RESUMO: Este estudo tem como objetivo analisar a eventual fungibilidade entre as tutelas de urgência, face às alterações promovidas pela Lei nº 10.444/2002, a qual acrescentou o parágrafo 7º ao Código de Processo Civil de 1973. O trabalho discutirá, também, se essa possível fungibilidade é de mão dupla, ou seja, interposta tanto uma quanto outra medida, ambas podem ser objeto de fungibilidade. Para tanto, apresentaremos a posição da doutrina e jurisprudência pátrias, acerca da matéria.
Palavras-Chave: Tutelas de Urgência, Artigo 273 do Código de Processo Civil, Fungibilidade.
1. INTRODUÇÃO
Com o advento do parágrafo 7º do artigo 273 do Código de Processo Civil, o qual foi acrescentado pela Lei nº 10.444/2002, foi preenchida uma celeuma até então existente no processo civil, consistente na interpretação sobre a possibilidade de fungibilidade entre as medidas cautelares e antecipatórias.
Isto considerando-se que tanto a doutrina quanto a jurisprudência pátrias eram até então vacilantes acerca de tal possibilidade.
Tratou-se à época de alteração bastante substancial na entrega da prestação jurisdicional.
Porque, agora, o operador do direito não precisará ter receio em requerer uma tutela em lugar de outra, uma vez que, conforme a novel redação do art. 273, § 7º, do Estatuto Processual Civil, fica autorizado ao órgão julgador conhecer e deferir a medida cautelar no caso do autor requerer a antecipação de tutela quando, na verdade, seria cabível a tutela cautelar, desde que, obviamente, estejam presentes os pressupostos legais e imprescindíveis para a concessão do provimento.
Assim, considerada a atualidade da matéria, a relevância prática aos operadores do direito, bem como a existência de diversas polêmicas envolvendo seus aspectos, é que teceremos algumas considerações a respeito do tema.
2. FUNGIBILIDADE ENTRE AS MEDIDAS DE URGÊNCIA
Fungibilidade significa, no conceito jurídico, a substituição de uma coisa por outra.[1]
Em nosso ordenamento jurídico, fala-se em fungibilidade recursal, princípio implícito no sistema processual brasileiro, já que o CPC vigente não traz expressamente em seu bojo a fungibilidade recursal, como o fazia o código de 1939.
Para a doutrina moderna, a fungibilidade decorre de outros princípios insertos no sistema jurídico, tais como a verdade real, amplo acesso à justiça, duplo grau de jurisdição.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello:
Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá harmônico.[2]
Em vista disso, a fungibilidade no sistema brasileiro decorreria do sistema como um todo, posto que a Constituição Federal é lei maior que se irradia sobre todo o sistema normativo.
E, relembrando que a finalidade das tutelas de urgência é assegurar o resultado útil do processo ou antecipar provimento que só seria obtido com o provimento final, faz-se mister ressaltar, como o fizeram Cristiano Bastos e Reinaldo Medeiros, os quais acertadamente consignaram que
[...] o mundo corre contra o tempo. E falar de tempo é falar das angústias humanas. E à medida que a sociedade evolui, é necessário encontrar soluções para aplacar ou diminuir essa angústia existencial, posto que as conquistas surgem e, com elas, as dificuldades do convívio social, as quais serão levadas ao judiciário,[3]
Além do fator tempo, o jurisdicionado muitas vezes intentava uma medida com efeito antecipatório sob o título de cautelar, o que vinha provocando vários debates na doutrina e jurisprudência à respeito da possibilidade de fungibilidade entre as medidas de urgência, situação que ensejou a introdução do § 7º ao art. 273 do CPC.
No parágrafo, retromencionado, está consignado que:
Art. 273.
[...]
§ 7º. Se o autor, a título de antecipação de tutela requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado.”
Para a doutrina, foi em virtude da dificuldade em se separar o que era medida de antecipação ou cautelar, que obrigou o legislador a inserir o § 7º ao dispositivo, retro, deixando clara a possibilidade de fungibilidade entre as medidas de urgência.
Ainda é intensa a discussão acerca dos requisitos para a aplicação desse dispositivo. Enquanto alguns afirmam que basta o pedido de concessão de medida de urgência e a identificação do erro para que o juiz conceda a medida cautelar, mesmo que ela tenha sido requerida sob a forma de tutela antecipada, muitos doutrinadores, entre eles Marinoni, defendem que apenas no caso em que haja dúvida fundada e razoável com relação à natureza da medida, a fungibilidade poderá ser aplicada.[4]
A controvérsia também existe quanto à possibilidade de concessão de medida antecipada, quando tal for requerida via cautelar, já que a lei apenas prevê a hipótese contrária. Alguns defendem interpretação literal do dispositivo legal, admitindo apenas a concessão de cautelar se requerida sob a forma de antecipação de tutela. Ou seja, não haveria uma fungibilidade de mão dupla, outros admitem ambas as hipóteses.
Isto porque, o requerimento de concessão das medidas são realizados em processos distintos, cujos ritos não são iguais. Nesse caso, seria admitir decisão de mérito em sede do processo cautelar, ainda que provisória, o que acabaria por prejudicar o réu, já que estaria submetido a rito sumário, sem oportunidade de ampla defesa.[5]
Parece-nos que o espírito do § 7º é no sentido de dar maior autonomia ao julgador para conceder uma medida no lugar de outra que lhe foi pedida, tendo em vista que deve zelar pela economia processual, pela utilidade do processo e que nem sempre o demandante tem condições de discernir sobre o cabimento de uma ou outra providência.
Entretanto, ressalta-se que o julgador apenas poderá conceder a medida cautelar, aplicando a fungibilidade, se estiverem presentes os pressupostos da medida cautelar, que são o fumus boni iuris e o periculum in mora. De tal modo, que este entendimento não condiz com a exigência mais rigorosa dos pressupostos da tutela antecipatória, que exige prova mais robusta, qual prova inequívoca e verossimilhança da alegação.
Para Teori Zavacki, “a ‘fungibilidade’ estabelecida nesse parágrafo tem mão única: diz respeito à medida cautelar, que pode ser deferida em caráter incidental. Não autoriza, todavia, o contrário, ou seja, que a medida antecipatória possa ser requerida, como a ação cautelar, por ação autônoma.
[...], se assim fosse, estar-se-ia atentando contra a lógica do sistema atual, um dos principais avanços trazidos pelo movimento reformador do sistema, que é a de concentrar em uma única relação processual, tanto quanto possível, toda a atividade jurisdicional.[6]
Marinoni acentua que o citado dispositivo “pretende somente viabilizar a concessão, no bojo do processo de conhecimento, da tutela cautelar que foi chamada de antecipatória, desde que haja dúvida fundada e razoável quanto à sua natureza”.[7]
Para Marinoni a concessão da tutela antecipatória com base em pedido cautelar ocorrerá somente em casos extraordinários. Não nega a possibilidade, entretanto, tal proceder deve sempre ser cautelosa e vista como extrema exceção[8].
E, prossegue Marinoni afirmando que “aceitando-se a possibilidade de requerimento de tutela cautelar no processo de conhecimento, é correto admitir a concessão de tutela de natureza antecipatória ainda que ela tenha sido postulada com o nome de cautelar, ou seja, isto existindo dúvida razoável e fundada quanto à natureza da tutela, uma vez que o seu objetivo é o de evitar maiores dúvidas quanto ao cabimento da tutela urgente.[9]
Entretanto, ressalta que não deve haver uma banalização, abarcando toda e qualquer situação. Ao contrário, apenas no caso de haver dúvida fundada e razoável, será permitida a concessão de tutela de urgência no processo de conhecimento. E arremata:
[...] o fato de ser possível pedir tutela cautelar no processo de conhecimento nada tem a ver com a possibilidade de concessão de tutela antecipatória ainda que tenha sido solicitada cautelar, ou com a idéia de fungibilidade, (presente no § 7º do art. 273). A concessão de tutela antecipatória no caso em que houver sido pedida cautelar somente é possível em hipóteses excepcionais, ou seja, quando for razoável e fundada a dúvida em relação à correta identificação da tutela urgente.[10]
Jorge Amaury Maia Nunes entende que a fungibilidade prevista nesse parágrafo é de mão dupla:
Não obstante os termos claros do fragmento legal, a doutrina entende que se trata de uma via de mão dupla: tanto o autor pode pedir uma tutela antecipada quando a hipótese for de cautelar; quanto poderá pedir uma tutela cautelar quando a hipótese for de antecipação de tutela. Nas duas hipóteses, o juiz poderá aplicar o princípio da fungibilidade e dar a proteção estatal, desde que presentes os requisitos autorizadores.[11]
E esse entendimento parece ser amplamente predominante no STJ, o qual tem entendimento no sentido de admitir a fungibilidade de mão dupla, conforme precedentes da 2ª e 3ª Turmas, a seguir colacionados:
ADMINISTRATIVO – CORTE DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA – FUNGIBILIDADE ENTRE AS MEDIDAS DE URGÊNCIA – POSSIBILIDADE – INTERRUPÇÃO DO FORNECIMENTO – IMINÊNCIA DE PREJUÍZO A CIDADÃOS – IMPOSSIBILIDADE DE INTERRUPÇÃO.
[...]
2. Esta Corte Superior já se manifestou no sentido da admissão da fungibilidade entre os institutos da medida cautelar e da tutela antecipada, desde que presentes os pressupostos da medida que vier a ser concedida[12].
Ainda:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ASSEMBLÉIA. PEDIDO DE INTERVENÇÃO. ARTIGO 273, § 7º, DO CÓDIGO DE PROCESSO
II - Apesar de se ter deferido, em caráter liminar, a intervenção na pessoa jurídica, cujo pedido foi formulado em autos de processo de conhecimento onde se postulou a nulidade de assembléia, já à época em que proferida a decisão, doutrina e jurisprudência vinham admitindo a fungibilidade das medidas urgentes, tendência que culminou com a inserção do § 7º no artigo 273 do Código de Processo Civil pela Lei nº 10.444/02.
III - Tal providência se justifica em atendimento ao princípio da economia processual, haja vista que nem sempre é fácil distinguir se o que o autor pretende é tutela antecipada ou medida cautelar, conceitos que não podem ser tratados como sendo absolutamente distintos. Trata-se, diversamente, de duas categorias pertencentes a um só gênero, o das medidas urgentes.
Recurso especial não conhecido[13].
Como visto, o STJ entende que, desde que presentes os requisitos da medida requerida, deve-se, sim, privilegiar a fungibilidade entre as medidas de urgência, de forma a se evitar demoras desnecessárias, bem como a rápida entrega da prestação jurisdicional, e o alcance da efetividade do processo, posto que o direito não tem fim em si mesmo. Antes, deve buscar a solução do litígio de forma rápida e eficaz.
3. CONCLUSÃO
Assim, frente à necessidade de oferecer efetividade ao processo e evitar que o procedimento ordinário ponha em risco o direito eventual da parte, o legislador do CPC de 1973, com a introdução do parágrafo 7º ao art. 273 do CPC, almejou a dar maior efetividade ao processo, com a entrega de uma prestação jurisdicional justa e eficaz e em tempo hábil.
O instituto da fungibilidade entre as tutelas de urgência, previsto no § 7º do artigo 273 do CPC, demonstra que, não só por observância ao princípio da economia processual, mas por questão de preservação da garantia Constitucional de acesso ao judiciário (art. 5.º, XXXV, CF), deva esse Poder ter em mente que questões eminentemente teóricas não devem se sobrepor à busca do “bem da vida”, em tempo útil para o demandante, sob pena de atentar frontalmente o texto da Constituição da República.
Assim, é plenamente possível ao julgador, em nome do "poder geral de cautela", deferir medida antecipatória satisfativa, em lugar da antecipatória, mesmo sendo diversos os requisitos para ambas as medidas, isto em nome da eficaz e útil prestação jurisdicional.
BASTOS, Cristiano de Melo Bastos; MEDEIROS, Reinaldo Maria de. Tutelas de Urgência e o Princípio da Fungibilidade Como Garantia da Instrumentalidade e Efetividade Processual. Disponível: www.iob.com.br/bibliotecadigitalderevistas/bdr.dll/RDC22da/222db/225dd/22, Acesso 4 Maio 2010.
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ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela, 7. Ed., São Paulo : Saraiva, 2009
[1] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 3. ed., Rio de Janeiro : Forense, 1993.
[2] MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 10ª ed. São Paulo: Malheiros. 2005.
[3] BASTOS, Cristiano de Melo Bastos; MEDEIROS, Reinaldo Maria de. Tutelas de Urgência e o Princípio da Fungibilidade Como Garantia da Instrumentalidade e Efetividade Processual. Disponível: www.iob.com.br/bibliotecadigitalderevistas/bdr.dll/RDC22da/222db/225dd/22, Acesso 4 Maio 2010.
[4] BAUERMANN. op.cit.
[5] Id.
[6] ZAVASCKI, ibid. p. 47
[7] MARINONI, ibid. p.130
[8] Id. p.130
[9] Id. p.130
[10] Id. p. 131
[11] NUNES, op. cit. 30
[12] (Relator: Ministro HUMBERTO, (Processo: AgRg no REsp 1003667 / RS
2007/0260394-7. Relator Ministro HUMBERTO MARTINS (1130). Órgão julgador: T2 - SEGUNDA TURMA. Data do julgamento 19/05/2009. pub/fonte DJe 01/06/2009
[13](REsp 202740 / PB
Relator: Ministro CASTRO FILHO (1119). Órgão julgador: T3 - TERCEIRA TURMA. Data julgamento: 25/05/2004. Pub/fonte: DJ 07/06/2004 p. 215
Procuradora Federal/AGU. Especialista em Direito Público - Universidade de Brasília - UNB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Cleide Siqueira. Fungibilidade entre as tutelas de urgência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 out 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41331/fungibilidade-entre-as-tutelas-de-urgencia. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: ELISA CARDOSO BATISTA
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
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