Dentre o rol dos direitos e garantias fundamentais, o artigo 5° da Constituição assegura no inciso XXXVI que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
A previsão desses institutos está umbilicalmente ligada à necessidade de resguardar o valor segurança jurídica em face da sucessão de leis no tempo, assegurando estabilidade aos direitos subjetivos e permitindo aos sujeitos de direito conhecer previamente quais as conseqüências de seus atos. A ideia central é que a lei ingresse no ordenamento jurídico produzindo efeitos prospectivos.
A ideia de que o inciso XXXVI do artigo 5ª da Constituição não teria aplicação no que diz respeito às leis de ordem pública ou de direito público não se revela verdadeira. O Supremo Tribunal Federal ao se deparar com a questão proferiu decisão nos termos a seguir transcritos:
(...) LEIS DE ORDEM PÚBLICA - RAZÕES DE ESTADO - MOTIVOS QUE NÃO JUSTIFICAM O DESRESPEITO ESTATAL À CONSTITUIÇÃO - PREVALÊNCIA DA NORMA INSCRITA NO ART. 5º, XXXVI, DA CONSTITUIÇÃO. - A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro. Razões de Estado - que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo - não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição. As normas de ordem pública - que também se sujeitam à cláusula inscrita no art. 5º, XXXVI, da Carta Política (RTJ 143/724) - não podem frustrar a plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e desrespeitando-a em sua autoridade[1].
Ao tratar especificamente da relação entre as normas de ordem pública e o direito adquirido, José Afonso da Silva refuta a afirmação de que não haja direito adquirido quando se trate de normas de direito público, ressalvando, todavia que O que se diz com boa razão é que não corre direito adquirido contra o interesse coletivo, porque aquele é manifestação de interesse particular que não pode prevalecer sobre o interesse geral. A Constituição não faz distinção[2].
Há autores que defendem desnecessária a menção aos três institutos por entenderem que a mera a referência ao direito adquirido seria suficiente, na medida em que este abarcaria as noções de ato jurídico perfeito e coisa julgada.
De todo modo, o artigo 6° da Lei de Introdução ao Código Civil apresenta conceitos para os três institutos.
Ato jurídico perfeito seria aquele já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Direito adquirido diria respeito àqueles que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. Por fim, caracterizaria coisa julgada a decisão judicial de que já não caiba recurso.
A coisa julgada é um fenômeno processual. Majoritariamente, prevalece na doutrina o entendimento de Liebman para quem a coisa julgada é uma qualidade da sentença (há quem afirme ser uma qualidade dos efeitos da sentença) que torna seus efeitos imutáveis e indiscutíveis. Em crítica a esse entendimento, Barbosa Moreira leciona que apenas o comando da sentença (dispositivo) é que se torna imutável.
De todo modo, resta claro que a coisa julgada faz da decisão final uma norma individual e acarreta a intangibilidade das situações jurídicas criadas ou declaradas pela sentença, de forma que a lei posterior não poderá retroagir para alterá-la ou derrogá-la.
A despeito de Celso Bastos entender que na falta de a Constituição da República tecer qualquer diferenciação, a proteção deve abranger tanto coisa julgada formal quanto a material, a razão aparentemente se encontra com José Afonso da Silva que, diversamente, sustenta que apenas a coisa julgada material é protegida pelo inciso XXXVI do artigo 5°, na medida em que o âmbito de proteção abrange apenas o provimento jurisdicional definitivamente outorgado.
O ato jurídico perfeito refere-se à situação consumada, incorporada ao patrimônio jurídico ou à personalidade do respectivo titular pelo fato de o direito ter sido efetivamente exercido (e ter produzido seus efeitos) por atender aos requisitos exigidos pela legislação em vigor à época.
A proteção ofertada pelo direito adquirido consiste no fato de a situação consolidada não poder ser alterada em virtude da exigência de novos requisitos instituídos por lei posterior. Exercido o direito segundo as regras vigente à época da realização do ato, qualquer alteração na legislação posterior não afetará a situação jurídica consolidada. A lei nova não poderá desconstituir a relação jurídica já formada.
Como exemplo, pode-se tomar o instituto do casamento ou o da emancipação. Eventual legislação que modifique os institutos para dificultar a ocorrência não se presta a desconstituir o matrimônio ou a reverter a situação de emancipados daqueles que exerceram o direito por satisfazer os requisitos vigentes na lei anterior.
Já o direito adquirido abarcará as situações em que, malgrado o titular tenha satisfeito todos os requisitos para a formação do direito subjetivo, não chegou a exercitá-lo. Assim, o que é garantido por tal instituto não é propriamente o direito cujos efeitos já se exauriram por completo, mas sim aqueles que se aperfeiçoaram sob a égide de uma lei anterior, por satisfazer todos os requisitos previstos por ela para sua formação, mas que não tiveram sua situação consolidada por não terem sido exercidos.
José Afonso da Silva leciona que Se o direito subjetivo não foi exercido, vindo a lei nova, transforma-se em direito adquirido, porque era direito exercitável e exigível à vontade de seu titular. Incorporou-se no seu patrimônio, para ser exercido quando convier. A lei nova não pode prejudicá-lo, só pelo fato de o titular não o ter exercido antes. Direito subjetivo ‘é a possibilidade de ser exercido, de maneira garantida, aquilo que as normas de direito atribuem a alguém como próprio’. Ora, essa possibilidade de exercício continua no domínio da vontade do titular em face da lei nova. Essa possibilidade de exercício do direito subjetivo foi adquirida no regime da lei velha e persiste garantida em face da lei superveniente[3].
Deve-se observar que essa garantia não atinge a expectativa de direito, que é a situação em que a despeito da possível iminência, não houve a satisfação de todos os requisitos exigidos pela lei como fato gerador do direito pretendido. Modernamente, a melhor técnica legislativa recomenda que nesses casos sejam previstas regras de transição para aqueles que se encontravam próximos de satisfazer os requisitos previstos.
Ao tratar da relação entre direito adquirido e instituto jurídico ou estatuto jurídico, Gilmar Mendes destaca que a teoria do direito adquirido afasta a possibilidade de subsistência de situação jurídica individual em face de uma alteração substancial do regime ou de um estatuto jurídico[4].
Sustenta o referido autor que partindo das ideias de Savigny, para quem as leis concernentes aos institutos jurídicos outorgam aos indivíduos apenas uma qualificação abstrata quanto ao exercício do direito e uma expectativa de direito quanto ao ser ou ao modo de ser do direito, Gabba concluiu que somente existia direito adquirido em razão dos institutos jurídicos, com referência às relações deles decorrentes, jamais, entretanto ao relativamente aos próprios institutos.
Destaca-se que é pacífico o entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido que não há direito adquirido a regime jurídico de um instituto de direito. Quer dizer que, se a lei nova modificar o regime jurídico de determinado instituto de direito (...), essa modificação de aplica de imediato[5].
Em relação às leis que alteram o padrão monetário, o Supremo Tribunal Federal tem afastado a garantia do direito adquirido, reconhecendo que as leis que criam ou alteram padrão monetário passam a incidir imediatamente sobre os contratos firmados sob a égide da legislação anterior, passando a irradiar efeito a partir de então.
Nesse sentido, o aresto abaixo transcrito:
A MOEDA DO PAGAMENTO DAS CONTRIBUIÇÕES E DOS BENEFÍCIOS DA PREVIDENCIA PRIVADA TEM O SEU VALOR DEFINIDO PELA LEI 6.435/77, SEGUNDO OS INDICES DAS ORTNS, PARA TODAS AS PARTES. NÃO HÁ DIREITO ADQUIRIDO A UM DETERMINADO PADRAO MONETARIO PRETERITO, SEJA ELE O MIL REIS, O CRUZEIRO VELHO OU A INDEXAÇÃO PELO SALARIO MINIMO. O PAGAMENTO SE FARA SEMPRE PELA MOEDA DEFINIDA PELA LEI DO DIA DO PAGAMENTO. RE CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO[6].
Nesses casos, nota-se presente a noção de graus de retroatividade, que podem ser divididas em retroatividade máxima, retroatividade média e retroatividade mínima.
Na retroatividade máxima, a lei expressamente determina o afastamento da coisa julgada, ato jurídico perfeito ou direito adquirido. Na retroatividade média, a lei afeta os efeitos pendentes dos atos jurídicos realizados antes de sua vigência que não tenham sido objeto de decisão judicial ou estejam consolidados por outras razões (exemplo prestações vencidas, mas não pagas). Por fim, há a retroatividade mínima em que a lei somente irradia efeitos a partir de sua vigência, atingindo os efeitos futuros do ato realizado antes de entrar em vigor.
Referências bibliográficas
DIDIER JR, Fredie, BRAGA, P.S., OLIVEIRA, R. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. Salvador: JusPodivm, 2007.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Bonet Branco. 9ª. ed. São Paulo:Saraiva, 2014.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Editora Atlas: São Paulo, 2005
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 2ª edição. Rio de Janeiro : Forense; São Paulo : METODO, 2010.
PAULO, Vicente. Direito constitucional descomplicado. Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino. Rio de Janeiro : Impetus, 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16 ed. Malheiro Editores: São Paulo, 1999.
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Recurso Extraordinário n° 204.769/RS. Relator: Min. Celso de Mello. Orgão Julgador: Primeira Turma. Julgamento: 10/12/1996.
[2] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16 ed. Malheiro Editores: São Paulo, 1999. p. 435.
[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16 ed. Malheiro Editores: São Paulo, 1999. pp. 434/435.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Bonet Branco. 9ª. ed. São Paulo:Saraiva, 2014.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Recurso Extraordinário n° 94.020/RJ. Relator: Min. Moreira Alves. Orgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 04/11/1981.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Recurso Extraordinário n° 105.137/RS. Relator: Min. Cordeiro Guerra. Orgão Julgador: Segunda Turma. Julgamento: 31/05/1985.
Procurador Federal - AGU
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GIANNINI, Marcelo Henrique. Aspectos do direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 out 2014, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41122/aspectos-do-direito-adquirido-ato-juridico-perfeito-e-coisa-julgada. Acesso em: 23 dez 2024.
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