Introdução
A ação declaratória de constitucionalidade (ADC) é recente na história constitucional brasileira: nasceu com a Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 1993, que deu nova redação ao art. 102, I, da Constituição Federal de 1988, atribuindo competência ao STF para processar e julgar “a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal”.
O art. 102, § 2º, também restou modificado: “as decisões definitivas demérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo”.
Sua razão de ser nasceu a partir de outra figura bem conhecida no controle de constitucionalidade: a ação direta de inconstitucionalidade (ADI). Na verdade, trata-se de ações fungíveis[1].
Isso porque, na prática, a improcedência da ADI coloca a norma questionada na condição de constitucional como se tivesse passado pelo crivo da ADC, e vice-versa. Há, pois, uma relação de subsidiariedade, fungibilidade, duplicidade e ambivalência.
Nas palavras do Min. Marco Aurélio, “são irmãs, cujo alcance é chegar-se à conclusão quer sobre o vício, quer sobre a harmonia do texto em questão com a Carta da República. O que as difere é o pedido formulado. Na ação direta de inconstitucionalidade, requer-se o reconhecimento do conflito do ato atacado com a Constituição Federal, enquanto na declaratória de constitucionalidade, busca-se ver proclamada a harmonia. A nomenclatura de cada qual das ações evidencia tal diferença”.[2]
Seja como for, segundo sistematicamente assenta o Supremo Tribunal Federal, a ADC ocupa importante papel na garantia de superioridade normativa da Constituição.[3]
Função
A ação declaratória de constitucionalidade prima pela segurança jurídica na medida em que busca confirmar definitivamente a constitucionalidade de determinada norma e afastar todas as incertezas jurídicas que a circulam.
É daí que nasce sua relação com o controle difuso: uma vez declarada a constitucionalidade de determinada norma pelo STF, subtrai-se a possibilidade de análise via controle concreto ou, ao menos, antecipa-se o juízo definitivo sobre a matéria ali discutida.[4]
Por outro lado, como se sabe, as leis e atos normativos emanados do Poder Público já são presumidamente constitucionais. Daí a crítica de alguns autores sobre a eficácia da ADC, afinal, por qual razão o constituinte derivado criaria algo para confirmar o que já é?[5]
No entanto, como se sabe, a presunção natural desses atos é relativa iuris tantum sustentável até declaração em sentido contrário do órgão jurisdicional competente.[6]
Uma vez declarada constitucional pelo STF, no entanto, aludida presunção passa a ser absoluta (iuris et de iure) dotada de efeitos vinculantes.
A transcendência dos efeitos da declaração de constitucionalidade – vinculando todo o Judiciário e Executivo (CF, art. 102, §3º) – foia ponte usada para diversas críticas sobre a ADC, cuja constitucionalidade foi questionada perante o STF.
Segundo afirmaram alguns autores[7], tal procedimento ofende aos princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal já que, por se tratar de processo objetivo (sem partes e sem lide), não viabiliza a manifestação dos interessados em seu processamento. Ao mesmo tempo, essas mesmas partes estariam privadas de obter eventual declaração de inconstitucionalidade no controle difuso, em contrapartida também ao princípio do amplo acesso ao Judiciário (CF, art. 5º, XXXV).
Nenhuma das teses foi acolhida pelo STF, que reconheceu logo na ADC nº 1/DF, Rel. Min. Moreira Alves,a constitucionalidade do instituto, além de sua aplicabilidade imediata independente de legislação regulamentar.[8]
Segundo o Relator, tais alegações são incompatíveis com os processos objetivos que formam o controle concentrado de constitucionalidade, que vão além da solução de conflitos de interesses entre litigantes.[9]
Legitimados
Quando introduzida na Constituição, a EC nº 3/93 restringiu a legitimidade para propor a ADC ao Presidente da República, à Mesa do Senado Federal, à Mesa da Câmara dos Deputados e ao Procurador-Geral da República (CF, art. 103, § 4º).
A Emenda Constitucional nº 45/2004, no entanto, revogou aludido dispositivo e conferiu legitimidade ativa para ação declaratória de constitucionalidade aos mesmos legitimados à propositura de sua antecessora ação direta de inconstitucionalidade.
Na prática,podem propor a ADC: (i) o Presidente da República; (ii) a Mesa do Senado Federal; (iii) a Mesa da Câmara dos Deputados; (iv) a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; (v) o Governador de Estado ou do Distrito Federal; (vi) o Procurador-Geral da República; (vii) o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; (viii) partido político com representação no Congresso Nacional; e (ix) confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Por outro lado, não há legitimidade passiva. Em suma, o processo se inicia com a propositura da ação, passando por parecer do Procurador-Geral da República, findando-se com a decisão do STF.
Procedimento
A competência para processar e julgar a ADC quando seu objeto for lei ou ato normativo federal é do Supremo Tribunal Federal. Veja-se que a própria Constituição distingue a sistemática da ação direta de inconstitucionalidade (leis e atos normativos federais e estaduais contestados em face da Constituição Federal) e da ação declaratória de constitucionalidade (leis e atos normativos federais com parâmetro na Constituição Federal).
Nada impede, todavia, que seja instituída pelos Estados membros em sua respectiva constituição, ainda que o constituinte federal não o tenha autorizado expressamente.[10]
O STF tem admitido, por outro lado, a figura do amicuscuriae como meio de ampliar o leque de discussões perante a Corte: “não há razão lógico-jurídica plausível para afastar a aplicação da regra prevista no § 2º do art. 7º da Lei n. 9.868/99, específico das ações diretas de inconstitucionalidade, às ações declaratórias de constitucionalidade. Nesse sentido, este Supremo Tribunal Federal já admitiu o ingresso e a sustentação oral de amicuscuriae em ação declaratória de constitucionalidade, atendidos os requisitos constantes do § 2º do art. 7º referido (ADC n. 12, j. 20.8.2008, Rel. Min. Carlos Britto, DJe 17.12.2009)”.[11]
Há quem defenda, inclusive, a possibilidade de intervenção das autoridades legitimadas à propositura da ação direta de inconstitucionalidade para contrariar o pedido formulado na ação declaratória de constitucionalidade.[12] O art. 18 da Lei nº 9.868/99 veda, no entanto, a intervenção de terceiros em sede de ação declaratória de constitucionalidade (art. 18).
O procedimento geral da ADC segue aquele fixado para ADI, com algumas peculiaridades.
A petição inicial deverá trazer o dispositivo da lei ou do ato normativo questionado e os fundamentos jurídicos do pedido (art., 14, I), o pedido com suas especificações (art. 14, II) e a existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da disposição objeto da ação declaratória (art. 14, III).
Por controvérsia judicial relevante entenda-se divergência jurisprudencial (não doutrinária) sobre o ato analisado, que deve ser demonstrada de plano.[13]
Fala-se, inclusive, em uma valoração numérica de ações que a discutam, cabendo ao autor da demanda “desde logo demonstre que se estabeleceu, em termos numericamente relevantes, ampla controvérsia judicial em torno da validade jurídica da norma federal” ou que seria “preciso – mais do que a mera ocorrência de dissídio pretoriano – que a situação de divergência jurisdicional, caracterizada pela existência de um volume expressivo de decisões conflitantes, faça instaurar, ante o elevado coeficiente de pronunciamentos judiciais colidentes, verdadeiro estado de insegurança jurídica, capaz de gerar um cenário de perplexidade social e grave comprometimento da estabilidade do sistema de direito positivo vigente no País”.[14]
Quando subscrita por advogado, a inicial deverá ser acompanhada de instrumento de procuração com poderes específicos, constando ainda, cópias do ato normativo questionado e dos documentos necessários à comprovação da procedência do pedido (art. 14, parágrafo único). Não se admitirá a desistência da ação (art. 16) e a intervenção de terceiros (art. 18), incluídos aqui o litisconsórcio e a assistência e não incluída a figura do amicuscuriae, como visto.
Caso seja considerada inepta, não fundamentada ou manifestamente improcedente, será liminarmente indeferida pelo relator (art. 15), cabendo, dessa decisão, o recurso de agravo dirigido ao plenário (art. 15, parágrafo único). Do contrário, abrir-se-á prazo de 15 (quinze) dias para pronunciação do Procurador-Geral da República (art. 19).
Findo referido prazo, o relator lançará relatório distribuindo cópias a todos os Ministros, pedindo dia para julgamento (art. 20), podendo requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que se emita parecer sobre o caso, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria (§ 1 º), além de solicitar informações pertinentes aos demais Tribunais (§ 2º).
A despeito de algumas discussões, com base no poder de cautela que guia a atuação do magistrado, pode o STF deferir medidas cautelares em sede de ADC (art. 21), ainda que a norma seja presumidamente constitucional: “o exercício do poder geral de cautela, pelo STF, em sede de ação declaratória de constitucionalidade, destina-se a garantir a própria utilidade da prestação jurisdicional a ser efetivada no processo de controle normativo abstrato, em ordem a impedir que o eventual retardamento na apreciação do litígio constitucional culmine por afetar e comprometer o resultado definitivo do julgamento”.[15]
Com a decisão final, como já dito, dá-se cabo a posteriores discussões acerca do dispositivo considerado constitucional. Há um caso, no entanto, digno de nota.
No julgamento da ADI nº 1.232, Rel. p/ acórdão Min. Nelson Jobim, o STF considerou constitucional o disposto pelo art. 20, §3º, da Lei nº 8.742/93 que fixou o limite máximo de ¼ do salário mínimo de renda mensal per capta para que a pessoa seja considerada incapaz de prover a manutenção do idoso e deficiente físico para fins de recebimento de benefício de prestação continuada. Na teoria, tal dispositivo deveria ter sido seguido à risca pelos demais órgãos do Judiciário.
Ocorre que, mesmo com tal declaração, o mencionado limite era flexionado na análise dos milhares de casos submetidos ao Judiciário que, embora não o declarassem inconstitucional, na prática, o desconsideravam.
O próprio STF, posteriormente, já havia dado indícios sobre a flexibilidade de sua decisão, assentando que aludido dispositivo, embora constitucional, estaria em processo de inconstitucionalização.[16]
Posteriormente, mudou seu entendimento no RE nº 580.963, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, cuja ementa diz tudo: “O requisito financeiro estabelecido pela Lei teve sua constitucionalidade contestada, ao fundamento de que permitiria que situações de patente miserabilidade social fossem consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto constitucionalmente. Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232-1/DF, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS. 3. Decisões judiciais contrárias aos critérios objetivos preestabelecidos e processo de inconstitucionalização dos critérios definidos pela Lei 8.742/1993. A decisão do Supremo Tribunal Federal, entretanto, não pôs termo à controvérsia quanto à aplicação em concreto do critério da renda familiar per capita estabelecido pela LOAS. Como a Lei permaneceu inalterada, elaboraram-se maneiras de contornar o critério objetivo e único estipulado pela LOAS e de avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes”.
Sobre esse julgado, uma única consideração que dá desfecho ao presente trabalho: a ausência de precisão terminológicae do próprio comando judicial só agrava a falta de segurança jurídica que, em tese, teria sido obtida com a constitucionalidade antes declarada pelo próprio STF.
Bibliografia
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Slaibi Filho, Nagib. Ação declaratória de constitucionalidade. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2000.
[1]Palu, Oswaldo Luiz. Controle de constitucionalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 227.
[2] STF, ADI 3.324, voto do Rel. Min.Marco Aurélio, julgamento em 16-12-2004, Plenário, DJ de 5-8-2005
[3] STF, ADC nº 4-6/DF MC, Rel. Min. Celso de Mello, j: 5/6/2000, In: Moraes, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 5ª ed., São Paulo: Atlas, 2005, p. 2409.
[4]Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. v. 1, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 487; Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 58.
[5]Machado, Hugo de Brito. Ação declaratória de constitucionalidade. Revista dos Tribunais, n. 697, São Paulo: RT, 1993, p. 34
[6]Barroso, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 177.
[7]Cf., por todos,Cléve,Clémerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1995, p. 189-95.
[8] STF, ADC nº 1 - QO, Rel. Min. Moreira Alves, Diário da Justiça, 16/06/95: “Incidente de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n. 03/93, no tocante à instituição dessa ação. Questão de ordem. Tramitação da ação declaratória de constitucionalidade. Incidente que se julga no sentido da constitucionalidade da Emenda Constitucional n. 3, de 1993, no tocante à ação declaratória de constitucionalidade".
[9]O voto do Min. Moreira Alves na ADC nº 1/DF foi reproduzido em:Martins, Ives Gandra da Silva; Mendes, Gilmar Ferreira (Coords.). Ação declaratória de constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 191-203.
[10]Mendes, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 369; Slaibi Filho, Nagib. Ação declaratória de constitucionalidade. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 92 e s.
[11] STF, ADC 24, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 23/03/2010.
[12] Voto do Ministro Sepúlveda Pertence na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 1/DF e Barroso, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 180.
[13] Barroso, Luís Roberto. Op. cit., p. 181; Moraes, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 5ª ed., São Paulo: Atlas, 2005, p. 2412.
[14]STF, ADC nº 8/DF MC, Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, 12/8/1999.
[15] STF, Petição nº 1.042/MS MC, Rel. Min. Celso de Mello, Informativo STF, nº 101, mar. 1998.
[16] V., dentre muitos, Rcl 4374, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 03-09-2013.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. Ação declaratória de constitucionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41522/acao-declaratoria-de-constitucionalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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