superiores (STF e STJ), conforme demonstrado.
Para não deixar qualquer dúvida a respeito sobre o regramento e entendimento também no âmbito administrativo da agência de controle no caso das empresas de comunicação telefônica móvel e fixa, é interessante ressaltar a manifestação da ANATEL quando indagada sobre a possibilidade de requisição de dados cadastrais de linhas telefônicas diretamente pelo Delegado de Polícia. A resposta oficial da ANATEL foi a seguinte:
“O art. 17 – B da Lei 12.683/12, além do disposto no art. 15 da Lei n. 12.850;13 que trata de investigação do crime organizado, reforçam que as Autoridades Policiais e o Ministério Público terão acesso aos dados cadastrais do investigado independentemente de autorização judicial” (grifo nosso).
À vista do exposto reiteramos, para que não restem dúvidas, que a recusa ou omissão no fornecimento dos dados cadastrais requisitados, em tempo razoável, poderá dar ensejo a instauração de procedimento criminal para responsabilização de quem de direito por crime de “Desobediência” (artigo 330, CP), bem como representação formal perante a ANATEL[2] quanto à conduta administrativa ilícita por parte da pessoa jurídica operadora.
Diante do exposto, concluímos que as recusas no cumprimento das requisições emanadas da Autoridade Policial, nos casos aqui debatidos, são baseadas em argumentos atualmente superados pela legislação em vigor e pela mais atual jurisprudência, ensejando atraso nas investigações e prejuízo ao interesse público. Ademais, há que zelar pelo respeito às prerrogativas constitucionais e legais do Delegado de Polícia na condução das investigações criminais.
Referências
CABETTE, Eduardo Luis Santos. Nova Lei 12.830 – Investigação pelo Delegado de Polícia. Disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/eduardocabette/2013/06/23/nova-lei-12-83013-investigacao-pelo-delegado-de-policia/. Acesso em 16 de setembro de 2014.
PEREIRA, Jeferson Botelho. Lei n.º 12.830/2013: as garantias do delegado de polícia. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3648, 27 jun. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/24795>. Acesso em: 16 set. 2014.
SANNINI NETO, Francisco Sannini. Inquérito Policial e Prisões Provisórias. São Paulo: Ideias e Letras, 2014.
[1] PEREIRA, Jeferson Botelho. Lei n.º 12.830/2013: as garantias do delegado de polícia. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3648, 27 jun. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/24795>. Acesso em: 16 set. 2014.
[2] Isso para os casos que envolverem empresas prestadores do serviço de telefonia móvel ou fixa.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós - graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós - graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
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