Resumo: O processo não pode ser mais concebido como um instrumento neutral e estritamente técnico. Faz-se necessário afirmar a sua dimensão política e suas implicações econômicas. Denunciar tal natureza processual demonstra-se importante quando se associa a noção de democracia àquela de processo. É com este propósito que versamos nossa análise sobre dois instrumentos cívico-processuais: a ação popular e a ação civil pública.
Palavras-chave: Democracia participativa. Ação popular. Ação civil pública.
1. Introdução
Democracia participativa encontra-se entre os assuntos bastante em voga no discurso político e jurídico. No contexto histórico, essa forma de regime político caracteriza o nível último de um processo democrático que se iniciou com a civilização grega[1]. Suplantado nos séculos posteriores, retornou-se a discutir sobre democracia depois da ocorrência das revoluções americana (1776) e francesa (1789).
Essas revoluções deram origem a um Estado de matriz liberal-individualista, baseado em um modelo de democracia representativa. O governo não consistia mais na figura de um soberano que governava de forma absoluta; pelo contrário, desse momento em diante, é o povo quem detém o poder e somente ele, mediante prévias eleições, pode delegar esse poder a pessoas escolhidas como seus representantes.[2] Instaurou-se, porém, uma completa separação entre o Estado-administrador e a sociedade. O único momento de contato entre ambos ocorria mediante o processo eleitoral. A concepção dominante em tal período, nesse sentido, era de que o Estado consistia em um mero guardião das liberdades individuais, sendo que nenhuma outra atuação sua era considerada legítima.[3] Conforme Celso Ribeiro Bastos (2001, p. 11-12), o Estado liberal era um mal necessário, “insubstituível na prestação de algumas atividades para as quais o indivíduo isolado, ou voluntariamente associado, é impotente”, como “a manutenção da ordem interna, a defesa contra o inimigo externo, a distribuição da justiça, a aprovação e a imposição de um Direito Penal, Civil, Comercial etc.”
O entendimento que se tinha a respeito da legitimação para o direito do voto, além disso, não coincidia na época com a ideia que é aceita hoje. Democracia representativa, nos moldes modernos, significa que qualquer cidadão, sem discriminações de natureza econômica ou de gênero, detém o direito de escolher os seus representantes. Embora dois séculos atrás também se intitulasse o governo como democrático (“demo” = povo; “cracia” = governo), na verdade, somente a uma restrita parte do povo era concedida a possibilidade de escolha dos governantes.[4]
Com o tempo, foi-se ampliando a legitimação para o exercício do voto. A própria concepção de Estado também sofreu modificações. A isso contribuiu a crise do liberalismo do início do século XX e o conseqüente surgimento de um Estado que ficou conhecido como Social.
A liberdade individual, que antes era tida como de importância fundamental e livre de qualquer intervenção do Poder Público, agora é enquadrada sob diverso prisma. O Estado não deve somente protegê-la, mediante a atuação quase que exclusiva do Legislativo, mas a ele impende promovê-la. De uma Administração pública absenteísta originou-se uma Administração intervencionista, reconhecedora da existência de direitos econômicos e sociais à população. A substituição do Estado Liberal pelo Estado Social (também chamado Estado Providência) representa também o prestigiamento do valor igualdade ao lado do valor liberdade. Isto porque se percebe que sem um mínimo de igualdade substancial, pelo menos igualdade de oportunidades, a liberdade só tem sentido para alguns poucos privilegiados.[5]
A separação entre Estado e sociedade civil, no entanto, continuava. Apesar do primeiro atuar através de políticas econômicas no segundo (o que no Estado liberal não ocorria), ele não permitia que a sociedade participasse na escolha desses programas ou no controle dos atos administrativos. Verifica-se a configuração, assim, de um “governo do povo”, mas “sem o povo”.
A democracia, porém, faz parte de um processo evolutivo. Ao evoluir da sociedade, dessa forma, o conceito de “governo do povo”(=democracia) também precisa ser revisitado.
A sociedade atual caracteriza-se pela complexidade de suas relações. Várias pessoas podem estar simultaneamente envolvidas num mesmo risco, ligadas por uma situação de fato comum a todas elas. Atividades sociais, políticas e econômicas, que uma vez repercutiam numa dimensão muito restrita, hoje podem beneficiar ou prejudicar a muitos.[6] Numa sociedade massificada como esta, percebe-se o esgotamento do modelo da democracia puramente representativa.
Denota-se, assim, a necessidade de uma atuação conjunta entre Estado e o “povo” na tutela e na administração da res publica. Impende, isto é, evoluir-se de uma democracia como “representação” para o entendimento de uma democracia como “participação”. “A democracia não teme, antes requer, a participação ampla do povo e de suas organizações de base no processo político e na ação governamental” (SILVA, 1991, p. 121). Existem motivos para fundamentar tal afirmação. Primeiro, porque o Estado não figura mais como proprietário do erário e do patrimônio público, mas lhes é mero administrador.[7] Logicamente, incumbe também aos legítimos titulares dos bens acima citados buscar a proteção destes bens, controlando os atos da Administração. Segundo, porque as atividades promovidas pelo Poder Público influirão no contexto social. O povo será diretamente afetado e, por isso, lhe devem ser assegurados instrumentos de participação na escolha e no controle dessas atividades.
A Constituição Federal de 1988 institucionalizou a participação direta e pessoal da cidadania nos atos de Governo. Não se trata de exclusão do sistema representativo-parlamentar, mas de sua superação.[8]
No Legislativo, o exercício da cidadania foi viabilizado através da iniciativa popular, do plebiscito e do referendo (art. 14, I, II e III da CF/88). No âmbito do Poder Executivo, alguns dispositivos constitucionais ensejam a participação da comunidade na gestão pública, nas áreas, por exemplo, da saúde (art. 198, III da CF/88) e da assistência social (art. 204). O orçamento participativo, aplicado ultimamente por certas administrações, também consiste em útil instrumento para a prática democrática. Através do mesmo, todo indivíduo interessado e que participe das plenárias regionais pode apresentar suas reivindicações pessoais e informar-se sobre as propostas governamentais. Trata-se essa de uma maneira de influenciar na tomada das decisões administrativas e políticas.
Mas é também mediante a via judicial que se demonstra possível o exercício da cidadania. Aqui, a participação popular se faz presente, principalmente, como forma de impedir a ocorrência de danos a interesses da coletividade ou, ao menos, a condenar os responsáveis por tais lesividades a reparar o mal provocado.
O recurso ao Poder Judiciário torna-se possível através do processo, sendo que a estrutura do mesmo, nesses últimos anos, vem sofrendo grandes modificações. Essa necessidade de reestruturação decorre da nova realidade social que vem gerando não mais somente conflitos do tipo individual. Cada vez mais, os litígios ganham uma dimensão coletiva, ou porque envolvem simultaneamente várias pessoas num mesmo risco, ou porque ferem direitos cuja titularidade não pode ser conferida a um só indivíduo.[9]
É nesse sentido que esse artigo visa demonstrar a importância de se viabilizar o acesso aos tribunais de demandas metaindividuais. Segundo o pensamento de Calmon de Passos (1988, p. 95), trata-se de transformar o processo em “instrumento político de participação”.
É com esse propósito que se pretende analisar, ao longo desse trabalho, a utilidade e a atualidade da propositura da ação popular e da ação civil pública na defesa de interesses que não dizem respeito a uma pessoa somente, mas a um conjunto de pessoas, ou, até mesmo, a todas elas.
2. A ação popular
A ação popular extrai suas origens da civilização romana. Segundo Rodolfo de Camargo Mancuso (1994; p. 24-26), embora a noção de Estado ainda não fosse muito bem definida, havia um forte vínculo natural entre os cidadão e a gens. A res publica pertencia, em certo modo, a cada cidadão romano, o qual podia defender a res communes omnium através da dita ação popular.
No direito brasileiro, a primeira Constituição a introduzi-la foi a de 1934. A ação foi suprimida com a Carta outorgada de 1937, mas foi repristinada pela Constituição de 1946, sendo mantida na de 1967, inclusive com a Emenda Constitucional n. 1, de 1969, e na de 1988. A lei regulamentadora é a de n. 4.717/65.
A nossa atual Constituição não somente a incluiu no rol dos direitos e deveres individuais e coletivos, mas ampliou o seu objeto. Nesse sentido, a Carta de 1967, com a emenda de 1969, previa que “qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise a anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas” (art. 153, § 31 da CF/67). A Constituição de 1988 (art. 5°, inc. LXXIII) ampliou seu objeto, expressando-se assim:
“qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.”
Conforme refere Rodolfo de Camargo Mancuso (1994, p. 51-52), as diferenças entre as Cartas são nítidas. Primeiro, porque “entidades públicas” (citadas no antigo Texto) não incluem, por exemplo, as sociedades de economia mista e as empresas públicas (que podem ser consideradas entidades de que o Estado participe e, portanto, se encaixam na definição de 1988). Segundo, porque o constituinte de 1967 não faz nenhuma menção à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.
Em cotejando a Constituição atual com a lei n. 4.717/65, deparar-se-á com semelhanças e diferenças. Em relação aos pontos em comum, ambas mencionam que a ação popular visa a anular ato lesivo ao patrimônio público e de entidade de que o Estado participe. A própria lei serve de subsídio para a definição de “patrimônio público” do qual trata a Carta. Desta forma, o art. 1°, § 1°[10]da lei o conceitua como “os bens de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico”.
Quanto às dessemelhanças, Mancuso (1994, p. 51), citando José Carlos Barbosa Moreira[11], afirma que a lei n. 4.717/65 não cogita da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio cultural. Uma interpretação extensiva do seu texto, de repente, poderia incluir esses últimos dois objetos como sendo dotados eles de algum dos valores citados no art 1°, § 1°. A Constituição de 1988, no entanto, acaba com qualquer dúvida a respeito da inclusão ou não do meio ambiente e do patrimônio cultural como objetos de defesa pela ação popular, além de inovar ao mencionar a “moralidade administrativa”.
José Afonso da Silva[12] , afirma que a ação popular pode ser analisada sob um tríplice aspecto: processual, administrativo e constitucional.
Do ponto de vista processual, a ação assume características peculiares que geram particularidades processuais e procedimentais. A lei n. 4.717/65 disciplina estas questões.
Quanto ao aspecto administrativo, ele se relaciona com a natureza de controle dos atos da Administração eivados de ilegalidade, imoralidade e/ou lesivos ao descrito no art. 5°, LXXIII da CF/88.
A ação popular, além disso, constitui um remédio constitucional. Positivada no título II da CF/88 (“Dos direitos e garantias fundamentais”), e mais especificadamente no capítulo que assegura os direitos e deveres individuais e coletivos, ela pode ser proposta sempre que o patrimônio público, a moralidade administrativa, o meio ambiente e o patrimônio histórico-cultural sofrem ou estão sob a iminência de sofrer alguma lesividade. A ação popular, dessa forma, constitui uma garantia constitucional da boa administração, de um meio ambiente ecologicamente equilibrado e de um patrimônio histórico e cultural preservado.
2.1. Legitimação ativa na ação popular.
O único legitimado ao ajuizamento da ação é o cidadão. Mas, quem é o cidadão? Segundo a lei n. 4.717/65, é todo o brasileiro munido de título eleitoral. A Constituição, no seu art. 14, § 1°, reza que o alistamento eleitoral e o voto são obrigatórios para os maiores de dezoito anos e facultativos para os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos (dentre outros). Conclui-se, assim, que os maiores de dezesseis, se munidos de título eleitoral, já podem ser considerados cidadãos. A polêmica em sede doutrinária reside na consideração da necessidade ou não da assistência ao menor de 18 anos (já segundo o novo Código Civil, em vigor a partir de janeiro de 2003) para que o mesmo intente ação popular. Rodolfo de Camargo Mancuso, com quem concordamos, entende que o menor eleitor pode ajuizar a ação sem assistência. “Exigi-lo seria restringir direito constitucional do cidadão” (1994, p.110) e desprestigiar a orientação da nossa Carta Maior verso a efetivação de uma democracia participativa.
Nesse contexto, deve-se considerar o autor popular ordinariamente legitimado para propositura da ação ou tratar-se-ia ele de um substituto processual? A doutrina diverge na resposta. Dentre os que se filiam à segunda tese, encontramos, a mó d’esempio, Ada Pellegrini Grinover e Antonio Carlos Araujo Cintra. Dentre os que pensam diversamente encontramos José Afonso da Silva e Rodolfo de Camargo Mancuso[13]. De fato, este último (1994, p.106-108), citando José Afonso, afirma que:
“a ação popular constitui um instituto de democracia direta, e o cidadão, que a intenta, fá-lo em nome próprio, por direito próprio, na defesa de direito próprio, que é o de sua participação na vida política do Estado, fiscalizando a gestão do patrimônio público, a fim de que esta se conforme com os princípios da legalidade e da moralidade”.[14]
Os demais cidadãos provarão benefício por via reflexa. Insta ressaltar, no entanto, que a ação popular não visa à satisfação de interesse meramente individual. O cidadão pleiteia a “tutela jurisdicional de interesse que não lhe pertence, ut singulis, mas à coletividade. O autor popular faz valer um interesse que só lhe cabe, ut universis, como membro de uma comunidade, agindo pro populo”. (SILVA, 1991, p. 397)
2.2. O binômio legalidade-lesividade.
De acordo com o posicionamento jurisprudencial prevalecente no Superior Tribunal de Justiça, “para a propositura da ação popular, não basta a alegação de ser o ato ilegal, mas é necessária a comprovação da lesividade ao erário público.”[15]
A necessidade da verificação do binômio ilegalidade-lesividade para a propositura da ação popular decorre, para muitos operadores do direito, da dicção do dispositivo constitucional que a institui (“art 5º, LXXIII: qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo (…) e do art. 1° da lei n. 4.717/65 (“qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos (…)”). Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2000, p.217), “anulação, que alguns preferem chamar de invalidação é o desfazimento do ato administrativo por razões de ilegalidade”.
Na lição de Mancuso (1994, p.67-74), será suficiente, conforme o caso, a afirmação da lesividade somente para a propositura da ação, uma vez que a mesma raras vezes não vem precedida de um vício de nulidade ou anulabilidade (vícios quanto à competência, à forma, à finalidade; erro, dolo, coação, etc.). Além disso, casos há em que a ilegalidade vem presumida na própria lesividade.
A Constituição de 1988, ao incluir a moralidade administrativa no dispositivo que trata da ação popular, possibilitou uma nova interpretação em relação à exigência da verificação do binômio lesividade-ilegalidade. Em outras palavras, ainda segundo Mancuso, um ato ofensivo à moralidade administrativa, não necessariamente ilegal ou lesivo ao erário, pode ensejar o ajuizamento da ação popular. “Todavia, é de se remarcar que no mais das vezes a imoralidade administrativa trará, subjacente, a afronta a um dispositivo legal, de modo mais ou menos explícito”.(p. 76)[16]
2.3. O pedido na ação popular.
O objeto na ação popular consiste na anulação de atos lesivos ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural (art. 5°, LXXIII, da CF/88). Além dessa natureza descontitutiva, o pedido imediato em sede de ação popular goza também de índole condenatória. De fato, esta é a conclusão da leitura do art. 11 da lei n. 4.717/65, que reza:
“a sentença que, julgando procedente a ação popular, decretar a invalidade do ato impugnado, condenará ao pagamento de perdas e danos os responsáveis pela sua prática e os beneficiários dele (…)”.
Naturalmente, se o ato não for lesivo, quem o praticou não incorrerá na condenação em perdas e danos. Além disso, apesar do disposto no artigo acima citado, a condenação visará, teleologicamente, à reposição do que foi agredido ao statu quo ante. Ou seja, deverá dar-se preferência à execução em espécie, deixando para a condenação em perdas e danos somente no caso do dano ser irreparável.[17]
2.4. Legitimação passiva na ação popular.
O cidadão, ao propor uma ação popular constitucional, requer a preservação dos princípios éticos na Administração, a recuperação de algum monumento de relevante valor histórico para uma determinada localidade, a preservação do meio ambiente, o retorno aos cofres públicos de verbas desviadas, etc. Os bens a que se pretende proteger em sede de ação popular são inúmeros.
Para que seja possível o seu ajuizamento, o ato a ser impugnado deve provir de órgão da Administração, direta ou indireta. Embora nem a Constituição (art. 5°, LXXIII), nem o caput da lei 4717/65 mencionem a proveniência do ato[18], o art. 6°, caput, da lei institui que:
“a ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1°, contra as autoridades, funcionários, ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo”.
A mens legislatoris, nesse sentido, foi estabelecer um “litisconsórcio passivo necessário entre todas as pessoas mencionadas [a Administração, os responsáveis pelo ato e os beneficiários diretos do mesmo]” (BARROSO, 2001, p. 213).
As pessoas jurídicas de direito público ou privado serão citadas pelo fato de vincularem-se juridicamente a quem praticou o ato impugnado. Segundo Mancuso (1994, p. 113):
“Embora se cuide de litisconsórcio passivo necessário, não se pode descurar que o autor popular está, presumivelmente, prestando um serviço à Administração, ao denunciar o ato ou fato que reputa ilegal e lesivo ou simplesmente afrontoso à moralidade administrativa. Presente tal peculiaridade, houve por bem o legislador colocar três opções para a Administração (que é ré, porque deve ser citada): a) contestar; b) não contestar e assistir o autor; c) omitir-se quanto às alternativas anteriores (§ 3° do art. 6° da LAP).
Ainda conforme o mesmo autor, a escolha de qualquer uma dessas alternativas não será feita de modo arbitrário, mas deverá atender à melhor opção para o interesse público.[19]
Caso a sentença judicial venha a acolher, parcial ou totalmente, a ação popular, independentemente do comportamento que venha a assumir a entidade, não será a mesma condenada à reparação do patrimônio público lesado. Não experimentará, então, algum “prejuízo” com a eventual procedência da ação proposta. A própria lei n. 4.717/65 determina a necessidade da formação de um litisconsórcio passivo necessário que integre as pessoas públicas de direito público ou privado, mas sujeita à condenação em perdas e danos (caso materialize-se a lesividade do ato) somente os responsáveis pela prática lesiva e os seus beneficiários (art. 11). Além do mais, “beneficiária dos efeitos desse julgado será a entidade pública que, embora processualmente tenha sido ‘co-ré’ (e possa eventualmente até ter contestado a ação), é ela que aproveita a sentença de procedência da ação.” (MANCUSO, 1994, p.174)
2.5. A sentença
A ação popular figura no rol das ações que tem por objeto uma demanda relativa a direito metaindividual. O cidadão que a propõe objetiva não a defesa de um interesse meramente pessoal, mas a defesa de um bem de significação pública. Esse acesso aos Tribunais de demandas com tal objeto decorre da adaptação dos mecanismos processuais à nossa nova realidade social, caracterizada como uma sociedade de massa. A sociedade atual, de fato, caracteriza-se pela complexidade das suas relações. Várias pessoas podem estar contemporaneamente envolvidas numa mesmo risco, ligadas por uma situação de fato comum a todas elas. Atividades sociais, políticas e econômicas, que uma vez repercutiam numa dimensão muito restrita, hoje podem beneficiar ou prejudicar a muitos.[20]
O processo, então, além de instrumento de composição de conflitos inter personae, passou a constituir meio de resolução de dissídios cujos interesses envolvidos não se relacionam somente às partes processuais. Como afirma Mancuso, (2002, p. 796), citando Carlos Alberto de Salles[21]”:
“O Judiciário, tradicionalmente, esteve voltado à resolução de disputas privadas, entre interesses particulares de partes individuais. Com a introdução das ações coletivas em nosso sistema judicial, o poder jurisdicional passa a atuar sobre o interesse público, decidindo, entre vários interesses antagônicos na sociedade, qual deles deve ser prevalecente em uma dada situação concreta, tendo em vista os valores consagrados no sistema jurídico.”
Naturalmente, essa nova concepção de processo rende implicações na definição dos limites subjetivos da sentença proferida em sede de ações de caráter coletivo. Não mais se pode admitir que, em tais casos, a sentença que declare procedente o pedido deduzido na petição inicial faça coisa julgada somente entre as partes (autor e réu). Isso constituiria, de fato, uma incongruência: o autor enseja defender um interesse que ultrapassa a esfera individual, e o que obtém é uma sentença eficaz entre ele e o réu, tão somente. “Para ser efetiva a decisão deve obrigar a todos os membros do grupo, ainda que nem todos tenham tido a oportunidade de ser ouvidos. Dessa maneira, outra noção tradicional, a da coisa julgada, precisa ser modificada (…)” (CAPPELLETTI, 1988, p. 50). Não foi sem motivos que o legislador da lei de ação popular, em sendo questionado sobre os efeitos da sentença, tenha assim se posicionado:
“A sentença terá eficácia de coisa julgada oponível “erga omnes”, exceto no caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de prova; neste caso, qualquer cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.”(art. 18)
Conforme o comentário de Mancuso (1994, p. 197-203), a sentença, em declarando procedente o pedido do autor, terá a qualidade de coisa julgada material, portanto, “erga omnes”. Terá o mesmo efeito em caso de pretensão infundada (lide manifestamente temerária). Nessa última situação, o autor será condenado ao pagamento do décuplo das custas (art. 13 da lei n. 4717/65). No entanto, no caso de falta de provas, a sentença gera coisa julgada meramente formal. O próprio cidadão ou qualquer outro interessado poderá, dessa forma, entrar com uma nova ação popular fundamentando o seu pedido em outras provas. Com base nesse permissivo legal, quer-se prevenir o risco da colusão entre o autor popular e os responsáveis ou diretamente beneficiados pelo ato impugnado, “evitando as ações simuladas, adrede propostas e destinadas a serem julgadas improcedentes, para o fim de subtraírem o ato lesivo à nova apreciação jucial”. Devido à natureza do interesse que se visou proteger através da ação popular, portanto, o legislador optou por decretar os efeitos da coisa julgada secundum eventum litis: conforme o resultado do litígio, far-se-á coisa julgada formal ou material. A mesma técnica foi utilizada pelo Código de Defesa do Consumidor (arts. 103 e 104 da lei n. 8.078/90) e pela lei da ação civil pública (art. 16 da lei n. 7.347/85).
Ao longo dessa análise em torno da ação popular, observou-se a notável importância do seu ajuizamento na defesa de bens de interesse público. Sem dúvida, se fosse consistente o número de proposituras da dita ação, muitos atos lesivos ao patrimônio público, ao meio ambiente, ao patrimônio histórico-cultural e à moralidade administrativa poderiam ser desconstituídos e os danos reparados ou indenizados. Infelizmente, o povo brasileiro peca pela deficiência no grau de consciência do conceito de cidadania e das implicações práticas que resultam do exercício dessa cidadania. A própria evolução histórica de nosso país justifica essa constatação: longos períodos de paternalismo, ausência de experiências de autogoverno e baixo desenvolvimento econômico. Elival da Silva Santos (1992, p. 237 – 246), nesse sentido, afirma que o Brasil enquadra-se entre aquelas sociedades que desenvolveram-se de cima para baixo. A história descreve o poder do Estado sobre os seus “subordinados”, aos quais era negada qualquer oportunidade de atuação conjunta com os governantes. Sempre se tentou e se conseguiu sufocar experiências de auto-governo e, assim, perpetuou-se a ideia de que o povo é incapaz de decidir o próprio destino. Disso, decorre a postura passiva do cidadão brasileiro diante do governante: “dele tudo se espera; dele tudo se critica; mas dele nada se exige em termos de propostas concretas.” (SANTOS, 1992, p.246)
Verifica-se uma deficiência de instrução e conscientização da população brasileira no sentido de desenvolver uma mentalidade crítica e política. Muitos cidadãos nunca tomaram nem mesmo conhecimento da existência de uma ação constitucional através da qual pudessem pleitear a anulação de atos lesivos a bens que lhe pertencem, ou seja, às res communes omnes. Além disso, a percepção da condição de inferioridade do autor popular perante adversários perigosos naturalmente inibe qualquer tomada de atitude do primeiro contra os segundos.[22] Disso, fatalmente decorre a ínfima participação popular nas questões relacionadas à res publica.
Por outro lado, a verificação desta ausência de interesse pela política e pela defesa dos bens comuns a todos, por parte dos cidadãos em geral, não significa que esta situação seja imutável. Com efeito, a evolução da sociedade brasileira faz parte de um processo. Este processo demonstra-se vinculado à existência de situações de ordem econômica-política-cultural, etc. que se modificam com o tempo. Durante muitos anos, mantiveram-se apartadas as esferas relacionadas à economia, à política e às questões de ordem privada. Cada uma destas esferas era regulada por princípios próprios e as implicações práticas que produziam restringiam-se à respectiva área de atuação.[23] Posteriormente, manifestou-se uma penetração da esfera pública na esfera privada. O Poder Executivo, além de regulamentar e disciplinar, passou a atuar de forma efetiva, através de políticas econômicas, nas questões de ordem privada[24]. O movimento, todavia, desenvolvia-se somente no sentido Governo-sociedade, e não também em sentido inverso. Segundo Elival da Silva Ramos (1992, p. 62-63), enquanto o Estado implementava políticas econômicas, a participação política resumia-se nas agremiações partidárias, “sem conseguir envolver em seu dinamismo a maior parte do povo.”
Modernamente, almeja-se justamente que essa interação entre o poder público e o povo proceda por meio de atos que provenham de ambos os lados. Não se trata de um mero “desejo”, sem fundamentos ou implicações práticas. Pelo contrário, o nível de desenvolvimento que atingiu a sociedade hodierna – uma sociedade identificada como “de massa” – não possibilita mais que o povo lato sensu (cidadãos, associações, o seu representante institucional na figura do Ministério Público)[25] permaneça inerte em se tratando de matéria de interesse público. O povo, nesse sentido, deve zelar – e aí afirmamos a importância da utilização da via judicial – pelo que lhe pertence como ente coletivo ou difuso ou que lhe represente algo de valor.
Não é suficiente a mera conscientização desse “dever” da coletividade de proteger bens ou interesses supraindividuais. Faz-se necessário a existência de instrumentos para concretizá-lo. E esses instrumentos encontram-se no ordenamento jurídico pátrio. Um deles consiste na ação popular, que pode ser ajuizada, por exemplo, para combater o desvio de verbas públicas, uma vez que o cidadão se encontra legitimado para defender judicialmente o patrimônio público (o erário, no caso) contra atos lesivos da Administração
Mas e quando o cidadão permanece inerte, optando por não exercer a sua cidadania através da propositura da ação popular? Essa demonstra-se ser uma situação nada incomum, como já foi constatado nessa análise. Além disso, nem sempre figurarão a autoridade e/ou o funcionário público como os legítimos culpados pela prática de ato imoral ou lesivo ao patrimônio público (incluído o histórico e o cultural) e ao meio ambiente. Muitas vezes, o agente do ato lesivo ou ameaçador de lesão a bens de valor ultraindividual coincide na pessoa do particular que não mantenha nenhuma relação jurídica com a Administração Pública. Nessa situação, não cabe a propositura da ação popular, uma vez que, como já foi dito anteriormente, o órgão administrativo deve sempre figurar no pólo passivo da ação. Esse seria o caso, para fins de exemplificação, do proprietário de um bem de valor arquitetônico demonstrar intenção de derrubar esse bem. Não se situaria o cidadão na posição de legitimado para bloquear, através do Judiciário, o possível ato do proprietário.
Nesse sentido, o legislador brasileiro disciplinou uma outra ação de caráter coletivo que, sem prejuízo da ação popular, rege as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, a qualquer outro interesse difuso ou coletivo e, por fim, disciplina também aqueles danos provocados por infração da ordem econômica. Esta afirmação encontra-se prevista no art. 1° da lei n. 7.347/85: a lei da ação civil pública.
3. A ação civil pública
A primeira referência expressa em nosso sistema à ação civil pública deu-se pela Lei Complementar Federal 40/81, que, ao estabelecer as normas gerais para a organização dos Ministérios Públicos dos Estados, elencou, entre as suas funções institucionais, a promoção da ação civil pública.
Para José Marcelo Menezes Vigliar (2002, p. 443), “a terminologia[26] ‘ação civil pública’ é muito imprópria”. Existem dois motivos para justificar tal afirmativa: primeiro, porque não pode ser considerada pública do ponto de vista de quem se encontra legitimado para provocar o exercício da atividade jurisdicional, uma vez que a legitimação abrange não apenas o Ministério Público como também as organizações privadas (art. 5° da lei n. 7.347/85). Em segundo lugar, o nome não pode nem mesmo ser relacionado com o interesse a ser protegido, uma vez que a ação visa tutelar os direitos difusos ou coletivos (art. 1°, IV da mesma lei), e não propriamente os de ordem pública. No entanto, foi esse o nome consagrado pela prática e que serviu de sugestão para o “batismo” do diploma legal de n. 7.347/85 em “lei da ação civil pública”. De acordo com Paulo Salvador Frontini:
“Vale aqui o ensinamento de Édis Milaré[27] de que a ação civil criada pela Lei 7.347 assim se qualifica pela natureza do interesse material que se pretende protegido pelo Poder Judiciário”, o que decorre de sua função de ‘tutela de um interesse público (lato sensu, significando não individual)’”. (FRONTINI, 2002, p. 715)
O objeto da ação civil pública se encontra definido no art. 1° da lei que a instituiu:
Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (Redação dada pela Lei nº 12.529, de 2011).
III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. (Incluído pela Lei nº 8.078 de 1990)
V - por infração da ordem econômica; (Redação dada pela Lei nº 12.529, de 2011).
VI - à ordem urbanística. (Incluído pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001)
VII – à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos. (Incluído pela Lei nº 12.966, de 2014)
VIII – ao patrimônio público e social. (Incluído pela Lei nº 13.004, de 2014)
Como afirma Barroso (2001, p.217), “com a promulgação da Constituição de 1988, houve verdadeira recepção qualificada da ação civil pública”. O Ministério Público passou a ter a função institucional de promover a ação (sendo que os demais legitimados pela lei n. 7.347/85 continuam com a faculdade de propô-la), “para a promoção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” (art. 129, III da CF/88).
Quanto ao patrimônio público, Lucia Valle Figueiredo (2002, p. 532) o conceitua como:
“Bens públicos são todos aqueles, quer corpóreos quer incorpóreos, portanto, imóveis, móveis, semoventes, créditos, direitos e ações, que pertençam, a qualquer título, a União, Estados, Municípios, respectivas autarquias e fundações de direito público. Configuram esses bens o patrimônio público e se encontram sob o regime de direito público”[28]
A autora continua definindo patrimônio social como “o conjunto de bens jurídicos assim denominados em face dos valores adotados pelo texto constitucional”, incluindo a moralidade administrativa, a proteção ao idoso, à criança e ao adolescente [entre outros].
Paulo Salvador Frontini (2002, p. 718-736), ressalta que os bens públicos são os definidos no Código Civil (art. 99 do CC/2002), abrangendo os de uso comum do povo, os de uso especial e os bens dominicais. Considera, ainda, que o patrimônio social caracteriza-se por ser um conjunto de bens culturais, históricos, artísticos, paisagísticos, arqueológicos, turísticos etc. Haverá, nesse sentido, sempre um interesse difuso em proteger seja o patrimônio social como o patrimônio público (com a exclusão dos bens dominicais[29]), o que justifica e legitima a ação civil pública.
A definição dos interesses difusos e coletivos, por sua vez, foi instituída pelo Código de Defesa do Consumidor. Os primeiros são tidos como os “transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato” (art.81, I do CDC). Antônio Herman V. Benjamin (1995, p. 90-92), descreve essa transindividualidade como relativa a uma pluralidade de sujeitos-titulares, mas que não chega a confundir-se com a comunidade, o que se denota em relação aos interesses públicos stricto sensu [em contraposição ao “interesse público lato sensu” de Édis Milaré acima citado]. Para o autor, o consenso coletivo (ou unanimidade social), é a marca primeira e mais relevante na caracterização do interesse público. Já a conflittualitá, ou seja, a contraposição de interesses, resulta inerente aos interesses difusos e coletivos. Quanto a esses últimos, são entendidos como “os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base” (art. 81, III da lei n. 8.078/90).
Conforme a abertura que a própria Carta Maior e a lei da ação civil pública operaram ao afirmarem que esta ação servirá de instrumento apto à proteção de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”, vários diplomas legais foram promulgados fazendo menção à dita ação, ampliando, assim, o seu campo de atuação. A mesma pode ser proposta, nesse sentido, para tutelar os interesses difusos e coletivos de pessoas portadoras de deficiência[30] ou de crianças e adolescentes[31]; para a tutela dos interesses individuais e homogêneos; para a responsabilização de danos causados aos investidores no mercado de valores imobiliários[32]; ou, ainda, para a proteção do patrimônio público[33].
Em relação aos interesses individuais homogêneos[34], foram eles introduzidos pelo Código de Defesa do Consumidor.
“Ao contrário dos interesses difusos e coletivos, (…), o objeto dos interesses individuais homogêneos é divisível, pois o dano ou a responsabilidade se caracterizam por usa extensão variável e atribuível a cada um dos interessados. A origem de tais danos, no entanto, decorre de circunstâncias fáticas comuns”. (BARROSO, 2001, p. 222)
Ainda segundo o autor, que tem por base o entendimento jurisprudencial dominante[35], são:
“três [as] hipóteses de atuação legítima do Ministério Público na tutela dos direitos individuais homogêneos a saber: quando os direitos forem indisponíveis, quando houver interesse social relevante envolvido e quando houver relevância social na tutela coletiva”. (BARROSO, 2001, p.229-235)
O legislador, buscando uma integração entre o Código de Defesa do Consumidor e a lei da ação civil pública, de modo a complementarem-se reciprocamente, instituiu que a defesa dos interesses individuais homogêneos também pode ser feita via ação civil pública.
A lei n. 8.625/93, que instituiu a nova Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, também dilata o campo de aplicação da ação civil pública:
“Art. 25 – Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público:
IV – promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei:
a) para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos;
b) para a anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio ou à moralidade administrativa do Estado ou de Município, de suas administrações indiretas ou fundacionais e de entidades privadas de que participem.”
Este último dispositivo guarda relação com o disposto no art. 5°, LXXIII da CF/88: “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural(…)”.
“À semelhança da ação popular (CF, art. 5°, LXXIII), também a ação civil pública se presta a expurgar do ordenamento os atos administrativamente imorais, ainda que em conformidade com a lei”. (BARROSO, 2001, p. 220)
Combinando, assim, a lei n. 8.625/93 com a de n. 8.429/92, deduz-se que a ação civil pública também consiste um importante veículo no combate à improbidade administrativa. De fato, este segundo diploma legal concede legitimidade ao Ministério Público para promover a responsabilização de agentes públicos nos casos de atos por eles cometidos que importem enriquecimento ilícito, causem prejuízo ao erário e/ou atentem contra os princípios da Administração.
Uma sociedade que luta pela efetivação de uma democracia participativa, em que os agentes públicos têm o dever jurídico de bem administrar[36] em função do interesse público, deve fiscalizar e responsabilizar aqueles que não cumprem o ordenamento jurídico. A figura do “soberano” ilimitado e irresponsável destoa do nosso contexto jurídico-político. Eis a importância, então, da via judicial para que o controle dos atos administrativos se torne viável. A jurisprudência já firmou entendimento que “ao Ministério Público é reconhecida legitimação ativa para, por via de ação civil pública, proteger os danos cometidos contra o patrimônio público por meio de ações ilícitas dos agentes públicos”[37]. No mesmo sentido, é pacífico o posicionamento de que “o MP é parte legítima para propor ação civil pública contendo pretensão do erário público ser ressarcido por danos sofridos pela malversação de verbas destinadas a atendimento de necessidades da sociedade”[38] etc.
Para Fábio Medina Osório (1999, p. 14), já não fosse suficiente a moralidade administrativa, a lei n. 8.429/92 possui também vários dispositivos que permitem um controle da destinação do dinheiro público que tenha sido injetado na iniciativa privada. Essa mesma lei, ainda, pode levar à “responsabilização do agente político, desde que a atribuição decisória tenha sido realmente exercida com manifesto abuso de poder, injustificadas negligência e irresponsabilidade funcional”. (OSÓRIO, 1999, p.10)
“É de se referir, ab initio, que despesas legalmente estabelecidas e aprovadas pelos órgãos competentes, no âmbito de um critério de conveniência e oportunidade, poderão atentar frontalmente contra exigências decorrentes do interesse público primário da sociedade, mostrando-se imorais do ponto de vista do direito constitucional-administrativo”. (OSÓRIO, 1997, p. 143)
Em relação a esse posicionamento de Fábio Medina Osório, cumpre trazer o exemplo de Rodolfo de Camargo Mancuso (2002, p. 767). O autor figura a hipótese de que, numa pequena cidade, com deficiências na área da educação e do saneamento básico, resolva a Administração, realizando prévia concorrência segundo os parâmetros legais, construir obra de mero embelezamento. Naturalmente, apesar da legalidade do ato, este atenta contra os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da moralidade administrativa. Caberia, no exemplo figurado, ação popular (ou ação civil pública)? Na linha conceitual mais progressiva de Mancuso, “onde os atos emanados dos três Poderes, para terem validade e legitimidade, têm de vir respaldados por todo um contexto jurídico-social, dominado pela nota da efetividade”, a resposta deve ser positiva[39]. No entanto, a visão jurisprudencial ainda dominante assevera a impossibilidade do juiz de substituir-se à Administração no exercício do poder discricionário. Somente o Poder Executivo poderá verificar a conveniência e a oportunidade dos atos administrativos[40], inclusive na hipótese do exemplo acima citado.
3.1. Legitimação ativa e passiva
Em se analisando a legitimação para o ajuizamento da ação civil pública, verifica-se que a mesma não se iguala à da ação popular. Quanto ao pólo passivo, para a proposição desta última, a Administração Pública deve necessariamente estar envolvida, de alguma forma, com o ato impugnado (art. 6° da lei 4.717/65). Em relação à primeira, Hugo Nigro Mazzili (1995, p.281) afirma que qualquer pessoa, física ou jurídica, pode ser parte passiva. Tanto o particular como o Estado podem causar danos aos interesses tutelados pela lei da ação civil pública, assim como pode “ser legitimado passivo quem quer que tivesse o dever jurídico de evitar a lesão”.
Em se tratando do pólo ativo, somente o cidadão, na ação popular, mostra-se autorizado para pleitear o exercício da função jurisdicional (art. 5°, LXXIII da CF/88). Na ação civil pública, reza o art. 5º da Lei nº 7.347 que:
Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007).
I - o Ministério Público; (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007).
II - a Defensoria Pública; (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007).
III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).
IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).
V - a associação que, concomitantemente: (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. (Redação dada pela Lei nº 13.004, de 2014)
§ 1º O Ministério Público, se não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente como fiscal da lei.
§ 2º Fica facultado ao Poder Público e a outras associações legitimadas nos termos deste artigo habilitar-se como litisconsortes de qualquer das partes.
§ 3° Em caso de desistência infundada ou abandono da ação por associação legitimada, o Ministério Público ou outro legitimado assumirá a titularidade ativa. (Redação dada pela Lei nº 8.078, de 1990)
§ 4.° O requisito da pré-constituição poderá ser dispensado pelo juiz, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido. (Incluído pela Lei nª 8.078, de 11.9.1990)
§ 5.° Admitir-se-á o litisconsórcio facultativo entre os Ministérios Públicos da União, do Distrito Federal e dos Estados na defesa dos interesses e direitos de que cuida esta lei. (Incluído pela Lei nª 8.078, de 11.9.1990) (Vide Mensagem de veto)
§ 6° Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial. (Incluído pela Lei nª 8.078, de 11.9.1990) (Vide Mensagem de veto)
Enquanto na ação popular o exercício da cidadania consubstancia-se na atuação do cidadão litigando pela defesa do patrimônio público lato sensu (o contido no art. 5°, LXXIII da CF/88), através da ação civil pública abre-se espaço à participação não mais do indivíduo isolado, mas do cidadão organizado.
Liszt Vieira (1996, p.117-120) assevera que a organização da sociedade em associações voluntárias e autônomas em relação ao Mercado (que visa ao lucro) e ao Estado (que luta pelo poder político) trata-se de um fenômeno recente. Essas associações integram o que se passou a denominar de sociedade civil. O ressurgimento da mesma no cenário teórico e político ocorreu nos anos 80, após o advento da crise do Welfare State (Estado da previdência social), que trouxe consigo a necessidade de um “terceiro caminho” (a sociedade civil) para enfrentar a crise econômica, social e ambiental.
Segundo o entendimento de Barroso (2001, p.129-130), a crise do autoritarismo na política brasileira ensejou o “surgimento de una nova força política, difusa, atomizada, organizada celularmente, mas importantíssima: a sociedade civil”. A mesma atua fora das relações de poder próprias das instituições governamentais, através de organismos como:
“a Ordem dos Advogados e algumas entidades científicas e religiosas (…), associações profissionais, as comunidades eclesiais de base, os sindicatos revitalizados, os movimentos de moradores de um determinado distrito ou bairro, de negros, de mulheres, de preservação do meio ambiente, de mutuários do sistema financeiro de habitação etc., sintetizando interesses gerais ou reivindicações de minorias. Mais recentemente, têm-se multiplicado as organizações não-governamentais (ONGs)”. (BARROSO, 2001, p.130)
Para que qualquer uma dessas associações mova ações civis públicas, a lei determina, como requisito, que as mesmas estejam constituídas há pelo menos um ano, nos termos da lei civil, e que incluam entre suas finalidades institucionais a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. O requisito da pré-constituição, no entanto, “poderá ser dispensado pelo juiz, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido”. (art. 5°, § 4°)
A participação[41] destas associações no processo democrático, através do Poder Judiciário, demonstra-se de grande valia na nossa sociedade. Com a promulgação da lei n. 7.347/85, abriu-se espaço para que as mesmas possam defender em juízo relevantes interesses difusos, como os relacionados aos consumidores, ao meio ambiente e ao patrimônio cultural lato sensu.
Como já analisado anteriormente, existem vários motivos que impedem a participação do cidadão no processo democrático via o Judiciário. Essas dificuldades, por sua vez, podem não representar um impeditivo para a defesa de interesses metaindividuais se tal tutela for pleiteada por associações ou formas de organizações sociais.
Estas organizações não-governamentais, como nos atesta Antônio Herman Benjamin (1995, p.130-133), representam interesses e direitos socialmente fragmentados. Elas detêm – ou visam atingir – um poder de controle e de fiscalização sobre a atuação estatal na medida em que são “politicamente respeitada[s] e socialmente prestigiada[s]; não precisa[m] temer as represálias e discriminações punitivas a que está irremediavelmente exposto o indivíduo. Isolado, este facilmente será esmagado(…)” (BENJAMIN, 1995, p.133).
Tais características concernentes às associações garantem uma maior igualdade de condições econômico-políticas entre as mesmas e os possíveis adversários em uma eventual relação jurídico processual. Aliás, quando se trata de lesão ao patrimônio cultural, ao meio ambiente ou a outros interesses difusos, geralmente não se associa a ideia de violador a um simples indivíduo exercente atividade econômica de pouco reflexo social. Como regra, resultam figurar no pólo passivo de ações que visam anular atos lesivos a direitos pluriindividuais as grandes empresas ou, não raro, o próprio Poder Público. Naturalmente, assim como sintetiza Cappelletti (1988, p. 21-26), a grande disparidade de recursos financeiros entre as partes, o fato de provavelmente a demanda judicial envolver, como réu, algum litigante “habitual” – ou ainda algum ente político – dificulta ou até mesmo impede o acesso à Justiça pelo cidadão individualmente considerado. Eis, então, a importância das associações não-governamentais (ONGs) de pleitearem em juízo a tutela de interesses coletivos, dada a relutância – de certa forma justificável – do cidadão em agir processualmente ou, ainda, pela impossibilidade dessa atuação[42].
A participação judicial dos organismos da sociedade civil, nesse sentido, é considerada por Barroso (2001, p.131-132) como meio de fazer-se respeitar os preceitos constitucionais e os diplomas legais. O papel desempenhado por esse tipo de atuação demonstra-se imprescindível, pois não há efetividade possível da Constituição, mormente em relação à sua parte dogmática, sem uma cidadania participativa.
“No nosso País, contudo, as ONGs ( associações, fundações, etc), com raras exceções, tendem a ser fracas, quer em número de associados, quer em recursos ou profissionalismo. Também não seria para menos, num Estado dominado, por boa parte de sua história, por regimes ditatoriais ou autoritários e, por isso mesmo, desacostumado à organização dos cidadãos” (BENJAMIN, 1995, p. 132).
Devido a essas constatações, torna-se fundamental a percepção de que, ao lado das associações, o Ministério Público e a Defensoria Pública também detêm legitimação para tutelar judicialmente os direitos difusos e coletivos, além da defesa do interesse público. Na visão de Mancuso (1988, p.193), o Ministério Público também é considerado como integrante do povo lato sensu, ao lado dos cidadãos e das associações. Como seu representante legal, ao MP, por expressa disposição constitucional (art. 127, caput e art. 129, III) e infraconstitucional (art.25 da lei n. 8.625/93) compete tutelar em juízo os interesses públicos, difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Tal incumbência não desmerece a importância do ajuizamento das ações populares e civis públicas pelos cidadãos e pelas associações, respectivamente. Ambas as ações, nesse sentido, não podem perder o seu valor em razão de servirem como instrumento para o exercício direto da cidadania. Demonstra-se ser através delas que o cidadão – individualmente ou em conjunto – pleiteia a tutela de interesses que não concernem somente a ele, de modo individual, mas são afetos à sociedade em geral. A legitimação do Ministério Público e da Defensoria Pública na propositura das ações civis públicas somente possibilita uma melhor tutela de direitos coletivos, além de comportar a possibilidade da atuação indireta do povo na defesa desses mesmos direitos. O povo, por este caminho, pode – ou, numa visão mais crítica, deve – noticiar ao seu representante legal (as violações ao direitos difusos e coletivos que vier a ter conhecimento) para que este promova a devida responsabilidade dos agentes culpáveis[43].
3.2. A sentença
Quando se refere à representação dos interesses difusos, Cappelletti (1988, p.49-50) afirma que a impossibilidade da participação no processo de todos os materialmente envolvidos sugere a necessidade de um “representante adequado” em nome de toda a coletividade [seja ele o cidadão, isolado ou em conjunto, ou o Ministério Público]. Naturalmente, como age na posição de “representante”, de modo que todos os envolvidos não precisem ser individualmente citados, a sentença deve obrigar a todos os membros do grupo.
“A sentença civil fará coisa julgada[44] ‘erga omnes’, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.” (art. 16 da lei n. 7.347/85)
Dessa forma, rende-se conta de que a lei da ação civil pública adotou a autoridade da coisa julgada “secundum eventum litis” que já havia sido acolhida pela ação popular. Além disso, os efeitos da sentença não se limitam somente “às partes entre as quais [a sentença] é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros”(art. 472 do CPC). Esse dispositivo processual mostra-se aplicável em litígios de ordem individual, em que somente as partes que controvertem têm interesse sobre o bem ou direito objeto da demanda. Em sede de ação civil pública, no entanto, o que se visa proteger são direitos supraindividuais, cuja defesa interessa diretamente não só a quem propõe a ação, mas também àqueles em favor dos quais a demanda foi ajuizada. É nesse sentido que os limites subjetivos da coisa julgada processam-se “nos limites da competência territorial do órgão prolator”(art. 16)[45], atingindo, dessa forma, muito mais pessoas do que tão-somente as partes processuais.
Conforme o já reiterado ao longo deste texto, o objeto mediato da ação civil pública consiste na tutela de interesses públicos, difusos, coletivos e individuais homogêneos. Essa tutela poder ser alcançada mediante sentenças de natureza declaratória, constitutiva ou condenatória, de acordo com a pretensão que tiver sido deduzida na petição inicial.[46] “A maior parte das decisões, no entanto, terá natureza condenatória” (BARROSO, 2001, p. 235). E, ao nosso parecer, é natural que assim seja.
Geralmente, ao se propor uma ação civil pública, ter-se-á já a configuração do dano ao bem coletivo. A própria lei, no seu art. 1°, reza que as suas disposições regem as “ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais”. Mais adiante, no art. 3°, afirma que “poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer”. Em relação a esse último dispositivo, o que se pretende realmente, ao se ajuizar a ação tendo por fundamento fático a lesividade a bem supraindividual, é o retorno ao status quo ante, ou seja, a reparação direta do dano ocasionado. “(…) o objeto da ação civil pública é voltado para a tutela in specie [grifo do autor] de um interesse difuso, e não para uma condenação pecuniária” (MANCUSO, 1989, p.135).
Não foi sem motivo, novamente, que a lei previu a possibilidade de determinação, pelo juiz, do “cumprimento da atividade devida ou [d]a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica [às expensas do devedor], ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de requerimento do autor”(art. 11)[47]. Somente em não se demonstrando possível o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, haverá condenação em dinheiro, sendo que “a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo[48] gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais (…)”(art. 13)[49]
A tutela cautelar também pode ser pleiteada em sede de ação civil pública (art. 12), podendo conter um comando de facere ou non facere que vise evitar danos ao interesse difuso. Conforme descreve Mancuso (1989, p.108-118), a mesma pode ser obtida mediante liminares pleiteadas na ação cautelar ou no bojo da própria ação civil pública.
4. Notas conclusivas
Como muito bem explicita Oscar Vilhena Vieira (1995, p.189-190), o conceito de democracia não se limita a um regime em que a maioria é chamada a participar das escolhas políticas, “mas também [é] um regime onde os cidadãos têm seus direitos e liberdades assegurados através de garantias jurídicas efetivas”. O Estado de Direito não pode ser tão somente uma “construção legal”, “independentemente de seu conteúdo”, mas deve ser um Estado democrático, “sustentado por uma sólida ideia de direitos”; direitos, estes, aos quais se associa um “conteúdo de justiça”.
Mas de nada adianta a existência de leis “justas” e de garantias jurídicas que assegurem direitos e liberdades se os cidadãos delas não usufruem. Não basta, nesse sentido, a mera configuração de um Estado Democrático de Direito. O que se prima é a efetivação de uma democracia participativa em um Estado de Direito.
A nossa atual Constituição, em seu artigo 1°, § único, institucionalizou a participação direta e pessoal da cidadania nos atos de Governo, ao pronunciar que “todo o poder emana do povo, que o exerce indiretamente, por representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição.”
Apesar dessa intervenção do povo nas questões relacionadas à res publica geralmente realizar-se através do Poder Legislativo e do Executivo, consideramos que o exercício da cidadania também pode ser realizado mediante o Judiciário.
É concorde a doutrina contemporânea ao asseverar que o processo não pode ser mais concebido como um instrumento neutral e estritamente técnico. Faz-se necessário afirmar a sua dimensão política e suas implicações econômicas. Denunciar tal natureza processual demonstra-se importante quando se associa a noção de democracia àquela de processo. Em outras palavras, mediante a utilização das vias judiciais, o povo lato sensu (os cidadãos, as associações, o MP como seu representante institucional e a Defensoria Pública) poderá exercer a sua cidadania controlando a conduta do Estado, defendendo o patrimônio público e outros interesses supraindividuais.
É com este propósito que versamos nossa análise sobre dois instrumentos cívico-processuais: a ação popular e a ação civil pública.
Tais ferramentas jurídicas possibilitam a participação do povo na proteção de direitos coletivos como forma de exercício da cidadania. Cidadania, esta, que se encontra intimamente ligada à ideia que se tem sobre democracia participativa. Cidadão, nesse sentido, é aquele que se envolve com a res publica e que se empenha na defesa de interesses metaindividuais. O autor popular, por exemplo, faz valer um interesse que não lhe pertence, ut singulis, mas à coletividade. Porém, ao defender “a coisa do povo”, o cidadão está lutando por um direito que também é seu. Isso porque a todos, individualmente, interessa serem cidadãos de um Estado em que imperem e encontrem efetividade os princípios de uma boa Administração; de um Estado em que se respeite o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural. Mas para que um Estado assim se concretize é necessária a ação do cidadão através de todos os canais e instrumentos disponíveis, inclusive, se for o caso, da via judicial.
Participar de um Estado Democrático de Direito, assim, significa controlar a atividade da Administração Pública que, como o próprio nome confirma, nada mais é do que mera administradora do patrimônio público. Significa, ainda, lutar por um meio ambiente ecologicamente equilibrado e fazer preservar os bens de natureza histórica e cultural do país.
Ademais, uma das formas de exercício da cidadania num mundo onde as fronteiras entre o espaço público e o privado tendem a esmaecer, consiste na adesão do cidadão a organizações não-governamentais, visto que, através delas, é possível à sociedade civil organizada influir na gestão de interesses públicos ou difusos, através, por exemplo, do instrumento da ação civil pública.
Em certos casos, a mera notícia à instituição do Ministério Público da ocorrência de lesão a direitos metaindividuais, de que o indivíduo venha a tomar ciência, também é um modo de praticar a cidadania.
Pelo exposto, o nosso ordenamento jurídico viabilizou o acesso aos tribunais de demandas metaindividuais através da ação popular e da ação civil pública, entre outras. Agora, impende ao cidadão fazer uso dessas ferramentas, de modo a realmente transformar o processo em um instrumento político de participação.
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6. Referências de acórdãos judiciais
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1ª Turma. Recurso Especial n. 185835/RJ. Relator: Min. Francisco Falcão. Diário da Justiça, Brasília, 11 jun. 2001.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3° Turma. Recurso Especial n. 255947/SP. Relator: Min. Carlos Alberto Menezes Direito. Diário da Justiça, Brasília, 08 out. 2001.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3° Turma. Recurso Especial n. 208068/SC. Relator: Min. Nancy Andrighi. Diário da Justiça, Brasília, 08 out. 2001.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4° Turma. Recurso Especial n. 97181/MT. Relator: Min. Aldir Passarinho Junior. Diário da Justiça, Brasília, 19 fev. 2001.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1° Turma. Recurso Especial n. 166848/MG. Relator: Min. José Delgado. Diário da Justiça, Brasília, 03 ago.1998.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1° Turma. Recurso Especial n. 132107/MG. Relator: Min. José Delgado. Diário da Justiça, Brasília, 16 mar.1998.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 2° Turma. Recurso Especial n. 302192/RJ. Relator: Min. Ruy Rosado de Aguiar. Diário da Justiça, Brasília, 25 jun. 2001.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4° Turma. Recurso Especial n. 198807/SP. Relator: Min. Ruy Rosado de Aguiar. Diário da Justiça, Brasília, 19 ab. 2001.
[1] “A Grécia, como se sabe, mormente Atenas, foi o berço da democracia, que era exercida por participação direta [grifo do autor] dos cidadãos. Estes, reunidos na Ágora, deliberavam sobre as questões de Estado, fazendo de sua assembléia ‘um poder concentrado no exercício da plena soberania legislativa, executiva e judicial’” (BARROSO, 2001, p. 134).
[2] Confrontar com Elival da Silva Ramos (1991, p. 31-32): “O sistema político, proposto pela doutrina liberal para suceder ao Absolutismo monárquico, cujo critério de legitimidade repousava no chamado ‘direito divino dos Reis’, foi o democrático, baseado no princípio da soberania popular, de acordo com o qual o governo deve ser instituído pela vontade popular, por ela comandado e dirigido ao bem comum.”
[3] “Como assinalou Benjamin Constant (…), na civilização greco-romana só se consideravam livres os homens que participavam diretamente da gestão da coisa pública (…). Mas esses cidadãos, soberanos na esfera política, eram súditos obedientes da coletividade em sua vida privada. No mundo moderno [de matriz liberal], ao contrário, a liberdade consiste não em participar da gestão da coisa pública, mas em não ser molestado abusivamente pelo Estado na vida privada.” (COMPARATO, p. 25)
[4] Sobre o assunto, ver Elival da Silva Ramos (1991, p. 40): “Entra pelos olhos a vinculação entre a teoria da soberania nacional e o voto censitário (participação política limitada em função da renda) e as demais técnicas limitadoras da participação popular na Democracia Liberal.”
[5] Sobre o argumento, verificar Elival da Silva Ramos (1991, p. 46-53) e José Afonso da Silva (1991, p.102)
[6] Confrontar com Waldemir Mariz de Oliveira Jr (1984, p. 9-10).
[7] Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (1992, p. 45), “a Administração Pública está sujeita ao ‘dever de boa administração’. Este, como quer Guido Falzone, é mais que um dever moral ou de ciência da administração; é um dever jurídico”.
[8] “A configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmnete os conceito de Estado Democrático e Estado de Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera [grifo meu] na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo.” (SILVA, 1991, p. 105)
[9] “As atividades sociais e econômicas podem produzir prejuízos a um elevado número de pessoas, atingindo os direitos e interesses, em muitos casos, de grupos, classes ou categorias de indivíduos. Esses direitos e interesses não são mais de caráter simplesmente individual, mas, pelo contrário, apresentam-se como de natureza coletiva, gerando, se desrepeitados ou violados, danos igualmente coletivos.” (OLIVEIRA, 1984, p. 9-10)
[10] Parágrafo com redação determinada pela Lei n.6513, de 20-12-1977.
[11] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ações coletivas na Constituição Federal de 1988. RePro 61/192.
[12] Prefácio da obra “Ação popular: proteção do erário público; do patrimônio cultural e natural; e do meio ambiente” de Rodolfo de Camargo Mancuso (1994).
[13] Confrontar com Rodolfo de Camargo Mancuso (1994, p. 105-106).
[14] SILVA, José Afonso da. Ação popular constitucional. 1968, p. 195.
[15] STJ, 1ª T, REsp. 185835/RJ, rel. Min. Francisco Falcão, DJ 11.06.2001.
[16] Ainda, sobre o argumento, ver Luís Roberto Barroso (2001, p. 209).
[17] Em relação ao assunto, procurar por Ronaldo Porto Macedo Júnior (2002, p. 806).
[18] Ambas rezam que o ato deve ser lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, mas não indicam a origem do ato.
[19] Mancuso nos fornece exemplos a respeito (1994, p. 113): caso a Administração forme a convicção de que o afirmado pelo autor corresponde à verdade, lhe será mais apropriado atuar ao lado do cidadão. Outras vezes, todavia, o autor popular poderá propor a ação sem o menor fundamento, ou talvez, o seu objetivo principal consistirá na satisfação de um interesse meramente individual mais do que de ordem pública. Nessa situação, caberia à Administração contestar o ato impugnado.
[20] Sobre o assunto, confrontar Waldemar Mariz de Oliveira Jr. (1984, p. 9-10) e painel de debates (1984, p. 154).
[21] SALLES, C. A. de. “Existe um processo civil de interesse público? Revista de Direito, vol. I, n. 2, São Paulo, Universidade Ibirapuera, nov. 1999, p. 31-32.
[22] Sobre o argumento, ver Mauro Cappelletti (1988, p. 21-26).
[23] Em relação ao assunto, assim se manifestou Fábio Konder Comparato (1992, p. 25): “No mundo moderno [liberal] (…) a liberdade consiste não em participar da gestão da coisa pública, mas em não ser molestado abusivamente pelo Estado na vida privada”. Ver ainda Celso Ribeiro Bastos (2001, p. 12): “(…) o Estado não deveria imiscuir-se nos campos econômico e social”.
[24] Parafraseando Elival da Silva Ramos (1994, p. 51): “na Democracia Social o Poder dos Poderes passa a ser o Executivo”.
[25] Essa definição de povo lato sensu foi utilizada por Mancuso (1988, p. 193).
[26] Maiores informações sobre o porquê da terminologia “ação civil pública” pode ser encontrado em José Marcelo Menezes Vigliar (2002, p. 441-447).
[27] A ação civil pública em defesa do meio ambiente, Ação civil pública (coord.), Édis Milaré, São Paulo, RT, 1995, p. 235.
[28] Conceito já definido anteriormente pela autora em Curso de direito administrativo, 4. ed., rev., ampl. e atual. com as Emendas 19 e 20 de 1988, São Paulo, Malheiros, 2000, p. 509.
[29] A análise da exclusão dos bens dominicais como objeto de ação civil pública se encontra explicitada em Paulo Salvador Frontini ( 2002, p. 735-736).
[30] Lei n. 7.853/89, que dispões sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração, (…)
[31] A proteção aos interesses individuais, difusos e coletivos de crianças e adolescentes também podem ser objeto da ação, em correspondência ao art. 201, V e arts. 208 a 224 do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90).
[32] Lei n. 7.913/89.
[33] A lei n. 8.429/92, no seu art. 21, também afirma que “a ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada (…)” em caso de atos de improbidade administrativa praticados por quem a lei determina. A ação principal corresponde à ação civil pública.
[34] Sobre o assunto, ver também José Marcelo Menezes Vigliar (2002, p. 450): “Os interesses, na essência, são divisíveis e decorrem de uma mesma origem (…); cada uma pode buscar, via tutela jurisdicinal do Estado, a reparação de seus prejuízos (…); contudo, uma única demanda, que trate essses interesses como se coletivos fossem (leia-se: como se indivisíveis fossem), viabiliza-se também em nome da economia processual e para que o Estado, agora agindo pelo Judiciário, dê uma mesma e idêntica solução aos conflitos que nasceram da mesma origem. É justamente o que ocorre com os interesses individuais homogêneos”.
[35]Este tem sido o entendimento predominante no Superior Tribunal de Justiça: “(…)Tem o Ministério Público, na forma de vários precedentes da Corte, legitimidade ativa para defender interesses individuais homogêneos, presente o relevante interesse social, assim, no caso, o direito à aquisição de casa própria, obstado pela administração de cooperativa habitacional em detrimento dos cooperados, como apurado em inquérito civil” (STJ, 3° T, REsp. 255947/SP, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 08.10.2001); “O Ministério Público detém legitimidade para a propositura de ação civil pública com o fito de obter pronunciamento judicial acerca da legalidade de cláusulas constantes de contrato de plano de saúde. A legitimação extraordinária justifica-se pelo relevante interesse social e pela importância do bem jurídico a ser tutelado” (STJ, 3° T, REsp. 208068/SC, rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 08.10.2001); “Pacífica na jurisprudência desta Corte a orientação de que o Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa de interesses coletivos, visando a coibir aumento abusivo de mensalidade escolar” (STJ, 4°T, REsp. 97181/MT, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ 19.02.2001).
[36] Ver Celso Antônio Bandeira de Mello (1992, p.45)
[37] STJ, 1°T, REsp. 166848/MG, rel. Min. José Delgado, DJ 03.08.1998.
[38] STJ, 1°T, REsp. 132107/MG, rel. Min. José Delgado, DJ 16.03.1998.
[39] Na visão de Luciano Ferraz (1999, p. 103) “discricionariedade não significa livre arbítrio, mas melhor escolha”. Complementando com as palavras de Mancuso (2002, p. 795), que cita jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo (Apel. 61.146-5/0, 2º Câm, de Direito Público, rel. Des. Lineu Peinadom j. 22.06.1999): “existindo norma constitucional determinando seja prestado o atendimento social, não há que se falar em opção da Administração, pois a liberdade do administrador cessa ante o texto expresso de lei”. Nesse sentido, ainda, posiciona-se Andreas Krell (2002, p. 104): “O Ministério Público deve mediar conflitos surgidos na sociedade que anseia pela efetiva implementação dos direitos sociais; as ações por ele propostas exigem do Judiciário decisões que transcendem à resolução de conflitos individuais, sendo discutido também o fenômeno da ‘politização’do órgão. Nessa visão, a ação civil pública vem se tornando o meio processual mais importante para a juridicização de demandas coletivas pela realização de direitos assegurados pela ordem social constitucional”.
[40] “O juiz não pode substituir a Administração Pública no exercício do poder discricionário. Assim, fica a cargo do Executivo a verificação da conveniência e da oportunidade de serem realizados atos de administração, tais como, a compra de ambulâncias e de obras de reforma de hospital público”. (STJ, 2°T, AGREsp. 252083/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 26.03.2001)
[41] “O STJ tem admitido a possiblilidade de uma entidade criada para a proteção de interesses ou direitos individuais homogêneos promover ação com o objetivo de efetivar essa possibilidade, a benefício tanto de seus associados, como de quem não o sendo encontra-se na mesma situação descrita na petição inicial”(STJ, 2º T, REsp. 302192/RJ, rel. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 25.06.2001); “O IDEC tem legitimidade para promover ação civil pública para defesa dos interesses de seus consorciados, aplicadores em cadernetas de poupança, para definição dos índices de correção dos saldos”. (STJ, 4°T, REsp. 198807/SP, rel. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 19.04.2001)
[42] A ação popular pode ser proposta somente por atos praticados pela Administração Pública (art 6° da lei n. 4.717/65.
[43] Veja-se o art. 6° da lei n. 7347/85: “Qualquer pessoa poderá e o servidor público deverá provocar a iniciativa do Ministério Público, ministrando-lhe informações sobre fatos que constituam objeto da ação civil e indicando-lhe os elementos de convicção”. Verifique-se também o teor do art. 7° da mesma lei: “se, no exercício de suas funções, os juízes e tribunais tiverem conhecimento de fatos que possam ensejar a propositura da ação civil, remeterão peças ao Ministério Público para as providências cabíveis”.
[44]Veja-se o art. 18 da LAP e art. 103, § 3° do CDC.
[45] Nova redação ao dispositivo dada pela Lei n. 9.494/97
[46] Sobre as ações do processo de conhecimento, ver Ovídio Batista (1987, p.117-148).
[47] Olhar o art 84 do CDC.
[48] Sobre este “fundo”, consulte-se Ronaldo Porto Macedo Júnior (2002, p. 799-827).
[49] Em relação à condenação por danos causados a interesses individuais homogêneos, confrontar com o art. 95 ao art. 100 do CDC.
Procuradora Federal. Mestre em Direito pela PUC/RS.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FACCHINI, Nicole Mazzoleni. Democracia participativa através da ação popular e da ação civil pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 out 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41287/democracia-participativa-atraves-da-acao-popular-e-da-acao-civil-publica. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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