RESUMO: O princípio do livre convencimento motivado, mais que um direito do Estado-juiz, é uma garantia do jurisdicionado quanto à imparcialidade do julgador e ao pleno exercício do contraditório. Trata-se de um princípio processual consectário do devido processo legal e, como tal, exigência do próprio Estado Democrático de Direito. O livre convencimento traz legitimidade às decisões judiciais, quando exercido sob limites que assegurem a racionalidade do julgado e a motivação à luz dos elementos constantes dos autos e do sistema jurídico vigente.
Palavras-chave: Livre convencimento motivado. Estado democrático de direito. Devido processo legal. Limites. Motivação.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 instituiu a divisão do Estado em três poderes autônomos: Executivo, Legislativo e Judiciário, cada um com sua função precípua. Assim, o Estado repartiu as atividades que lhe foram constitucionalmente atribuídas entre os poderes e assumiu, através do poder Judiciário, o monopólio da justiça, vedando a autotutela.
Dessa forma, surgiu a necessidade de as partes num litígio recorrerem ao judiciário para verem solucionados seus conflitos de interesses, através da aplicação pelo juiz da norma jurídica ao caso trazido a baila pelos litigantes. Ao judiciário cabe, então, intervir, quando estimulado, para decidir uma lide, em busca da paz social.
Em contrapartida, cumpre à mesma Constituição Federal que vedou ao cidadão o direito do deslinde de seus problemas de forma autônoma garantir-lhe instrumentos para levar a cabo o conflito intersubjetivo em que está envolvido, assegurando-lhe o direito de obter um pronunciamento judicial.
Ao mesmo tempo, o trabalho do juiz, no papel do responsável maior pelo exercício desta função e pela consecução da justiça, necessita de ser pautado por alguns direitos e deveres que lhe asseverem o cumprimento de seus afazeres de forma a respeitar a dignidade do jurisdicionado.
Neste passo, o direito de demandar o judiciário e de ter seu caso resolvido é um princípio constitucional do sistema jurídico brasileiro. A inafastabilidade da jurisdição é consolidada no enunciado do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, verbis: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Tem assim o autor, por meio do direito subjetivo de ação que lhe foi proposto pelo Estado, através da Constituição Federal, um direito em face do próprio Estado: o de ver apreciada pelo Judiciário a lesão ou ameaça de lesão a seu direito. Por outro lado, o Estado tem uma obrigação com o cidadão: a de lhe prestar a tutela.
Destarte, frente à violação de um bem juridicamente protegido, não cabe outra conduta que não a invocação da devida tutela jurisdicional. Impõe-se a necessária utilização da estrutura preestabelecida pelo Estado – o processo judicial – em que, mediante a atuação de um terceiro imparcial, cuja designação não corresponde à vontade das partes e resulta na imposição da estrutura institucional, será solucionado o conflito e sancionado o autor [BIGAL, 2006, p.01].
Ao juiz, por delegação do Estado, compete, pois, resolver os conflitos de interesses, através da aplicação da norma jurídica ao caso levado a juízo. Para tanto, ele precisa formar uma decisão a respeito dos vários fatos trazidos à causa pelo autor, sendo-lhe defeso não decidir, ou o non liquet, tendo em vista o princípio da indeclinabilidade.
O magistrado é, então, o destinatário de todas as provas produzidas pelas partes, vez que a ele cabe apreciá-las livremente, de modo a formar seu convencimento.
Mais, o princípio do contraditório, exercido de forma plena e efetiva, garante às partes o direito de influírem diretamente e criarem dúvidas no convencimento do juiz [PORTANOVA, 2005, p.161].
A idéia é que cada uma das partes da relação jurídica deve expor suas razões da melhor maneira possível a formar em seu favor o convencimento do ouvinte – o juiz.
O direito é a arte da disputa. O árbitro da causa adere a uma ou outra tese, ou propõe uma solução alternativa que entenda como mais razoável, tudo conforme sua livre convicção [CAMARGO, 2003, p.231-232].
Todavia, nem sempre o juiz dispôs de tal liberdade. Ao longo da história da evolução do direito processual, vários sistemas de apreciação das provas conviveram, desde os mais limitados aos mais arbitrários, evoluindo-se progressivamente até se ver reconhecido o princípio do livre convencimento do magistrado, como consectário do Estado Democrático de Direito.
2. ASPECTOS HISTÓRICOS SOBRE OS SISTEMAS DE VALORAÇÃO DAS PROVAS
Os modelos de valoração das provas servem como métodos para orientar o julgador e intérprete em seu mister de decidir. Atribui-se um valor às provas apresentadas em juízo, a fim de formar seu convencimento acerca do direito em litígio.
Fruto da superstição do povo e da crença no legislador, o primeiro sistema de provas historicamente conhecido foi o “positivo”, também chamado de “sistema da prova legal”, pelo qual as provas tinham valor fixo, previamente estabelecido em lei.
Em decorrência, ainda que a prova produzida contrariasse a verdade dos fatos, se o legislador lhe impusesse um determinado valor, o juiz deveria julgar com base nele, desconsiderando os fatores racionais que formariam seu convencimento [PETRY, 2003, p.8].
Tal sistema variou conforme suas determinantes, usos e costumes, convicções e conveniências, de acordo com a época e o povo.
De início, as regras de análise das provas do sistema legal tinham por base o método das Ordálias ou Juízos de Deus: a parte que tivesse razão seria assistida pelas divindades. Nas ordálias, todas as provas tinham conteúdo irracional e reconhecia-se que a razão não julgava, apenas limitava-se a emitir o juízo dos deuses.
O réu era atado, por exemplo, a um poste, onde era ateado fogo. Sobrevivendo incólume, era julgado inocente. Ou seja, o juiz não apreciava as provas, apenas aplicava o método estabelecido e aguardava o resultado, que servia de conformidade para o julgamento.
Na evolução do sistema positivo, as provas humanas passaram a substituir as de ordem divina. Tais regras, muito utilizadas no sistema medieval, tinham fundo racional, mas sempre com valor pré-determinado.
A exemplo, estabelecia-se quantas testemunhas seriam necessárias para ser confirmada a veracidade de um fato específico ou “pesava-se” o testemunho de acordo com a classe social do depoente, tudo com base em determinação legal.
Por este método, a lei fixava regras sobre quais eram as provas admissíveis e sobre o valor probante de cada meio probatório. O juiz tinha pouca ou nenhuma liberdade ao analisá-las, cabendo-lhe tão somente aplicar a tabela de valores estabelecida pelo legislador.
Neste período, cujas origens remontam ao direito canônico, o magistrado não valorava a prova, apenas a apreciava, conforme os ditames inalteráveis fixados pelo legislador, num movimento chamado “sistema regular de provas”.
Com a evolução do pensamento processualista, a valoração meramente numérica das testemunhas deixou de ser utilizada, dando espaço à evolução de outros meios de apreciação da prova. Assim, noutro extremo do mundo jurídico, surge o modelo da “íntima convicção”, pelo qual a verdade dos fatos estava na consciência do juiz.
O magistrado decidia secundum conscientiam e podia formar sua convicção a partir de quaisquer fatos – mesmo daqueles dos quais teve conhecimento extrajudicialmente – ou de suas impressões pessoais, inclusive contra as provas.
Tudo se conduzia à percepção íntima do juiz, segundo a fórmula romana “si paret – si non paret”. Ou seja, cabia ao julgador condenar “se lhe parecesse” e absolver “se não lhe parecesse”. Ele não se vinculava aos elementos produzidos nos autos e suas decisões prescindiam de fundamentação.
Foi a fase do total liberalismo do processo, em posição diametralmente oposta ao sistema regular de provas, anteriormente vigente. Era a negação do direito em prol do arbítrio, chegando a tal ponto que o juiz poderia deixar a lide sem solução em caso de provas demasiado conflitantes que inviabilizassem a formação de sua convicção [ARONNE, 1996, p.14-15].
O método da convicção íntima vigorou até meados do século XVI. Não tendo os julgadores, à época, quase nenhum limitador quanto a sua forma de decidir a demanda, eram feitas injustiças e arbitrariedades. Quando a opressão superou o limite do tolerável, estourou a Revolução Francesa.
Após a revolução, em resposta ao arbítrio e à falta de limites aos magistrados, os responsáveis pelo movimento pretenderam normatizar a tudo, de modo que os juízes apenas aplicassem a lei, na forma do brocardo “optima lex quae minimum relinquit arbitrio judicis” (tanto mais perfeita é a lei quanto menor arbítrio deixa ao juiz). Admitia-se, como único método hermenêutico, a lógica aristotélica.
Em reação ao literalismo do século XIX, a doutrina, apoiada nos pretórios, consolidou uma nova posição, pela qual cabia à jurisprudência adequar a lei à evolução do mundo dos fatos, fazendo evoluir o direito.
Neste diapasão, Ihering afirmava que o fim seria o criador de todo o direito. Ampliou-se então o poder do juiz, a quem cabia integrar valores vigentes e legislação, almejando a solução mais justa possível.
Surgia um novo sistema de valoração das provas, com limites racionais ao julgador. No século XX, a lógica racional pôde ser vista como método de hermenêutica, através do modelo da persuasão racional, posteriormente vindo a integrar-se ao Direito Processual [PESSOA, 2007, p.05].
Com isso, influenciadas pelas leis processuais alemãs e austríacas, as demais legislações modernas passaram a adotar o sistema do livre convencimento motivado, disposto no art. 131 do Livro dos Ritos Cíveis[1].
3. O PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO
3.1. ASPECTOS GERAIS
O artigo 131 do Código de Processo Civil, mencionado retro, consagra o Princípio do Livre Convencimento Motivado, corolário do sistema da persuasão racional.
Trata-se de um sistema intermediário entre o sistema regular de provas e o modelo da íntima convicção, valendo o livre convencimento do magistrado, porém adstrito às provas dos autos.
Assim dizendo, o julgador é livre para analisar as provas produzidas e decidir a demanda conforme seus critérios de entendimento, calcado no raciocínio e na lógica, desde que tenha por base os elementos constantes dos autos e que fundamente sua decisão, sempre com esteio na legislação pátria e na Constituição Federal.
O Princípio da Livre Convicção Motivada encontra respaldo ainda no art. 93, inciso IX, primeira parte, da Carta Magna de 1988[2], que institui que todas as decisões dos órgãos do poder judiciário deverão ser devidamente motivadas, sob pena de nulidade. O dispositivo constitucional objetiva dar racionalidade às decisões, preservando a legalidade dos pronunciamentos judiciais.
Por conseguinte, não obstante permita que o juiz aprecie livremente as provas, a Constituição Federal veda que o faça sem a apresentação das respectivas justificativas, a fim de evitar que retorne o arbítrio.
A propósito, importante comentário foi feito por Nelson NERY JÚNIOR [2004, p. 519]:
Livre convencimento motivado. O juiz é soberano na análise das provas produzidas nos autos. Deve decidir de acordo com o seu convencimento. Cumpre ao magistrado dar as razões de seu convencimento. Decisão sem fundamentação é nula pleno jure (CF 93 IX). Não pode utilizar-se de fórmulas genéricas que nada dizem. Não basta que o juiz, ao decidir, afirme que defere ou indefere o pedido por falta de amparo legal; é preciso que diga qual o dispositivo de lei que veda a pretensão da parte ou interessado e porque é aplicável no caso concreto.
Podemos deduzir do excerto acima que, pelo princípio do livre convencimento motivado, não haverá soluções apriorísticas, devendo o julgador resolver os litígios caso a caso.
O mesmo ocorre com as provas, após a superação do sistema da prova legal. Hoje os magistrados são livres para apreciar e valorar as provas segundo seu convencimento e suas impressões sobre o conjunto probatório.
Assim dispõe José Rogério Cruz e TUCCI [1987, p.16]:
[...] sem a incumbência de ater-se a um esquema rígido ditado pela lei (sistema da prova legal), o juiz monocrático, bem como o órgão colegiado, ao realizar o exame crítico dos elementos probatórios, tem a faculdade de apreciá-los livremente, para chegar à solução que lhe parecer mais justa quanto à vertente fática.
É, pois, premissa básica deste sistema, a ampla possibilidade de o juiz decidir a lide conforme seu convencimento, valorando as provas com autonomia e interpretando a totalidade do ordenamento jurídico com ampla liberdade e meticulosamente [SGARBOSSA, 2005, p.1].
Observe-se que a liberdade do magistrado não se restringe ao aspecto probante. Vai além, o juiz é livre também para se convencer a respeito do direito e da justiça da solução a ser dada no caso concreto [PORTANOVA, 2005, p.245].
A persuasão racional também encontra respaldo no art. 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988[3]. É considerado por Júlio Guilherme MULLER como “direito fundamental material adstrito” [2004, p.66], derivado do devido processo legal, este classificado pelo autor como direito fundamental processual principal.
Assinale-se, neste aspecto, “que não se trata de garantia para o julgador. Ao contrário, é garantia para a sociedade, num estado Democrático de Direito, tendo em vista estar no conteúdo do devido processo legal” [PESSOA, 2007, p.05].
Dentre outros aspectos, sobreleva-se a importância da motivação da sentença como critério para medir a legalidade da decisão. É que sem conhecer as razões do decisum, impossível saber se ele é ou não conforme a lei.
Lembre-se que o princípio do devido processo legal constitui o ponto de convergência entre todos os princípios, garantias e exigências do processo civil, sendo, portanto, origem basilar do livre convencimento motivado.
Como defende Nelson NERY JÚNIOR, o devido processo legal é a base sobre a qual os demais princípios se sustentam, uma vez que seu enunciado é suficiente para gerar todas as conseqüências processuais que asseguram aos litigantes processo e sentença justos [2004, p.60].
Ainda nesta acepção, Oreste Nestor de Souza LASPRO o traduz como a “obediência à lei para obtenção de julgamento adequado, justo e équo, conforme aos princípios constitucionais, que atuam concorrentemente e não de forma singular, a todos os indivíduos, protegendo-os de qualquer discriminação” [1995, p.88].
Assim sendo, ao tolher-se a aplicação do livre convencimento motivado, estar-se-ia a ferir de morte o princípio do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV) e, em decorrência, o próprio Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput [4]). É a razão porque a persuasão racional, nos moldes circunscritos pelo art. 131 do CPC e art. 93, inciso IX da CF, consiste num direito fundamental do cidadão.
Fosse pouco, a liberdade do magistrado é reconhecida mundialmente como direito fundamental do homem, consoante o artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
Artigo X: Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. [grifo nosso]
O Superior Tribunal de Justiça, em várias decisões, reconheceu a vigência do livre convencimento motivado do magistrado e do sistema da persuasão racional[5], como também aduziu seu significado[6].
3.2. LIMITES À LIBERDADE DO MAGISTRADO
Da interpretação do art. 131 do Código de Processo Civil, em associação ao dispositivo constitucional, depreende-se que a liberdade do julgador relaciona-se a um convencimento racional e motivado à luz dos autos [KNIJNIK, 2001, p.2].
Deste modo, malgrado o alvedrio do magistrado em formar seu juízo e analisar as provas, alguns parâmetros devem nortear a atuação judicial, senão vejamos:
a) embora livre o convencimento, este não pode ser arbitrário, pois fica condicionado às alegações das partes e às provas dos autos; b) a observância de certos critérios legais sobre provas e sua validade não pode ser desprezada pelo juiz (arts. 335 e 366) nem as regras sobre presunções legais; c) o juiz fica adstrito às regras de experiência, quando faltam normas legais sobre as provas, isto é, os dados científicos e culturais do alcance do magistrado são úteis e não podem ser desprezados na decisão da lide; d) as sentenças devem ser sempre fundamentadas, o que impede julgamentos arbitrários ou divorciados da prova dos autos [THEODORO JR, 2007, p.476].
Destarte, observa-se também que a liberdade do magistrado não é plena, limitando-se por algumas circunstâncias: itens presentes nos autos; sistema jurídico vigente, assim entendido como o conjunto de legislação, doutrina, jurisprudência e princípios; exigência de motivação.
Sob pena de nulidade, descabe ao magistrado utilizar-se de elementos dos quais teve conhecimento extrajudicialmente. Ele deve ater-se aos dados constantes dos autos, mesmo que não alegados pelas partes. Quanto aos fatos, vale o brocardo “o que não está nos autos não está no mundo”.
Além disso, as partes podem limitar a atuação do juiz aos fatos e pedidos que elas entendam necessário para compor a lide, em obediência ao princípio dispositivo [PORTANOVA, 2005, p.121].
Do ponto de vista do juiz, vigora o princípio da vinculação aos fatos da causa. O julgador decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte (art. 128 do Código de Processo Civil).
Subordina-se o magistrado também às regras processuais incidentes, bem como às presunções legais em relação às quais não haja contraprova.
Ao juiz cabe compreender a vontade da lei, harmonizando-a ao caso concreto e à realidade social. Ele não deve ater-se a rígidos esquemas de aplicação da lei, devendo interpretá-la, sentenciando, sempre, com arrimo na lei. Nos ensinamentos de Clóvis BEVILÁQUA, “interpretar é escolher, dentre as muitas que a palavra oferecer, a justa e conveniente”.
[...] a convicção está na consciência formada pelas provas, não arbitrária e sem peias, e, sim, condicionada a regras jurídicas, a regras de lógica jurídica, a regras de experiência, tanto que o juiz deve mencionar na sentença os motivos que a formaram. [...] Há liberdade no sentido de que o juiz aprecia as provas livremente, uma vez que na apreciação não se afaste dos fatos estabelecidos, das provas colhidas, das regras científicas, regras jurídicas, regras da lógica, regras da experiência [KNIJNIK, 2001, p.03].
No tocante à exigência constitucional de motivação dos atos decisórios, trata-se de uma operação lógico-psicológica do juiz. É uma garantia para o Estado, os cidadãos, o próprio juiz e a opinião pública em geral, assegurando a sociedade contra a arbitrariedade e consistindo num instituto de segurança jurídica.
Conquanto o dever de motivação tenha sido reconhecido como norma constitucional apenas com a Constituição Federal de 1988, a legislação infra-constitucional anterior não deixava dúvidas quanto à obrigatoriedade da fundamentação pelo magistrado[7].
A motivação tem um caráter de explicação dos fatores que levaram à convicção do julgador, mostrando que o resultado não decorreu de outro motivo que não da aplicação da lei ao caso concreto, nos termos dos elementos constantes dos autos.
Ao fundamentar, o juiz expõe as razões de fato e de direito que o levaram àquela decisão, de maneira que é possível controlar a solução dada, confirmando-se que o julgador ateve-se à questão fática aduzida nos autos e está amparado pela legalidade.
A exposição dos motivos tem o condão, pois, de assegurar a imparcialidade do magistrado e o direito de defesa do sucumbente, direitos fundamentais das partes. Ademais, “a motivação das decisões e o confronto de idéias permite uma participação mais ampla da opinião pública e também a legitimação dos poderes legislativo e judiciário” [CAMARGO, 2003, p.235].
Importante observação aduz Flávia Moreira Guimarães PESSOA:
Verifica-se, portanto, que a motivação é um dos pilares do sistema da persuasão racional, porque, através da motivação confere-se racionalidade e legitimidade à independência de que goza o julgador na apreciação da prova. Tanto assim que o sistema é também conhecido como livre convencimento motivado [PESSOA, 2007, p.5].
Neste aspecto, “não pode o juiz, com efeito, limitar-se a ditar a regra de direito para o caso concreto. Deve ele dar as razões que o levaram a decidir de um ou de outro modo” [SANTOS, 1996, p.66].
A motivação pode ser definida, pois, “como a parte do julgado que deve conter, ainda que entremeadas, a exposição dos fatos relevantes para a solução do litígio e a exposição das razões jurídicas do julgamento” [TUCCI, 1987, p.11]
Por fim, a justificação dada à sentença deve ter caráter persuasivo, necessita de convencer os litigantes quanto à justiça da decisão. As partes querem ganhar a ação, mas ganhando ou perdendo, querem estar seguras do resultado da demanda.
Ainda quando o julgador atenda a todas as circunstâncias esposadas supra, o recurso funciona como um segundo controle do convencimento do juiz de primeiro grau.
Na sistemática do recurso, o convencimento do magistrado a quo é revisto, através de um novo processo de convencimento pelo juízo ad quem. O tribunal incumbido de analisar o recurso reavalia a causa, formando um novo convencimento.
Observe-se que, embora os dados constantes dos autos, aos quais têm acesso ambos os juízes – de primeira e segunda instâncias –, não mudem, a decisão do magistrado de segundo grau, em cotejo com a decisão inicial, pode ser deveras distinta. Isso porque o juiz exerce atividade criativa. A interpretação envolve valores e pelos mesmos é determinada.
Antes de julgar, o magistrado possui uma pré-compreensão sobre a matéria. Não se trata de meramente analisar os fatos, mas de valorá-los, formando sua convicção conforme a intuição de que o juiz dispõe a respeito do que é justo para o caso.
Recasen SICHES [apud CAMARGO, 2003, p.172], com muito acerto, alega que “o problema de se identificar qual é a norma positiva aplicável ao problema concreto não é meramente um problema de conhecimento de realidades, mas um problema de valoração”.
O autor defende que primeiro o juiz analisa os dados que lhe são apresentados conforme seus valores e a pré-convicção que dispõe sobre a matéria e decide, buscando, a posteriori, a norma que possa servir de base para sua conclusão.[8]
Assim dizendo, o julgador é conduzido sem se dar conta e, tendo a impressão de exercer sua livre vontade, na verdade sofre o jugo de um conjunto complexo de atitudes e de representações decorrentes de uma determinada visão de mundo [PORTANOVA, 2005, p.248].
Neste espeque, quanto maior a carga valorativa e a discricionariedade do julgador numa decisão, mais premente a necessidade de motivação, já que apenas à vista dela é possível verificar se o juiz utilizou-se com acerto de sua liberdade de escolha.
Tais limites funcionam como legitimador à atuação do juiz conforme os ditames do livre convencimento motivado, entendido como consectário do devido processo legal e concretizador do Estado Democrático de Direito.
3. CONCLUSÃO
O princípio do livre convencimento motivado, pautado na persuasão racional, é uma evolução dos sistemas de interpretação das provas criados para orientar a atividade do julgador.
Trata-se de um modelo intermediário entre o sistema regular de provas e o modelo da íntima convicção, valendo o livre convencimento do magistrado, porém adstrito às provas dos autos.
O livre convencimento motivado, tal como proposto pelo artigo 131 do Código de Processo Civil, consiste num direito processual consectário do devido processo legal, capaz de assegurar a legitimidade das decisões, a imparcialidade do juiz e o pleno exercício do contraditório. Assume, pois, indiscutível importância no Estado Democrático de Direito, alçando-se ao status de direito fundamental do jurisdicionado.
A liberdade do magistrado encontra limites nos elementos constantes nos autos e no sistema jurídico vigente, bem assim na exigência constitucional de motivação das decisões judiciais.
O livre convencimento é, pois, necessariamente motivado, o que confere segurança jurídica às decisões judicais e assegura o Estado, os cidadãos, o próprio juiz e a opinião pública em geral contra a arbitrariedade.
REFERÊNCIAS
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BIGAL, Valmir. A Obrigatoriedade das Decisões Judiciais. Disponível em: < http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2794/A-obrigatoriedade-das-decisoes-judiciais>. Acessado em 15 out. 2010.
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003.
KNIJNIK, Danilo. “Os ‘Standarts’ do Convencimento Judicial: Paradigmas para o seu Possível Controle”. In: Revista Forense, 2001, v. 353. Disponível em: < http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Danilo%20Knijnik%20-%20formatado.pdf>. Acessado em 25 mai. 2010.
LASPRO, Oreste Nestor de Souza. Duplo Grau de Jurisdição no Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
MULLER, Júlio Guilherme. Direitos Fundamentais Processuais. Dissertação de Mestrado Apresentada à Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2004.
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
PESSOA, Flávia Moreira Guimarães. “O Livre Convencimento Motivado Das Decisões Judiciais Como Garantia Fundamental do Estado Democrático de Direito”. In: Evocati Revista. N.18, jun. 2007. Disponível em: <http://www.evocati.com.br/evocati/artigos.wsp?tmp_codartigo=126>. Acessado em: 20/04/2010.
PETRY, Vinícius Daniel. “A Prova Ilícita”. In: Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 146, 29 nov. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4534>. Acessado em: 17 out. 2010.
PORTANOVA, Ruy. Princípios do Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
SANTOS, Nelton Agnaldo Moraes dos. A Técnica de Elaboração da Sentença Cível. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 66-73.
SGARBOSSA, Luís Fernando; JENSEN, Geziela. “A Emenda Constitucional nº 45/04, A Súmula Vinculante e o Livre Convencimento Motivado do Magistrado – Um Breve Ensaio sobre Hipóteses de Inaplicabilidade”. In: Jus Navigandi, Teresina,a.9, n.708, 13 jun. 2005. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6884>.
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THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento, 47ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 476.
TUCCI, José Rogério Cruz e. A Motivação da Sentença no Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1987.
[1] “Art. 131 - O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.”
[2] Art. 93, IX - Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;
[3] Art. 5º - LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
[4] Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]
[5] “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INDEFERIMENTO DE PRODUÇÃO PROBATÓRIA. CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO CONFIGURADO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. 1. De acordo com a jurisprudência desta Corte, cumpre ao magistrado, destinatário da prova, valorar sua necessidade, conforme o princípio do livre convencimento motivado. Portanto, não há violação ao art. 130 do CPC quando o juiz, em decisão adequadamente fundamentada, defere ou indefere a produção de provas […].” [grifo nosso]
(AgRg no AREsp 573.201/RS, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07/10/2014, DJe 14/10/2014)
“AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE AÉREO. ART. 557 DO CPC. SÚMULA 211/STJ. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO DO JULGADOR. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. CONDENAÇÃO SOLIDÁRIA DO RÉU E DO DENUNCIADO. ACEITAÇÃO DA DENUNCIAÇÃO E CONTESTAÇÃO DO MÉRITO LITISCONSORTES PASSIVOS. POSSIBILIDADE. [...] 3. A preferência do julgador por determinada prova está inserida no âmbito do seu livre convencimento motivado. Não está o magistrado compelido a acolher com primazia determinada prova pretendida pela parte, em detrimento de outras, se pela análise das provas em comunhão estiver convencido da verdade dos fatos. 4. A jurisprudência dessa Corte preconiza que, uma vez aceita a denunciação da lide e apresentada contestação quando ao mérito da causa principal, como no caso dos autos, o denunciado integra o pólo passivo na qualidade de litisconsorte do réu, podendo, até mesmo, ser condenado direta e solidariamente. Precedentes. Recurso a que se nega provimento.” [grifo nosso]
(AgRg no REsp 746.931/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 28/09/2010, DJe 07/10/2010)
[6] “PROCESSO CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. LIMITES. EMENDA DA INICIAL. PRAZO DILATÓRIO REQUERIDO PELA PARTE. NECESSIDADE DE INTIMAÇÃO PARA DAR CUMPRIMENTO. DESNECESSIDADE. DEVER DE COLABORAÇÃO. 1. O não acolhimento das teses contidas no recurso não implica obscuridade, contradição ou omissão, pois ao julgador cabe apreciar a questão conforme o que ele entender relevante à lide. O Tribunal não está obrigado a julgar a questão posta a seu exame nos termos pleiteados pelas partes, mas sim com o seu livre convencimento, consoante dispõe o art. 131 do CPC. [...]” [grifo nosso]
(REsp 1062994/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/08/2010, DJe 26/08/2010)
“AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. REQUISITOS. REEXAME DE PROVAS. INVIABILIDADE. SÚMULA Nº 7/STJ. LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. […] 2. De acordo com a jurisprudência desta Corte, sendo o nosso sistema processual civil orientado pelo princípio do livre convencimento motivado, ao magistrado é permitido formar a sua convicção em qualquer elemento de prova disponível nos autos bastando, para tanto, que indique na decisão os motivos que lhe formaram o convencimento.” [grifo nosso]
(AgRg no REsp 507,384/SC, Rel. Ministro Ricardo Villas Boas CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/10/2014, DJe 21/10/2014)
[7] À guisa de exemplo: CPC - Art. 165. As sentenças e acórdãos serão proferidos com observância do disposto no art. 458; as demais decisões serão fundamentadas, ainda que de modo conciso; Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:[...] II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito.
[8] “Y, es más, de ordinario la mente del juez primero anticipa el fallo que considera pertinente y justo – claro es que dentro del orden jurídico positivo vigente –, luego busca la norma que pueda servir de base para esa solución, y da a los hechos la calificación adecuada para llegar a dicha conclusión.
Suele ocurrir que el juez, a la vista de la prueba y de los alegatos, se forma una opinión sobre el caso discutido, una especie de convicción sobre lo que es justo respecto de este; después busca los principio, es decir, las normas jurídicas que puedan justificar esa su opinión, y articula los resultados de hecho de modo que los hechos encejen dentro de la calificación jurídica que justifique el fallo que va a dictar” [SICHES, 1956, p.241]
Advogada e servidora pública. Especialista em Direito do Estado pela Faculdade Social da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MANOEL, Márcia dos Anjos. O Princípio do livre convencimento motivado como consectário do devido processo legal no Estado democrático de direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 out 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41406/o-principio-do-livre-convencimento-motivado-como-consectario-do-devido-processo-legal-no-estado-democratico-de-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
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