Introdução: as normas de direitos fundamentais
Desde que consagrado a partir dos resultados da Segunda Guerra, o novo constitucionalismo retirou da norma jurídica o limite do discurso jurídico, fazendo preponderar também valores agregados pela constituição que transcendem a simples soma de enunciados jurídicos.
O ponto marcante dessa trajetória está na famosa distinção entre regras e princípios, tidos como espécies da norma jurídica. Boa parte daqueles valores acima referidos é agregada pelo próprio conceito de princípios, atuantes como mandamentos de otimização.
Os principais responsáveis por essa classificação se chamam Ronald Dworkin[1] e Robert Alexy[2], cujas teorias são amplamente adotadas no Brasil.
Segundo afirmam, os princípios são caracterizados pelo fato de encartarem valores indefinidos a serem otimizados diante do caso concreto. Por isso atuam como mandamentos de otimização, ou seja, como normas que determinam que uma medida seja aplicada da maneira mais completa possível, dentre as possibilidades jurídicas e fáticas existentes.
As regras, por sua vez, são mandamentos prescritivos aplicados mediante subsunção. Dados os fatos regulamentados por uma regra, entra em cena o sistema allornothing: ou ela é considerada válida – vindo a ser aplicada –, ou é considerada inválida, nada contribuindo para a decisão.
No conflito entre regras, uma delas há de ser declarada inválida. Para tanto são empregados critérios além de seu conteúdo, como o da hierarquia (lex superior derogatlegiinferiori), o cronológico (lex posterior derogatlegi priori) e o especial (lexspecialisderogatlegigenerali). Já na colisão entre princípios, um deve ceder ao outro em conformidade comas peculiaridades do caso concreto, estabelecendo-se entre si uma relação de precedência condicionada. Para tanto, leva-se em conta o peso atribuído a cada um dos princípios envolvendo as circunstâncias fáticas e jurídicas atingidas. A chave para solução desse tipo de colisão está na ponderação.[3]
Cinco características básicas do novo constitucionalismo são citadas por Pietro Sanchís que possuem relação direta com o tema: (a)mais princípios do que regras; (b) mais ponderação do que subsunção; (c) onipresença da constituição em todas as áreas jurídicas e em todos os conflitos minimamente relevantes, em lugar de espaços isentos em favor da oposição legislativa ou regulamentaria; (d)onipotência judicial em lugar de autonomia do legislador ordinário; e (e)coexistência de uma constelação plural de valores.[4]
Para o presente trabalho, no entanto, o que importa é que os direitos fundamentais trazidos implícita e explicitamente pela constituição são manifestados na forma de princípios, cujo conceito em essência leva à possibilidade de relativização perante o caso concreto. Assim, o conteúdo de um princípio pode ser mais resguardado em certo caso e, em contrapartida, pode ser quase esvaziado em outro.
É da expressão “quase esvaziado” que nasce o chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais.
O núcleo essencial dos direitos fundamentais
Resguardar um núcleo essencial dos direitos fundamentais é uma das vertentes do novo constitucionalismo e teve sua matriz expandida na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial com a Constituição de Bonn, conforme reconhece Jorge Reis Novais:
Pretendendo assumir as lições do período anterior, a consagração da garantia do conteúdo essencial surge, diferentemente, na Lei Fundamental de Bonn, ligada a esse esforço de atribuição de um sentido constitucional efetivo aos direitos fundamentais, que se refletiria, igualmente, como temos visto, num conjunto de outros institutos e doutrinas, desde os limites aos limites propriamente ditos e o acesso direto ao Tribunal Constitucional para defesa dos direitos fundamentais até aos princípios e regras da vinculação de todas as entidades públicas, da sua aplicabilidade imediata, do seu efeito de irradiação, da teoria do efeito recíproco, da Drittwirkung ou da associação dos direitos fundamentais ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito natural enquanto impedimentos à sua eventual afetação em processo de revisão constitucional”. [5]
Além da Constituição alemã, a Constituição portuguesa (art. 18º, nº 3º) e a Constituição espanhola (art. 53, nº 1) protegem explicitamente o núcleo essencial dos direitos fundamentais como meio de combater ao poder quase ilimitado do legislador no âmbito dos direitos fundamentais até então operante.
Nessa linha, o conceito de núcleo essencial não traz maiores dificuldades: uma garantia inatingível de cada direito fundamental, um conteúdo mínimo cuja restrição está fora de alcance do legislador ou do próprio intérprete em eventual juízo de ponderação.
Para sua correta delimitação, algumas teorias foram criadas.[6]
A primeira delas, chamada de teoria absoluta,prega que o núcleo essencial dos direitos fundamentais é uma unidade substancial autônoma que fixa seu conteúdo por si só independente de qualquer situação concreta. A norma de direito fundamental seria dividida em duas partes: um espaço suscetível de restrição e outro previamente delimitado imune a qualquer intervenção, independentemente dos valores envolvidos no caso concreto.
A segunda teoria defende o oposto: para a teoria relativa, o núcleo essencial é encarado como maleável e deve ser apurado perante cada caso concreto mediante ponderação de interesses. Em alguns casos extremos é admissível, inclusive, seu esvaziamento total.
Uma terceira teoria – a teoria mista – buscou a conciliação das duas primeiras com a seguinte fórmula: a proteção contra medidas arbitrárias e desproporcionais deve-se ter como parâmetro a ponderação de bens, assim, o núcleo essencial seria apurado em cada caso concreto (teoria relativa), porém, haverá sempre uma parcela nesse interim que não pode ser tocada (teoria absoluta).
Nesse sentido, assenta o alemão Konrad Hesse:
Na discussão sobre a interpretação indicada do artigo 19, alínea 2, da Lei Fundamental, é sustentada tanto a concepção, que a prescrição proíbe limitações desproporcionais como esta, que a determinação subtrai o “núcleo essencial absoluto” dos direitos fundamentais da disposição do legislador. A partir do ponto de vista aqui defendido, a proibição de limitações desproporcionais efetua também uma proteção absoluta do “núcleo essencial” dos direitos fundamentais, naturalmente, sob o pressuposto, que Proporcionalidade seja entendida não no sentido de uma mera perseguição de uma finalidade econômica, mas que a admissibilidade de tal perseguição de uma finalidade, exatamente, também seja aferida ao direito fundamental a ser limitado. Desse modo, são evitadas as debilidades de ambas as concepções, ou seja, por um lado, uma relativização do artigo 19, alínea 2, da Lei Fundamental, por outro, o abandono dos direitos fundamentais, que estão sob reserva legal, à disposição discricional do legislador, que só não deve violar o “núcleo essencial absoluto” a ser determinado não facilmente. [7]
Essa proposta conciliadora nos parece mais adequada e é maioria dentre os constitucionalistas. O também alemão Peter Häberle, por exemplo, defende que os limites admissíveis aos direitos fundamentais devem ser determinados por meio da ponderação de bens orientada pelo sistema objetivo de valores da constituição. Só se admite limitações conforme a essênciadesses direitos fundamentais.[8]
Nesse contexto, é possível ir mais além: a nota característica do chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais está num conceito bem conhecido: a dignidade da pessoa humana.
Veja-se o que diz Willis Santiago Guerra Filho, referência no Brasil quando o assunto é princípio da proporcionalidade e ponderação de bens:“para resolver o grande dilema da interpretação constitucional, representado pelo conflito entre princípios constitucionais, aos quais se deve igual obediência, por ser mesma a posição que ocupam na hierarquia normativa, preconiza-se o recurso a um ‘princípio dos princípios’, o princípio da proporcionalidade, que determina a busca de uma ‘solução de compromisso’, na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo o(s) outro(s), e jamais lhe(s) faltando totalmente com respeito, isto é, ferindo-lhe(s) seu ‘núcleo essencial’, onde se acha insculpida a dignidade da pessoa humana”.[9]
Conclusão
Ao cabo, dar a natureza de princípio aos direitos fundamentais significa o mesmo que reconhecer a possibilidade de restrição (seja ela legislativa ou do conflito com outros princípios da mesma hierarquia). A depender do juízo de ponderação e em situações extremas pode, inclusive,ter seu conteúdo praticamente exaurido. Nunca, porém, esvaziá-lo de tal forma que a dignidade humana nele envolvido seja atingida.
Bibliografia
Alexy, Robert.Colisão e Ponderação como Problema Fundamental da Dogmática dos Direitos Fundamentais. Palestra proferida na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em 10.12.98. Tradução informal de Gilmar Ferreira Mendes.
Alexy, Robert. El Concepto y la Validez del Derecho. Barcelona: Gedisa, 2004, p. 162 e s.; Tres Escritos sobre los Derechos Fundamentales y la Teoría de los Principios. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003.
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Barros, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e as normas restritivas de direitos fundamentais. 3ª ed., Brasília: Brasília Jurídica, 2003.
Biagi, Cláudia Perotto. A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais na jurisprudência constitucional brasileira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005.
Dworkin, Ronald. Levando os Direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Guerra Filho, Willis Santiago. O princípio da proporcionalidade e a teoria do direito. In: Guerra Filho, Willis Santiago; Grau, Eros Roberto (orgs.). Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. Malheiros: São Paulo, 2003.
Häberle, Peter. La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales. Madrid: Dykinson, 2003.
Hesse, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998.
Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002.
Miranda, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1998.
Novais, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.
Queiroz, Cristina M. M. Direitos fundamentais (teoria geral). Coimbra: Coimbra Editora, 2002.
Sanchis, Luis Pietro. “Neoconstitucionalismo y ponderación judicial”, in Miguel Carbonell (ed.), Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003.
Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3ª ed., Porto Alegre: Livraria do advogado, 2004.
Vieira de Andrade, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3ª ed., Coimbra: Almedina, 2004.
[1]Dworkin, Ronald.Levando os Direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002 (a primeira edição original TalkingRightsSeriouslyé de 1977).
[2]Alexy,Robert. Theorie der Grundrechte, Suhrkamp, Frankfurt, 1994 (a primeira edição original Theorie der Grundrechteé de 1986). Do Autor, v. ainda: El Concepto y la Validez del Derecho. Barcelona: Gedisa, 2004, p. 162 e s.; Tres Escritos sobre los Derechos Fundamentales y la Teoría de los Principios. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003, p. 107 e s.; e, respondendo a críticas, Epílogo a la Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: FundaciónBeneficientiaet Perita Iuris, 2004, p. 13 e s.
[3]Alexy,Robert.Colisão e Ponderação como Problema Fundamental da Dogmática dos Direitos Fundamentais. Palestra proferida na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em 10.12.98. Tradução informal de Gilmar Ferreira Mendes; Sanchís,Luis Pietro. “Neoconstitucionalismo y ponderación judicial”, in Miguel Carbonell (ed.), Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 123 e s.
[4]Sanchís,Luis Pietro. “Neoconstitucionalismo y ponderación judicial”, p. 131.
[5] Novais, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 779.
[6] Sobre as teorias do núcleo essencial, vide, sobretudo: Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 243-4; Miranda, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 307-8; Novais, Jorge Reis. Op. cit.,p. 782; Vieira de Andrade, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3ª ed., Coimbra: Almedina, 2004, p. 303 e s.; Biagi, Cláudia Perotto. A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais na jurisprudência constitucional brasileira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 80; Barros, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e as normas restritivas de direitos fundamentais. 3ª ed., Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 101; Queiroz, Cristina M. M. Direitos fundamentais (teoria geral). Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 212.
[7]Hesse, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 267-8.
[8]Häberle, Peter. La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales. Madrid: Dykinson, 2003, p. 52.
[9]Guerra Filho, Willis Santiago. O princípio da proporcionalidade e a teoria do direito. In: Guerra Filho, Willis Santiago; Grau, Eros Roberto (orgs.). Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. Malheiros: São Paulo, 2003, p. 269. Em sentido análogo, v. Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3ª ed., Porto Alegre: Livraria do advogado, 2004, p. 59-60.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. O núcleo essencial dos direitos fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41570/o-nucleo-essencial-dos-direitos-fundamentais. Acesso em: 23 dez 2024.
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