Introdução
Se, de um lado, o controle de constitucionalidade brasileiro nasceu de inspirações diretas do direito alienígena, do outro, é inegável seu mérito de se adaptar à nossa realidade constitucional, ganhando cada vez mais destaque nos últimos tempos.
É o que reconhece, por exemplo, Nagib Slaibi Filho: “em tema de controle de constitucionalidade, o que se pode observar é que nosso país tem desenvolvido um complexo sistema cujos elementos foram importados de outras plagas, embora aqui sejam aperfeiçoados de modo absolutamente original, a introduzir uma síntese que surge como característica original do nosso Direito Constitucional”. [1]
Concebido em 1824 com a Constituição Brasileira daquele ano e oprimido pelos ares de uma constituição outorgada, trazia timidamente a teoria americana que pregava a invalidade das normas que contrariassem a constituição. Isso tudo pelo simbólico registro em seu art. 15, XI, que conferia ao Parlamento o poder de “velar pela guarda da Constituição, e promover o bem geral da Nação”.
O período gestacional do controle de constitucionalidade brasileiro durou aproximadamente 66 anos.
O art. 58 do Decreto nº 58, de 22 de junho de 1890, conferiu competência ao Supremo Tribunal Federal para apreciar em última instância recursos “quando se contestar a validade de leis ou atos dos governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do tribunal do Estado considerar válidos os atos, ou leis impugnados”. Já o art. 9º do Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, reconheceu que “haverá também recurso para o Supremo Tribunal Federal das sentenças definitivas proferidas pelos Tribunais e juízes dos Estados [..] quando a validade de uma lei ou ato de qualquer Estado seja posta em questão como contrária à Constituição, aos tratados e às leis federais e a decisão tenha sido em favor da validade da lei ou ato”.
Os dois dispositivos foram mantidos pela Constituição de 1981 que, segundo Gilmar Ferreira Mendes, alterou o texto sem modificar sua substância.[2]
O Supremo Tribunal Federal, nos novos moldes republicanos, formado por quinze juízes (CF/1981, art. 56) cuja grande maioria era egressa do então Supremo Tribunal de Justiça criado pela Carta Imperial antecessora (art. 163 e 164), reuniu-se pela primeira vez em sessão extraordinária feita em 28 de fevereiro de 1891. Naquele mesmo ano, o STF se reunira exatas 93 sessões, realizadas duas vezes por semana (quartas e sábados), a partir das 10h30m, apenas produzindo sentenças “sem muito brilho”.[3]
Um último registro histórico: a Constituição de 1934 (art. 12) trouxe para o Brasil o sistema concentrado de controle de constitucionalidade das leis, assentando que “a União não intervirá em negócios peculiares aos Estados, salvo: [..] Ocorrendo o primeiro caso do nº V, a intervenção só se efetuará depois que a Corte Suprema, mediante provocação do Procurador-Geral da República, tomar conhecimento da lei que a tenha decretado e lhe declarar a constitucionalidade”.[4] Esse modelo foi explicitamente instituído pela Emenda Constitucional nº 16, de 26 de novembro de 1965, que, sob a vigência da Constituição de 1946, criou o sistema abstrato de controle de constitucionalidade.
Influências do controle de constitucionalidade brasileiro
O grande nome do controle de constitucionalidade brasileiro, sem dúvida, é Rui Barbosa, que trouxe do sistema americano toda a base para o nosso modelo. Segundo Rui, “na opinião americana, que nosso systema constitucional assimilou, a posição do legislador é a de um mandatário, cujos poderes estão rigorosamente descriptos no instrumento formal de mandato. Esse instrumento é a Constituição”[5].
Nos Estados Unidos, o controle de constitucionalidade se deu por criação jurisprudencial, inaugurado por seu primeiro Chief Justice da Suprema Corte, John Marshall, no memorável caso Marbury x Madison (1803).[6]
Já no Brasil, como visto, o sistema de controle de constitucionalidade nasceu por criação legal – o que não retira sua origem americana, no entanto.
É do direito norte-americano, por exemplo, que extraímos o modelo difuso em geral e questões específicas até então soberanas no Brasil, como a teoria da nulidade da norma inconstitucional.
Nas palavras de Rui Barbosa: “‘Todo ato do Congresso’ (diz Kent, o grande comentador) ‘todo ato das assembléias dos Estados, toda cláusula das Constituições destes, que contrariarem a Constituição dos Estados Unidos, são necessariamente nulos. É uma verdade óbvia e definitiva em nossa jurisprudência constitucional’. Essa conseqüência resulta evidentemente da própria essência do sistema. Onde se estabelece uma Constituição, com delimitação da autoridade para cada um dos grandes poderes do Estado, claro é que estes não podem ultrapassar essa autoridade, sem incorrer em incompetência, o que em direito equivale em nulidade. Nullus est major defectus quam defectus potestatis”.[7]
A Constituição de 1988
A Constituição de 1988, tal como se tem em Portugal[8], manteve o controle misto de constitucionalidade, conjugando a fiscalização concreta ou difusa (exercida por todos os órgãos do judiciário diante dos mais variados casos concretos por eles apreciados) e o controle abstrato ou concentrado (restrito ao Supremo Tribunal Federal em casos mais relevantes).
Há grandes feitos que merecem ser destacados nessa Constituição.
Em resumo: (a) manteve a reserva do plenário e o quórum especial para declaração de inconstitucionalidade de ato normativo (art. 97); (b) manteve o papel do Senado Federal na suspensão da execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional pelo STF no controle difuso (art. 52, X); (c) ampliou o rol de legitimados (antes restrito ao Procurador-Geral da República) para provocar o STF sobre a (in)constitucionalidade mediante controle abstrato (art. 103, com alterações da Emenda Constitucional 45/03); (d) trouxe de Portugal meios para o controle da omissão estatal - o mandado de injunção (art. 5º, LXXI) e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º); (e) a Emenda Constitucional nº 03/93 criou as chamadas ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, inciso I, alínea “a”) e arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º); e (f) atribuiu às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no controle concentrado eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (art. 102, §2º, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45).
Da Constituição de 1988, no entanto, há algo muito mais importante a ser ressaltado: a consagração de um Estado Constitucional autêntico, cujas bases foram fincadas em anos de submissão, impunidade e injustiça.
É a realidade que comprovam as oportunas palavras de Konrad Hesse: “a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar em conta essa realidade”.[9] Ou, nos dizeres de Canotilho: “em primeiro lugar, qualquer constituição é o ‘presente do passado’ pois não deixa de ser ‘memória na história’ mesmo quando propõe rupturas (revolucionárias ou não) com o passado. Em segundo lugar, é ‘presente do presente’, pois ela dedica sempre uma indispensável atentio à conformação da ordem jurídica atual. Pretende ser [..] o ‘presente do futuro’ ao proclamar tarefas e fins para o futuro, mas, sobretudo, ao antecipar expectativas de se converter em lei para as gerações futuras”.[10]
Panorama atual
No dia 28 de fevereiro de 1891, como dito, o Supremo Tribunal Federal se reuniu pela primeira vez. De lá para cá, o tempo viabilizou que o STF navegasse em águas até então inalcançáveis.
Uma parcela disso é devido às Leis Federais nº 9.868/99 e nº 9.882/99 que, na prática, regulamentou todo o processo e julgamento do controle concentrado de constitucionalidade (ADI, ADC e ADPF), positivando todo entendimento jurisprudencial construído em décadas pelo STF.
As duas leis nasceram de anteprojeto relatado pelo hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes, que tem formação na Alemanha e trouxe de lá institutos que mitigaram as influências do modelo americano que reinou soberano no Brasil por anos.
Os avanços no sistema constitucional brasileiro em geral – e no controle de constitucionalidade em especial – são significativos.
Aos poucos, o STF tem abandonado o rótulo de mero legislador negativo e vem ocupando a função de protagonista nas situações que geram relevante impacto social.[11]
Fala-se com frequência em modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade a partir de uma atuação pautada em um “juízo de previsibilidade” sobre os efeitos da sentença, na expressão de Bidart Campos.[12] Em outras palavras, o STF não pode se demonstrar cego ou indiferente quanto às consequências políticas de suas decisões, inclusive como forma de evitar resultados injustos ou danosos ao bem comum, como afirma Luís Roberto Barroso.[13]
Tanto é que em quase todos os seus julgamentos relevantes, a Corte Brasileira se depara com as seguintes vias: (a) declaração de inconstitucionalidade ex nunc (com ou sem repristinação da lei anterior), que passará a produzir efeitos apenas a partir do trânsito em julgado; (b) declaração de inconstitucionalidade pro futuro (com ou sem repristinação da lei anterior), caso em que o Tribunal determinará um momento posterior ao trânsito em julgado da decisão a partir do qual esta surtirá efeitos; (c) declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, admitindo-se que se suspendam a aplicação da lei impugnada e os processos cuja solução dela dependam até que o legislador, dentro de um prazo razoável, manifeste-se a fim de superar a situação inconstitucional; e, eventualmente, (d) declaração de inconstitucionalidade dotada de efeitos retroativos, com a preservação de determinadas situações que, conforme ponderação do Tribunal, devam ser mantidas incólumes.[14]
É, como se vê, o fim da já mencionada teoria da nulidade das normas constitucionais.
Também no campo das omissões legislativas propriamente ditas o papel da Corte ganhou peculiar relevância a partir dos emblemáticos Mandados de Injunção 670, 708 e 712, que discutiam a regulamentação dos casos de greve no serviço público.
Antes deles, em se tratando de omissão vinda do Executivo (órgãos administrativos), o STF poderia ordenar que a inércia fosse suprida em 30 (trinta) dias, sob pena de responsabilização. No caso do Poder Legislativo, não havia possibilidade de fixação de prazo para que fossem tomadas eventuais providências. Depois do mencionado julgamento, o STF passou a suprir eventuais lacunas deixados pelo legislador em contrapartida aos direitos fundamentais. “A inércia arrasta consigo a descrença na Constituição Federal”, assentou o Min. Celso de Mello na época (2007) que, junto da maioria, decidiu estender as normas que regulamentam a greve na iniciativa privada ao serviço público até que norma específica regulamentasse a questão.
Trata-se de providência já presente na jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão há muito, conforme relatou Gilmar Mendes ainda nos anos 90.[15]
Conclusão
Como visto, aos poucos o Supremo Tribunal Federal tem se desgarrado da história constitucional brasileira, revendo conceitos até então defendidos por unhas e dentes pelos constitucionalistas tradicionais – esse nada mais é que o preço da evolução.
E a Corte o faz por bem: com papel mais ativo e relevante nos quadros político, social e jurídico, vem garantindo eficácia otimizada, sobretudo, aos direitos fundamentais, colocando a Constituição – na maioria das vezes – no lugar de onde nunca deveria ter saído: acima de interesses pessoais ou secundários.
Bibliografia
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Zagrebelsky, Gustavo. Historia y Constitución. Madrid: Trotta, 2005.
[1] Filho, Nagib Slaibi. Direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 197.
[2] Mendes, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, p. 237. Sobre a história do controle de constitucionalidade, v. Palu, Oswaldo Luiz. Controle de constitucionalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 110 e Bonavides, Paulo; Paes de Andrade, Antônio. História constitucional do Brasil. 4ª ed., Brasília: OAB Editora, 2002, p. 218 e s.
[3] As informações e a expressão são de Rodrigues, Lêda Boechat. A história do Supremo Tribunal Federal: defesa das liberdades civis (1891/1898). 2ª ed., Tomo I, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 14 e passim.
[4] É o que afirma, por exemplo, Mendes, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, p. 238-9.
[5] Barbosa, Rui. Comentários à Constituição Federal Brasileira. IV Volume, São Paulo: Saraiva & Cia., 1934, p. 141.
[6] Barroso, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 8.
[7] Barbosa, Rui. Atos inconstitucionais. Campinas: Russell, 2003, p. 40.
[8] Para uma visão completa acerca do controle de constitucionalidade em Portugal, duas obras são indispensáveis: Medeiros, Rui. A decisão de inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei. Lisboa: Universidade Católica, 1999 e Miranda, Jorge. Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.
[9] Hesse, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Antônio Fabris, 1991, p. 24. No mesmo sentido: Zagrebelsky, Gustavo. Historia y Constitución. Madrid: Trotta, 2005, p. 27-8.
[10] Canotilho, José Joaquim Gomes. “Brancosos” e Interconstitucionalidade. Itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. Coimbra: Almedina, 2006, p. 26.
[11] Isso não o desonera de críticas, no entanto. Sobre o tema, v. VICTORINO, Fábio Rodrigo. “Proporcionalidade e o princípio formal da competência decisória do legislador”. Revista da AGU, Ano XII, nº 38, out./dez. 2013, Brasília-DF.
[12] Campos, German J. Bidart. Manual de la Constitución reformada. Tomo III, Buenos Aires: Ediar Sociedad Anónima Editora, 2005, p. 434.
[13] Barroso, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 112.
[14] Mendes, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 395-6.
[15] Mendes, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 58.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. História e evolução do controle de constitucionalidade brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 out 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41412/historia-e-evolucao-do-controle-de-constitucionalidade-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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