As cláusulas pétreas se inserem como limitações materiais ao poder de reforma da Constituição.
Sua existência parte da premissa de que a despeito da necessidade de revitalização da Constituição por meio de mudanças que permitam mantê-la consentânea com os ideais que permeiam a sociedade em cada momento, alguns pontos integram sua essência e devem ser preservados.
Alguns pontos foram reputados tão caros ao Constituinte que somente um rompimento com a Constituição atual, com a realização de uma nova Constituinte originária e a edição de uma nova Constituição poderia retirar-lhes a estatura constitucional.
Esse limite material de reforma da Constituição sempre foi objeto de polêmica. Aqueles que são contrários à sua existência afirmam que por meio das cláusulas pétreas a geração anterior estaria impondo sua vontade às gerações subseqüentes e que se tanto o poder constituinte originário, quanto o poder constituinte reformador retiram sua legitimidade do poder popular, a existência de um novo consenso acerca dos temas retratados como imutáveis seria o suficiente para permitir a modificação ou supressão de seu conteúdo.
A refutação a tal argumento advém da natureza dos trabalhos realizados por uma Constituinte originária, que é mais universalista e atemporal, na medida em que os representantes do povo se encontram reunidos com o propósito específico de elaborar o Diploma constitucional, enquanto o poder de reforma esta mais sujeito à questões cotidianas e as insurgências políticas.
Além disso, aqueles princípios erigidos em cláusulas pétreas consubstanciam o núcleo do projeto de poder do constituinte originário, caracterizando-se como o mínimo essencial para a configuração do Estado do Estado idealizado, que surge a partir da promulgação da Constituição. O afastamento de tais pontos alteraria de tal forma a estrutura e fisiologia do Estado, que este já não seria mais o mesmo. Assim, para a criação de um novo Estado seria curial que se fizesse por meio de uma nova Constituição.
A reforma da Constituição jamais poderá afetar sua integridade, fazendo-a perder sua unidade estrutural ou, tampouco, sua identidade.
O fato de constituinte originário ser juridicamente superior ao constituinte reformador lhe possibilita a alocação de cláusulas imutáveis na Constituição. Evidentemente, essa imutabilidade não terá força de impedir a alteração pelo movimento revolucionário de rompimento integral com o diploma constitucional para que outro seja erigido em seu lugar.
A tese da dupla revisão surge a partir do argumento de que a norma que estabelece as cláusulas pétreas não seria imutável, de modo que se permitira, após a supressão do direito do elenco das matérias imutáveis, a alteração ou supressão do próprio direito.
Todavia esse não se revela o melhor entendimento.
Entende-se que há vedações expressas e implícitas quanto à alteração do conteúdo das cláusulas pétreas. A vedação expressa diria respeito às matérias que ostentam tal natureza, enquanto a vedação implícita diria respeito, à própria norma que estabelece quais são as matérias imutáveis, bem como às normas necessárias a dar concretude às matérias arroladas no artigo 4° do artigo 60 da Constituição da República[1], obstando que se tornem mera letra de lei sem efetividade.
Mais do que proteger a mera redação do texto legal, a cláusula pétrea possui o condão de resguardar os princípios e valores retratados como imutáveis. Assim, a mera alteração na redação do § 4° não será necessariamente inconstitucional.
Há parcela da doutrina que vai ainda mais longe para permitir alterações nos princípios resguardados, desde que não atinjam seu núcleo essencial.
Essa parece ser a posição do Supremo Tribunal Federal, que tem reputado válido que alterações constitucionais tratem em algum grau das matérias protegidas como cláusulas pétreas, afastando as alterações realizadas por via de emendas exclusivamente naqueles casos em que concretamente se agrida o núcleo essencial dos valores protegidos como cláusulas pétreas.
Nesse sentido, excerto do voto do Ministro Sepúlveda Pertence na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.024/DF: as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege[2].
O mesmo fundamento foi utilizado no julgamento da ADI 3.376, consoante se afere pelo excerto abaixo:
(...) 2. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Emenda Constitucional nº 45/2004. Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça. Instituição e disciplina. Natureza meramente administrativa. Órgão interno de controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura. Constitucionalidade reconhecida. Separação e independência dos Poderes. História, significado e alcance concreto do princípio. Ofensa a cláusula constitucional imutável (cláusula pétrea). Inexistência. Subsistência do núcleo político do princípio, mediante preservação da função jurisdicional, típica do Judiciário, e das condições materiais do seu exercício imparcial e independente. Precedentes e súmula 649[3]. (...)
Há que se observar que § 4º do artigo 60 da Constituição da República prescreve que Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir as matérias arroladas em seus incisos.
Pela redação do artigo se percebe que a Constituição Federal veda inclusive a deliberação em qualquer das casas do Congresso Nacional de proposta de emenda tendente a abolir qualquer das matérias postas como cláusula pétrea.
A inconstitucionalidade já ocorre na mera deliberação, estando ligada a aspectos relativos à forma e ao procedimento do processo legislativo, sequer sendo necessária para sua configuração a efetiva aprovação da proposta de emenda.
Por essa razão, a despeito de não existir no direito brasileiro o controle prévio de constitucionalidade, cabe de forma excepcional a impetração de mandado de por congressista com o objetivo de por fim ao projeto de emenda constitucional.
O Supremo Tribunal Federal tem entendimento firme e pacífico acerca do tema, consoante se afere pelo excerto da emenda abaixo transcrito:
Mandado de segurança contra ato da Mesa do Congresso que admitiu a deliberação de proposta de emenda constitucional que a impetração alega ser tendente a abolição da republica. - Cabimento do mandado de segurança em hipóteses em que a vedação constitucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a sua apresentação (como é o caso previsto no parágrafo único do artigo 57) ou a sua deliberação (como na espécie). Nesses casos, a inconstitucionalidade diz respeito ao próprio andamento do processo legislativo, e isso porque a Constituição não quer - em face da gravidade dessas deliberações, se consumadas - que sequer se chegue a deliberação, proibindo-a taxativamente. A inconstitucionalidade, se ocorrente, já existe antes de o projeto ou de a proposta se transformar em lei ou em emenda constitucional, porque o próprio processamento já desrespeita, frontalmente, a constituição[4] (...)
Os incisos do § 4º do artigo 60 da Constituição da República elenca o rol de matérias tratadas como cláusulas pétreas:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
A forma federativa de Estado caracteriza-se pela (i) descentralização político-administrativa e financeira dos entes da federação; (ii) repartição constitucional de competência entre os entes federados; (iii) ingerência dos Estados-membros na formação da vontade nacional (por meio do Senado); (iv) autocomposição e auto governo dos entes federativos e (v) inexistência de direito de secessão.
Assim, esses elementos devem ser preservados. Ainda que não se impeça a transferência de competência de um ente federativo a outro, não se pode esvaziar a importância de um ente federativo, sob pena de proporcionar a perda de autonomia. Além disso, deve ser levado em consideração o chamado federalismo fiscal, restando vedada a interferência de um ente federativo na competência tributária de outro, bem como se obstando a chamada guerra fiscal, em preservação ao princípio federativo.
Pela proteção ao voto direto, secreto, universal e periódico se garante o princípio democrático, pela escolha dos representantes populares ocupantes das funções do Poder Executivo e do Poder Legislativo.
A escolha é direta, não se admitindo a escolha por colégios eleitorais. O fato de o voto ser secreto garante a liberdade de escolha, restringindo-se a possibilidade do chamado “voto de cabresto”. A universalidade garante o direito ao voto a todo cidadão, independentemente de questões culturais, econômicas ou de qualquer outra natureza. O voto também é periódico, como corolário do princípio republicano da temporariedade dos mandatos.
Referências bibliográficas
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Bonet Branco. 9ª. ed. São Paulo:Saraiva, 2014.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Editora Atlas: São Paulo, 2005
PAULO, Vicente. Direito constitucional descomplicado. Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino. Rio de Janeiro : Impetus, 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16 ed. Malheiro Editores: São Paulo, 1999.
[1] Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão na Ação direta de Inconstitucionalidade n° 2.024/DF. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Orgão Julgador: Tribunal Pleno. Unânime. Julgamento: 03/05/2007.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão na Ação direta de Inconstitucionalidade n° 3.367/DF. Relator: Min. Cezar Peluso. Orgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 13.04.2005.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Mandado de Segurnaça n° 20.257/DF. Relator: Min. Décio Miranda. Relator para Acórdão: Ministro Moreira Alves. Orgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 08/10/1980.
Procurador Federal - AGU
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GIANNINI, Marcelo Henrique. Aspectos gerais das cláusulas pétreas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 out 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41130/aspectos-gerais-das-clausulas-petreas. Acesso em: 23 dez 2024.
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