Resumo: O presente artigo analisa o fenômeno da abstrativização do controle concreto de constitucionalidade, no sentido de que a decisão deve apresentar efeitos erga omnes, independentemente da adoção do procedimento previsto no artigo 52, X, da Constituição Federal de 1988.
Palavras chave: controle concreto, abstrativização, mutação constitucional, Senado Federal.
Sumário: 1. Introdução. 2. A objetivação do controle concreto de constitucionalidade. 3. Conclusões. 4. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O controle de constitucionalidade é o mecanismo que analisa a adequação vertical das normas infraconstitucionais com a Constituição, podendo ser exercido de forma incidental e principal.
Na via incidental ocorre o controle concreto, pois a aferição da constitucionalidade é feita incidentalmente à questão principal, ou seja, a discussão sobre a constitucionalidade da norma é o fundamento (causa de pedir) da questão principal a ser solucionada. Por outro lado, na forma principal é exercido controle abstrato, visto que não é feita análise de um caso concreto, mas somente o estudo da compatibilidade formal e material da norma frente à Constituição.
Como o controle incidental de constitucionalidade visa à solução de um caso concreto entre partes determinadas, a doutrina era unânime no sentido de que a decisão produzia efeitos inter partes, porquanto, consoante o art. 472, do Código de Processo Civil, “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros”.
Apesar da regra geral de que a sentença produz efeitos somente para as partes envolvidas, seria possível a atribuição de eficácia erga omnes à decisão decorrente do exercício de controle concreto de constitucionalidade, desde que fosse seguido o rito constante do art. 52, X, da Constituição da República de 1988.
Segundo Pedro Lenza[1]:
Declarada inconstitucional a lei pelo STF, no controle difuso, desde que tal decisão seja definitiva e deliberada pela maioria absoluta do pleno do tribunal (art. 97 da CF/88), o art. 178 do Regimento Interno do STF (RISTF) estabelece que será feita a comunicação, logo após a decisão, à autoridade ou órgão interessado, bem como, depois do trânsito em julgado, ao Senado Federal, para os efeitos do art. 52, da CF/88.
O art. 52, X, da CF/88, por sua vez, estabelece ser competência privativa do Senado Federal, mediante o instrumento da resolução, suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF.
Recentemente, surgiu entendimento defendendo a atribuição automática de efeitos erga omnes às decisões emanadas do controle concreto de constitucionalidade, uma vez que teria ocorrido mutação constitucional do artigo 52, X, da Carta Magna, sendo a resolução do Senado Federal emitida para simples efeito de publicidade da decisão, e não mais para concessão de efeitos para todas as pessoas.
2. A objetivação do controle concreto de constitucionalidade
Em que pese a existência de vários dispositivos normativos em sentido contrário, verifica-se o surgimento de teoria que defende a ocorrência do fenômeno da abstrativização do controle concreto de constitucionalidade, a fim de reconhecer a automática irradiação de efeitos gerais (eficácia erga omnes) nas decisões exaradas em sede de controle difuso de constitucionalidade, independentemente da expedição de Resolução por parte do Senado Federal, conforme determina o art. 52, X, da Constituição Federal de 1988.
Como no controle concreto a arguição da inconstitucionalidade é desenvolvida como questão prejudicial ao processo, prevalece o entendimento de que a decisão fica restrita às partes envolvidas (eficácia inter partes), salvo se for adotado o procedimento previsto no art. 52, X, da Constituição da República de 1988.
Noutra vertente, como o controle abstrato destina-se à verificação da constitucionalidade da lei em tese, a eficácia de sua decisão é erga omnes, porquanto a decisão sobre a constitucionalidade não é feita tomando por base um caso concreto envolvendo determinados indivíduos.
Contudo, para evitar a necessidade de ajuizamento de diversas ações individuais por parte de cada um dos lesados, a Carta Magna de 1988 prevê no artigo 52, X, que, após a decisão exarada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em sede de controle concreto transitar em julgado, deve ser feita sua comunicação ao Senado Federal para editar resolução que suspenda a execução, no todo ou em parte, da lei declarada inconstitucional.
Assim, com a aplicação do procedimento estampado no artigo 52, X, do Texto Constitucional, a decisão proferida em sede de controle concreto de constitucionalidade, que por sua natureza seria capaz de produzir apenas efeitos entre as partes envolvidas, passa a ser dotada de eficácia erga omnes.
Ultimamente, parte da doutrina, com destaque para Gilmar Mendes, defende a ocorrência de mutação constitucional do art. 52, X, da Constituição da República de 1988, com a consequente ocorrência do fenômeno da abstrativização do controle concreto, que consiste na automática produção de efeitos erga omnes nas decisões produzidas pelo STF em sede de controle concreto. Para isso, aduz que houve modificação da norma constitucional sem alteração do texto, para que a fórmula relativa à suspensão da execução da lei pelo Senado Federal, por meio de publicação de Resolução no Diário do Congresso, tenha apenas efeito de publicidade, não mais competindo a essa casa legislativa a atribuição de efeitos gerais vinculantes às decisões judiciais produzidas em controle concreto de constitucionalidade.
Para essa teoria, em razão da força normativa da Constituição, do princípio da supremacia da Constituição e da existência do instituto da súmula vinculante[2], quando o STF decide um caso em controle concreto de constitucionalidade, a decisão é dotada, automática e necessariamente, de eficácia erga omnes, vinculando além das partes envolvidas.
Nesse sentido, destacam-se os ensinamentos de Pedro Lenza[3], in verbis:
Como indicado no Inf. 454/STF, o Ministro Gilmar Mendes “... reputou ser legítimo entender que, atualmente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado há de ter simples efeito de publicidade, ou seja, se o STF, em sede de controle incidental, declarar, definitivamente, que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação àquela Casa legislativa para que publique a decisão no Diário do Congresso. (...)
Por oportuno, vale destacar parte da decisão proferida por Gilmar Mendes no julgamento da Reclamação 4.335-5/AC:
(...)
E ela também demonstra que, por razões de ordem pragmática, a jurisprudência e a legislação têm consolidado fórmulas que retiram do instituto da “suspensão da execução da lei pelo Senado Federal” significado substancial ou de especial atribuição de efeitos gerais à decisão proferida no caso concreto.
Como se vê, as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, acabam por ter eficácia que transcende o âmbito da decisão, o que indica que a própria Corte vem fazendo uma releitura do texto constante do art. 52, X, da Constituição de 1988, que, como já observado, reproduz disposição estabelecida, inicialmente, na Constituição de 1934 (art. 91, IV) e repetida nos textos de 1946 (art. 64) e de 1967/69 (art. 42, VIII).
(...)
De qualquer sorte, a natureza idêntica do controle de constitucionalidade, quanto às suas finalidades e aos procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso e concentrado, não mais parece legitimar a distinção quanto aos efeitos das decisões proferidas no controle direto e no controle incidental.
Somente essa nova compreensão parece apta a explicar o fato de o Tribunal ter passado a reconhecer efeitos gerais à decisão proferida em sede de controle incidental, independentemente da intervenção do Senado. O mesmo há de se dizer das várias decisões legislativas que reconhecem efeito transcendente às decisões do STF tomadas em sede de controle difuso.
(...)
É possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. Valendo-nos dos subsídios da doutrina constitucional a propósito da mutação constitucional, poder-se-ia cogitar aqui de uma autêntica reforma da Constituição sem expressa modificação do texto.
Em verdade, a aplicação que o Supremo Tribunal Federal vem conferindo ao disposto no art. 52, X, da CF indica que o referido instituto mereceu uma significativa reinterpretação a partir da Constituição de 1988.
Assim, parece legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa. Parece evidente ser essa a orientação implícita nas diversas decisões judiciais e legislativas acima referidas. Assim, o Senado não terá a faculdade de publicar ou não a decisão, uma vez que não se cuida de uma decisão substantiva, mas de simples dever de publicação, tal como reconhecido a outros órgãos políticos em alguns sistemas constitucionais (Constituição austríaca, art. 140,5 – publicação a cargo do Chanceler Federal, e Lei Orgânica da Corte Constitucional Alemã, art.31, (2), publicação a cargo do Ministro da Justiça). Tais decisões proferidas em processo de controle de normas são publicadas no Diário Oficial e têm força de lei (Gesetzeskraft) [Lei do Bundesverfassungsgericht, § 31, (2)]. Segundo Klaus Vogel, o § 31, II, da Lei Orgânica da Corte Constitucional alemã faz com que a força de lei alcance também as decisões confirmatórias de constitucionalidade. Essa ampliação somente se aplicaria, porém, ao dever de publicação, porque a lei não pode conferir efeito que a Constituição não prevê.
Portanto, a não-publicação, pelo Senado Federal, de Resolução que, nos termos do art. 52, X da Constituição, suspenderia a execução da lei declarada inconstitucional pelo STF, não terá o condão de impedir que a decisão do Supremo assuma a sua real eficácia jurídica.
Entrementes, em que pese a relevância da teoria da objetivação do controle concreto de constitucionalidade, que é condizente com a efetividade e celeridade processual, a maioria da doutrina não a adota, sendo majoritário o entendimento de que as decisões do controle concreto, mesmo as oriundas do STF em sede de recurso extraordinário, produzem apenas efeitos inter partes.
Ora, a invocação do surgimento do instituto da súmula vinculante não é fundamento idôneo à sustentação de que a mera declaração de inconstitucionalidade em sede de controle concreto seria capaz de produzir efeitos gerais, visto que a edição de súmula com efeitos vinculantes depende da existência de reiteradas decisões sobre matéria constitucional e da aprovação mediante decisão de dois terços dos seus membros, ao passo que a decisão do controle difuso depende apenas de deliberação da maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal.
Assim, como os requisitos para aprovação de súmula vinculante e para decisão de um caso de controle concreto de constitucionalidade são bem diferentes, aquela não pode ser utilizada como fundamento da tese da mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição de 1988.
3. Conclusões
A despeito da relevância da argumentação desenvolvida pelos defensores da objetivação do controle difuso de constitucionalidade, a ocorrência de efeitos erga omnes às decisões do controle concreto não é decorrência automática do julgamento do STF, porquanto continua em vigor o procedimento previsto no art. 52, X, da Constituição Federal, que exige a comunicação do Senado Federal para edição de resolução que suspenda a execução da lei declarada inconstitucional.
Além disso, não é possível sustentar a ocorrência de mutação constitucional do artigo 52, X, da Carta Magna de 1988, pelo surgimento do instituto da súmula vinculante, já que os requisitos para sua aprovação são mais rigorosos do que a simples declaração de inconstitucionalidade.
4. Referências bibliográficas
BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/l5869.htm>. Acesso em 13 de setembro de 2014.
______. Constituição Federal de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 13 de setembro de 2014.
______. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 4.335-5/AC, Relator Ministro Gilmar Mendes.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
STUMPF, Lívia Troglio. Efeitos amplificados ás decisões no controle concreto de constitucionalidade: o novo papel do Supremo Tribunal Federal na guarda da Constituição. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 5, n. 18, p. 105-138, abr./jun. 2011. Material da 1ª aula da Disciplina: Direito Constitucional, ministrada no Curso de Pós-Graduação Televirtual de Direito Público – Anhanguera-Uniderp/Rede LFG.
[1] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 150.
[2] O STF pode editar súmula com efeito vinculante e geral, independentemente da adoção do procedimento constante do art. 52, X, da Constituição Federal, o que enfraquece e restringe a atuação do Senado Federal na suspensão da execução de normas declaradas inconstitucionais.
[3] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 155.
Procurador Federal. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia/MG. Especializando em Direito Público pela Universidade Anhanguera-UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NUNES, Luís Henrique Assis. A tendência de abstrativização do controle concreto de constitucionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 out 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41310/a-tendencia-de-abstrativizacao-do-controle-concreto-de-constitucionalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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