RESUMO: nesse artigo analisamos, de forma sucinta, as duas posições mais clássicas da doutrina brasileira a respeito da classificação das normas constitucionais de acordo com a sua eficácia, advindas de dois dos maiores juristas brasileiros: Ruy Barbosa e Pontes de Miranda. Abordamos o entendimento de cada autor, bem como do contexto de suas lições, e as diferenças entre elas. Após, em sede de conclusão, fizemos algumas críticas a essas duas teorias, especialmente, relacionadas ao atual momento constitucional brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Constituição. Normas Constitucionais, Classificação de acordo com a eficácia. Ruy Barbosa. Pontes de Miranda.
As normas constitucionais classificadas de acordo com a sua eficácia, é um tema que preocupa a doutrina em geral, e também a brasileira, desde há muito. Nesse artigo, iremos analisar, mesmo que de forma sucinta, as posições mais clássicas da teoria constitucional pátria, advindas, certamente, de dois dos maiores juristas brasileiros de todos os tempos, quais sejam: Ruy Barbosa e Pontes de Miranda.
Sempre é importante e necessário o entendimento acerca do pensamento de autores clássicos e de nomeada como são os casos de Ruy Barbosa e de Pontes de Miranda, de modo que, o simples fato de estudá-los já justificaria o presente artigo. Todavia, queremos, além disso, em sede de conclusão do presente estudo, responder ao questionamento se essas duas doutrinas ainda permanecem a atuais e podem ser aplicadas na realidade constitucional de agora, especialmente, após a Constituição de 1988.
O tema da classificação das normas constitucionais conforme sua eficácia, vem merecendo tratamento dispare pela doutrina constitucional, pois cada autor, ao menos dos que escreveram especificamente sobre a matéria, vem dando a sua classificação, que mais varia de denominação e enquadramento nas teorias que dividem as normas em bipartidas, tripartidas ou quadripartidas[1], que propriamente mostrarem divergências de fundo. Tendo em vista tal circunstância, artigo, como já explicitado, veremos as classificações clássicas,[2] proveniente do direito norte americano e que remonta a Ruy Barbosa e Pontes de Miranda. Com relação a esta concepção clássica, teceremos algumas críticas feitas, pois, além de serem quase unânimes entre os autores, foi um pressuposto as para as demais concepções. Analisaremos as teorias de acordo com a sua ordem cronológica.
Ruy Barbosa, logo no título em que o célebre jurista trata da sua classificação bipartida das normas constitucionais está presente todo pensamento de matiz liberal do constitucionalismo do fim do século XIX e início do século XX, predominante, ao menos, até pós-segunda guerra, o qual, embasa a teoria que concebia que “As Constituições se completam em Leis Organicas” (BARBOSA, 1933: p. 477). O primeiro parágrafo após este título, que dispensaria comentários pois, parafraseando o mestre brasileiro seria auto-explicável, expõe Ruy Barbosa, que: “As Constituições não têm o caracter anlytico das codificações legislativas. São, como se sabe, largas synthesses, summas de princípios geraes, onde, por via de regra, só se encontra o substractum de cada instituição nas suas normas dominantes, a estructura de cada uma, reduzida, as mais das vezes, a uma característica, a uma indicação, a um traço. Ao legislador cumpre, ordinariamente, revestir-lhes a ossatura delineada, impor-lhes o organismo adequado, e lhes dar capacidade real de acção” (BARBOSA, 1933: p. 477-478).
Continuando, com a devida venia, com as metáforas do saudoso patriota, hoje, diríamos, que a Constituição além de ser a própria ossatura do ordenamento, é, também, seu coração, ao impulsionar a sua evolução; e, seu cérebro, ao dar-lhe coerência e sistematicidade; e, no caso brasileiro de 1988, suas novas retinas para a compreensão e interpretação das demais leis, sempre conforme ela.
Desse modo, para analisar a teoria de Ruy Barbosa deve se contextualizar seu pensamento e ter presente o entendimento do doutrinador acerca da Constituição e suas funções básicas.
Dividiu Ruy Barbosa as normas constitucionais em duas categorias, quais sejam: as normas (cláusulas ou dispositivos) auto-aplicáveis (também chamadas pela denominação americana de self-executing provisions ou de auto-executáveis) e as não-auto-aplicáveis (not self-executing provisions ou não-auto-executáveis). Em virtude dessa separação, que também é, por sua vez, rotulada dentro das denominadas teorias bipartida ou binária, por conceberem as normas constitucionais em dois grupos. As primeiras, como a denominação sugere, são as normas que são aplicáveis desde que entra em vigor a Constituição, pois contém todos os requisitos de sua eficácia jurídica.
Nas palavras de Ruy Barbosa, firmado em jurisprudência americana: “Executaveis por si mesmas, ou auto-executaveis, se nos permittem uma expressão, que traduza num só vocábulo o inglez self-executing, são, portanto, as determinações, para executar as quaes, não se haja mister de constituir ou designar uma autoridade, nem criar ou indicar um processo especial, e aquelles onde o direito instituido se ache armado por si mesmo, pela sua própria natureza, dos seus meios de execução e preservação” (BARBOSA, 1933: p. 488).
Já as segundas, para surtirem efeitos e serem eficazes, necessitam da intervenção do legislador infraconstitucional, sem o qual sua pretensão inicial não será atendida, pois não é completa na sua disciplina. Ensina o eminente jurista: “Ora, ninguém dirá que constitua, de si mesma, um todo completo, que seja completa em si mesma, uma disposição constitucional, onde se confere a certa magistratura uma função judiciária, mas nada se lhe diz sobre a maneira de a exercer” (BARBOSA, 1933: p. 493). Em suma, uma norma constitucional será auto-aplicável quando a sua expressão literal e seu conteúdo permitir, do contrário, o Poder Judiciário não poderá aplicá-la sem a interferência do legislador.
Dentro desse entendimento, dizia Ruy que são poucos os casos em que as normas constitucionais são executáveis por si, citando como exemplos, os textos de caráter proibitório: “É que a norma prohibitiva encerra em si mesma tudo quanto se há mister, para que desde logo se torne obrigatória a prohibição, embora a sancção contra o acto, que a violar, ainda não esteja definida (...) Assim, quando a nossa Constituição declara que ‘nenhuma pena passará da pessoa do delinquente’ (...) a inhibição que resulta desses textos, assim como de quaisquer outros que apresentem o mesmo caracter, é absoluta e immediata (...) Nenhuma legislação complementar se requer, para que elles operem e obriguem na sua maior plenitude”. (BARBOSA, 1933: p. 481-482). Entendia, também, como normas auto-executáveis, entre outras tantas expressamente citadas pelo constitucionalista, “as declarações constitucionaes de direitos. Estas actuam ipso jure, pelo mero facto da sua existência nas Constituições onde se consignam” (BARBOSA, 1933: p. 483-484).
Concluí Ruy Barbosa: “Executaveis por si mesmas, ou auto-executaveis, se nos permittem uma expressão, que traduza num só vocábulo o inglez self-executing, são, portanto, as determinações, para executar as quaes, não se haja mister de constituir ou designar uma autoridade, nem criar ou indicar um processo especial, e aquelles onde o direito instituído se ache armado por si mesmo, pela sua própria natureza, dos seus meios de execução e preservação” (BARBOSA, 1933: p. 488).
Quanto as normas não auto-executaveis no entender de Ruy Barbosa eram a maioria na Constituição, embora fizesse a ressalva de que “Não há, numa constituição, clausulas, a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos. Muitas, porém, não resvestem dos meios de acção assenciaes ao se exercício os direitos, que outorgam, ou os encargos, que impõe: estabelecem competências, attribuições, poderes, cujo uso tem de guardar que a Legislatura, segundo o seu critério, os habilite a se exercerem” (BARBOSA, 1933: p. 488).
Inovando quanto a terminologia[3] e salientando um grupo aparte de normas, Pontes de Miranda, dividiu entre as normas bastantes em si e as não bastantes em si. As primeiras, são aquelas em que “uma regra se basta” (MIRANDA, 1970: p. 126), sinônimas das auto-aplicáveis, auto-executáveis e self-executing provisions. Enquanto que as normas não bastantes em si, não podem incidir enquanto não houver complementação a seu respeito (são sinônimas das não-auto-aplicáveis, não-auto-executáveis ou not self-executing provisions). O grupo aparte de normas, que podem tanto serem bastantes em si como não, Pontes, coloca as normas programáticas, como “aquelas em que o legislador, constituinte ou não, em vez de edictar regra jurídica de aplicação concreta, apenas traça linhas diretoras, pelas quais se hão de orientar os poderes públicos” (MIRANDA, 1970: p. 126-127).
3. Considerações finais.
As posições clássicas de Ruy Barbosa a de Pontes de Miranda, consubstanciada na doutrina americana e na jurisprudência da Suprema Corte deste país, estão intimamente ligadas (embora Pontes de Miranda já formulasse crítica ao entendimento das normas programáticas), não somente em virtude da inspiração anglo-saxônica, como também em decorrência da concepção central de Estado e de Constituição que se tinha à época, ao constitucionalismo de matriz liberal e ao Estado Liberal Burguês.
Compreendia-se, nessa conjunção de ideias predominantes, a Constituição mais como um limite ao temido Estado como uma norma fundamental da sociedade. Por conseguinte, como todo pensamento, a teoria de Ruy Barbosa também está ligada ao seu contexto e, em decorrência, foi influenciada pelo meio em que se encontrava. Em razão disso, entendia-se como auto-aplicáveis, em geral, além das normas que continham todos os pressupostos em si para sua execução, as disposições que limitavam o poder estatal, como as que instituíam garantias ou direitos individuais dos cidadãos frente ao poder público, as proibições, os direitos constitucionais, entre outras. A regra predominante era que as normas não se enquadrassem entre as aplicáveis de imediato, portanto, todas as demais, eram tidas como não executáveis e, desse modo, destituídas de qualquer imperatividade ou eficácia, sem a intervenção do legislador. Nas palavras de Ruy Barbosa: “Mas nem todas as disposições constitucionaes são auto-aplicáveis. As mais dellas, pelo contrario, não o são”. (BARBOSA, 1933: p. 488).
Em razão do exposto, se fez muitas críticas pela doutrina contemporânea à teoria clássica de classificação das normas constitucionais, dentre as quais, as relacionadas por Ingo W. Sarlet. Nos dias que correm, onde predomina o constitucionalismo social, houve uma inversão com relação a concepção clássica, pois esta, entendia que a maior parte das normas eram não-auto-aplicáveis, enquanto que hoje, a melhor doutrina, entende que a maior parte dos dispositivos constitucionais detêm plena eficácia, e, que nenhum dispositivo seja destituído de qualquer eficácia jurídica. Ademais, a expressão auto-aplicáveis transmite o sentido de que tais normas não podem ser disciplinadas pelo legislador infraconstitucional, “quando, pelo contrário, não se controverte a respeito da possibilidade de regulamentação das normas diretamente aplicáveis, para que possam ter maior executoriedade ou com o objetivo de serem adaptadas às transformações e às circunstâncias vigentes na esfera social e econômica” (SARLET, 2003: p. 229). Em decorrência, nem as normas denominadas de auto-aplicáveis emanam todos os seus efeitos, nem mesmo as ditas não-auto-aplicáveis são destituídas de todos os efeitos, do contrário, estaria a se frustrar a própria soberania popular como notou, contraditoriamente a sua exposição, o próprio Ruy Barbosa: “Não há, numa Constituição, cláusulas, a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos” (BARBOSA, 1933: p. 488).
Por conseguinte, além de totalmente descontextualizada a teoria clássica, por ter como concepção de Constituição, que serve de base para sua classificação, o constitucionalismo liberal (que entendia ser a Lei Maior direcionada a regular o poder estatal e a relação deste com os indivíduos, enquanto que a relação entre estes, se dava pelo Código Civil, chamado à época de Constituição dos privados), desconsidera a própria pretensão de eficácia[4] que toda Constituição possui, pois nega qualquer eficácia a parte de suas normas, não atentando para a força normativa[5] da Lei Maior.
Assim, embora tenha servido de ponte para chegarmos ao atual estágio da teoria constitucional da classificação das normas constitucionais de acordo com a sua eficácia, as teorias clássicas de Ruy Barbosa e Pontes de Miranda, não mais se prestam para aplica-las de acordo com a atual Constituição brasileira.
4. Referências bibliográficas
BARBOSA, Ruy. Comentários á Constituição Federal Brasileira, (colligidos e ordenados por Homero Pires), Vol. II., São Paulo: Saraiva & Cia., 1933.
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabres, 1991.
LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998.
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense: 2002.
MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967 (com a emenda n.º 1 de 1969), 2a ed., São Paulo: RT, 1970.
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional, 15a ed., São Paulo: Atlas, 2004.
PENA, Guilherme. Direito Constitucional Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris: 2003, p. 83-89.
SARLET. Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 3a ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, 2a ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
[1] Divide assim as teorias, entre outros: PENA, Guilherme. Direito Constitucional Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris: 2003, p. 83-89. Alexandre Moraes, embora não exponha nenhuma teoria especificamente, relata, as teorias de José Afonso (teoria binária) e Maria Helena Diniz (classifica em quatro grupos) em seu: MORAES, Alexandre. Direito Constitucional, 15a ed., São Paulos: Atlas, 2004, p. 43-44.
[2] Para uma visão mais ampla e detalhada sobre as principais teorias acerca da eficácia das normas constitucionais ver SARLET, Ingo Wofgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 3a ed., Porto Alegre: livraria do advogado, 2004, p. 226 e ss. O autor faz uma resenha crítica das principais classificações dos autores nacionais, desde a concepção clássica, passando pela análise de Meirelles Teixeira, José Afonso, Celso Ribeiro Bastos e Carlos Aires Brito, Maria Helena Diniz, até tomar um posicionamento, que será o adotado por nós mais adiante.
[3] À respeito da inovação de Pontes de Miranda, entende Ingo W. Sarlet, que a “terminologia apresenta o mérito de ressaltar com maior precisão o critério com base no qual pauta a distinção entre as normas no que concerne à sua eficácia e aplicabilidade” (SARLET, 2003: p. 228).
[4] Nesse sentido é lição de Konrad Hesse no célebre livro sobre a força normativa da Constituição: “A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sócio-políticas e econômicas,. A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferenciadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas.
“Para usar a terminologia acima referida, ‘Constituição real’ e ‘Constituição jurídica’ estão em uma relação de coordenação. Elas condicionam-se mutuamente, mas não dependem, pura e simplesmente, uma da outra. Ainda que não de forma absoluta, a Constituição jurídica tem significado próprio. Sua pretensão de eficácia apresenta-se como elemento autônomo no campo de forças do qual resulta a realidade do Estado. A Constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia. Essa constatação leva a uma outra indagação, concernente às possibilidade e aos limites de sua realização no contexto amplo de interdependência no qual esta pretensão encontra-se inserida” (HESSE, 1991: p. 15-16).
[5] Nesse sentido é a lição de André ramos Tavares: “convém observar que todas as normas constitucionais possuem força normativa, o que implica reconhecer-lhes, necessariamente, alguma sorte de eficácia, sempre”. (TAVARES, 2003: p. 84). A monografia que consagrou a expressão e propôs um debate com Ferdinand Lassalle (A Essência da Constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998), sobre se a Constituição prevaleceria ou não em face dos fatores reais de poder, foi do constitucionalista alemão Konrad Hesse (A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabres, 1991), leitura que recomendamos à titulo complementar.
Procurador Federal da Adovocacia-Geral da União - AGU, especialista em Direito Público pela Universidade Nacional de Brasília - UNB, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FURIAN, Leonardo. Posições clássicas a respeito da classificação das normas constitucionais de acordo com a sua eficácia: Ruy Barbosa e Pontes de Miranda Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 out 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41403/posicoes-classicas-a-respeito-da-classificacao-das-normas-constitucionais-de-acordo-com-a-sua-eficacia-ruy-barbosa-e-pontes-de-miranda. Acesso em: 23 dez 2024.
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