Introdução
Hoje em dia, falar de Estado de Direito é comum já que, com exceção de alguns casos isolados, sua instituição é regra na maioria dos Estados do mundo como forma de exprimir a “síntese dos princípios da ordem e liberdade”.[1]
Estado de Direito, por mais redundante que soe, é aquele que limita o Estado pelo Direito, não por homens, ainda que rotulados de governantes.“No Estado de Direito quer-se o governo das leis, e não o dos homens; impera a ruleoflaw, notofmen”, afirma Celso Antônio Bandeira de Mello referindo-se ao direito inglês.[2]
Trata-se de afirmação que remonta aos tempos de Platão, conforme expõe Karl Larenz dando ares filosóficos à coisa:
Em sentido filosófico, o Estado de Direito é um Estado no qual não “dominam” os homens, mas as leis, entendendo por tais as da razão. Se não me equivoco, esta ideia encontramos pela primeira vez na obra da velhice de Platão sobre as leis. Platão, desiludido por seu fracasso com o tirano de Siracusa, nessa obra da velhice, ao lado de sua primeira concepção de Estado, que repousa na ideia da absoluta dominação dos mais sábios (reis filósofos), estabelecia uma “segunda” constituição do Estado, que claramente contém a experiência do abuso de poder.[3]
Por mais bem definido que o conceito aparente ser, a história nos traz alguns acontecimentos que colocam o Estado de Direito como opção pouco almejada na prática num passado não muito distante. O pano de fundo de tal assertiva está ligado “à crise da lei como mecanismo de regulação social no Estado Liberal”[4] – é a ideia de Estado de Direito formal, abaixo estudada.
Estado de Direito formal e material
O chamado Estado de Direito formal foi soberano durante a República de Weimar no contexto alemão antes da Segunda Guerra. Tinha como característica o império da lei – inclusive, em detrimento da Constituição – que era lançada ao livre arbítrio dos governantes.[5]
Veja-se o que dizia na época um dos defensores desse regime, o alemão Carl Schmitt tratando dos direitos fundamentais, que na sua concepção“não podem ter lugar senão a base de leis, entendendo-se Lei, no conceito próprio do Estado de Direito, como uma norma geral e não como qualquer ato particular do Rei ou do Corpo Legislativo, realizando em forma de lei. O direito fundamental e a liberdade se encontram, pois, abaixo da salvaguarda da Lei. A proteção consiste no que a Lei, em sentido do Estado de Direito, necessita ter certas propriedades objetivas, com que se satisfaz à ideia do princípio da distribuição”.[6]
Referência na matéria é o estudo feito pelo também alemão Ernst WolfgangBöckenförde, para quem a referida característica “formal” não significava uma “forma vazia” voltada à criação de garantias formais e procedimentais para assegurar a liberdade legal e que, desde logo, fundou-se no direito positivo. Ela representa uma conformação e objetivação do princípio fundamental de seu desenvolvimento: a segurança da liberdade e da propriedade.[7]
É por isso que Böckenfördedefende a tendência burguesa daquele Estado de Direito, que confirma – e não transforma – a distribuição de bens e vai mais além: impede a intervenção direta sobre a propriedade individual para fins de redistribuição social.[8]
Com a quebra desse Estado de Direito formal pelo regime nacional-socialista, na Inglaterra se falava emruleoflaw. Na França no Etátlegal. Já a Alemanha foi obrigada a aprimorar o Estado de Direito (Rechtsstaat) a partir da superação do Estado de Polícia.
Na época, a Alemanha se viu dividida em duas novas realidades: de um lado havia um Estado social de Direito em substituição ao Estado de Direito liberal (burguês); e, do outro, os que defendiam sua substituição por um conceito material do Estado de Direito. [9]
O resultado foi a transformação do Estado de Direito formal no Estado de Direito material, em que a prevalência é primordialmente da constituição legitimamente instituída como forma de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos.
É o português Gomes Canotilho quem nos dá as características desse novo Estado de Direito, que (a) está sujeito ao direito; (b) atua através do direito e (c) legisla informado pela “ideia de direito”.[10]
Em especial, afirma o Autor: “não basta, para estarmos sob o império do direito, que o Estado observe as normas que ele ditou e atue através de formas jurídicas legalmente positivadas. As leis podem ser más. [..] É aqui que muitos autores agitam a idéia de direito, devendo o Estado pautar-se pela idéia de direito. [..] O homem comum intui perfeitamente o que é o ‘bom direito’, o que é o ‘direito justo’, o que são princípios materialmente valiosos”. [11]
Afasta-se, assim, a legitimidade de medidas arbitrárias pelos governantes e inverte-se a relação entre poder e direito que constituía a quintessência do Estado sob o regime de força ou sob o regime de polícia.[12] Tudo em prol de um ideal comum: priorizar um conjunto de valores protegidos pela constituição que deve nortear toda atuação estatal.
O mesmo Canotilho aponta os pressupostos materiais desse novo Estado de Direito. O primeiro deles, segundo o Autor, é a juridicidade, manifestada na estruturação do poder político e organização da sociedade segundo uma medida de direito como meio de ordenação racional e vinculativa. O segundo é o que chama de constitucionalidade, que exige a existência de uma constituição que sirva de ordem jurídico-normativa fundamental capaz de vincular toda atividade estatal. O terceiro e último é o centro do Estado de Direito: a instituição de direitos fundamentais como valores supremos do ordenamento.[13]
Como se vê, a construção do Estado de Direito material é a base de todo novo constitucionalismo que cada vez mais ganha força no mundo todo. Tanto é que frequentemente se vê a expressão Estado de Direito constitucional, ao invés daquela utilizada no presente trabalho.
Conclusão
Como visto, as características do Estado de Direito, da forma como é conhecido na atualidade, não comportam maiores dificuldades, já que fazem parte de nosso dia-a-dia e exprimem todos os ideais do neo-constitucionalimo, com a superação do positivismo e a insuficiência do jusnaturalismo.
O grande problema é que, para se chegar ao que se conhece hoje, a humanidade pagou caro com os resultados nefastos da Segunda Guerra, cujos protagonistas invocavam a proteção da lei para justificar suas atrocidades.
Valores hoje mais que consagrados – a dignidade da pessoa humana, por exemplo – rendiam-se ao livre talante de governantes com propósitos quase sempre calamitosos.
Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 19ª ed., São Paulo, Malheiros, 2005.
Böckenförde, Ernst Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y la democracia. Madrid: Trotta, 2000.
Cademartori, Sérgio. Estado de direito e legitimidade, uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
Gomes Canotilho, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed., Coimbra: Almedina, 2003.
Gomes Canotilho, José Joaquim. Estado de direito. Lisboa: Gradiva Publicações, 1999.
Goyard-Fabre, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Larenz, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Reimpresión, Madri: Civitas, 2001.
Luño, Antonio-Enrique Pérez. La universalidad de los derechos humanos y el Estado Constitucional. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2002.
Schmitt, Carl. Teoría de laConstitución, Madrid: Alianza, 1996.
Zagrebelsky, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. 5ª ed., Madrid: Editorial Trotta, 2003.
[1]Goyard-Fabre, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 307.
[2]Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 19ª ed., São Paulo, Malheiros, 2005, p. 90.
[3]Larenz, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Reimpresión, Madri: Civitas, 2001, p. 152.
[4]Cademartori, Sérgio. Estado de direito e legitimidade, uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 26.
[5]Luño, Antonio-Enrique Pérez. La universalidad de los derechos humanos y el Estado Constitucional. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2002, p. 61.
[6]Schmitt, Carl.Teoría de laConstitución, Madrid: Alianza, 1996, p. 180.
[7]Böckenförde, Ernst Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y la democracia. Madrid: Trotta, 2000, p. 31.
[8]Böckenförde, Ernst Wolfgang. Op. cit., p. 31. Sobre os princípios que formam um Estado burguês de Direito, em específico a República de Weimar, v.g., Schmitt, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza, 1996, p. 137 s.
[9]Böckenförde, Ernst Wolfgang. Op. cit., p. 34.
[10]Gomes Canotilho, José Joaquim. Estado de direito. Lisboa: Gradiva Publicações, 1999, p. 49-52.
[11]Gomes Canotilho, José Joaquim. Op. cit.,p. 51.
[12]Zagrebelsky, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. 5ª ed., Madrid: Editorial Trotta, 2003, p. 21-3.
[13]Gomes Canotilho, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 243 e s.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. Princípio do Estado de Direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41542/principio-do-estado-de-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.