Sumário: Introdução; 1. As teorias da ação; 2. Ação x jurisdição; Considerações finais; Referências bibliográficas.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo expor, em breve síntese, a evolução das teorias jurídicas relacionadas à ação, tema de inquestionável importância para o direito processual civil.
No decorrer do texto, serão abordadas as diversas teorias que tiveram por objeto o estudo da ação, desde o romanismo até sua concepção moderna, passando pela clássica, apontando suas peculiaridades.
Ato contínuo se fará uma abordagem da ação, no que se refere com sua inter-relação com o conceito de jurisdição.
Com isto, espera-se fornecer elementos que ajudem a melhorcompreender o tema objeto do presente estudo, que é essencial para o entendimento de tantos outros no campo do direito processual civil.
1. As teorias da ação
Segundo a teoria romanista, a ação não era considerada um direito em si, mas estava atrelada ao direito subjetivo, traduzindo a possibilidade de exigência de seu cumprimento (concepção adotada pelo CC de 1916, em seu art. 75: “a todo o direito corresponde uma ação, que o assegura”). Assim, o conceito de ação confundia-se com a própria demanda judicial. Direito processual e material eram considerados facetas da mesma moeda.
De acordo com a doutrina:
“A concepção romanista é normalmente ligada ao nome de Celso, que afirmava: ‘não há ação sem direito; não há direito sem ação; a todo direito corresponde uma ação’. Essas formulações deixam claro que, na concepção civilista, a ação não é apresentada propriamente como um direito específico, mas como uma faceta do próprio direito subjetivo. Nesse sentido, a existência do direito material confere ao seu titular a possibilidade de exercer uma ação, que nada mais seria além da exigência de cumprimento do próprio direito.[1]”
E ainda:
“No processo romano não havia distinção nítida entre a relação jurídica processual e a relação jurídica material no processo deduzida. A ação, neste contexto, era o próprio direito material violado, cujo exercício se dava perante os tribunais da época. Esta vinculação do direito de ação ao direito material ainda é bastante visível nas leis civis, que vez por outra falam que alguém ‘tem ação contra’ outrem. Fala-se, por exemplo, em ‘ação regressiva’, como sinônimo de direito de reembolso.[2]”
Válido destacar que naquele contexto histórico havia uma limitação da atividade dos juízes (seletividade), pois os magistrados apenas atuavam em situações em que houvesse uma prévia definição de uma actio, razão pela qual a jurisdição era restrita a um número pequeno de demandas e relacionado a uma reduzida camada da sociedade, possuidora de maior capacidade econômica.
Já a teoria clássica/tradicional (monista, civilista ou imanentista), avançando no estudo do tema, traz a ideia de que a ação é um direito que decorre da violação de um direito subjetivo.
Desse modo, a ação não se confunde com a própria demanda; antes lhe antecede, na medida em que, segundo a doutrina, caracteriza-se como “a violação do direito que faz nascer uma nova relação obrigacional entre as partes, cujo objeto não é a prestação inicialmente ajustada, mas o direito de exigir judicialmente o cumprimento das obrigações definidas na relação original.[3]” O descumprimento da relação jurídica de direito material como gênese do direito processual.
Pela clareza dos ensinamentos, oportuno se faz a transcrição de trecho da obra de Daniel Amorim Assumpção Neves[4] sobre a teoria clássica/imanentista, o qual toma por base as lições de Galeno Lacerda e Marinoni:
“Na teoria imanentista o direito de ação é considerado o próprio direito material em movimento, reagindo a uma agressão ou a uma ameaça de agressão. Nessa concepção, que não consegue entender o direito de ação como direito autônomo, quando há respeito ao direito material, ele remanesce estático, colocando-se em movimento somente no caso de agressão ou ameaça, hipótese na qual passa a ser considerado direito de ação. É evidente que na teoria imanentista não existe direito de ação sem existir direito material, até porque se trata do mesmo direito em diferentes estados (estático e em movimento). Para os defensores desta teoria, o direito de ação é um poder que o indivíduo possui contra o seu adversário e não contra o Estado, sendo o processo um mero procedimento, ou seja, um conjunto de atos coordenados visando à obtenção de um objetivo final.” (Destaques do original).
E, ao final, arremata:
“A ideia de ser o direito material e o direito de ação um mesmo direito já foi há tempos abandonada, tendo atualmente tão somente interesse histórico. Mais precisamente, deve-se à famosa polêmica entre Windscheid e Muther, dois romanistas estudiosos do conteúdo da actio romana, a superação da confusão realizada pela teoria imanentista. A partir dessa polêmica e de estudos posteriores, como a clássica obra de Oscar Von Bullow a respeito dos pressupostos processuais, o direito processual passou a ser estudado de forma científica, e o direito de ação passou a ser diferenciado do direito material.”
Fica clara, pois, a modificação do conceito de ação entre a concepção romanista e a clássica.
Já segundo a teoria moderna, a ação seria um direito subjetivo público (oponível contra o Estado), autônomo (independente do direito material) e abstrato (independente do resultado da demanda).
Para o pensamento publicista, era uma incongruência pensar que a ação era uma relação obrigacional meramente privada entre as partes. Mais que isso, era uma relação pública, desenvolvida entre autor e Estado, na medida em que o cidadão tinha o direito subjetivo de exigir do estado uma resposta à sua demanda (universalização da jurisdição).
No ponto, válido transcrever a doutrina de dois autores que discorrem, de modo bastante lúcido, sobre o pensamento publicista:
“Com efeito, o processo distancia-se de uma conotação privatística, deixando de ser um mecanismo de exclusiva utilização individual para se tornar um meio à disposição do Estado para a realização da justiça, que é um valor eminentemente social. O processo está voltado à tutela de uma ordem superior de princípios e de valores que estão acima dos interesses controvertidos das partes (ordem pública) e que, em seu conjunto, estão voltados à realização do bem comum. a preponderância da ordem pública sobre os interesses privados em conflito manifesta-se em vários pontos da dogmática processual, tais como, por exemplo, na garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição, na garantia do juiz natural, no impulso oficial, no conhecimento de ofício (objeções) e na autoridade do juiz, na liberdade de valoração das provas, no dever de fundamentação das decisões judiciais, nas nulidades absolutas, nas indisponibilidades, non contraditório efetivo e equilibrado, na ampla defesa, no dever de veracidade e de lealdade, na repulsa à litigância de má-fé etc. Desse modo, os fins públicos buscados pelo processo, como instrumento democrático do poder jurisdicional transcendem os interesses individuais das partes na solução do litígio. Essa visão publicista, imposta pela constitucionalização dos direitos e garantias processuais (neoprocessualismo), não se esgota na sujeição das partes ao processo.[5]” (g.n.)
“Logo se notou que esse paradoxo poderia ser facilmente superado caso se entendesse que a ação não era uma relação obrigacional privada entre as partes, mas uma relação pública entre autor e Estado. Com a instituição dos Estados de direito, mudou a conformação jurídica, que passou a reconhecer a todos os cidadãos direitos iguais e prometeu um acesso irrestrito à justiça. Nunca antes a autoridade dos juízes havia sido reconhecida de maneira tão ampla: eles deveriam tratar de todos os casos regulados pelo direito, e não apenas julgar as ações que definiam as demandas judiciáveis.[6]” (g.n.)
No Brasil a principal concepção vigente é a eclética, sob a influência mais relevante de Liebman:
“A teoria eclética que mais influencia o processo brasileiro é a de Enrico Tullio Liebman, que foi aluno de Chiovenda e introduziu o seu pensamento no Brasil na década de 1940.Liebman seguia a tese de que a ação é um direito abstrato de invocar a prestação do Estado, mas fazia algumas concessões à teoria concretista, condicionando a existência da ação à presença de algumas condições especiais, cuja ausência resultava na inexistência do direito de ação. Eram elas: a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade das partes e o interesse de agir.” (g.n.)
A percepção abstrativista da teoria moderna (a ação como direito público que independe do resultado da demanda) se opunha à tese concretista, no sentido de que o direito de ação estava intimamente ligado com o resultado (êxito) da demanda, do qual dependia. Se não houvesse o direito material, não haveria, tampouco, o direito processual à ação.
Embora, tenha prevalecido a concepção abstrativista da ação, a teoria eclética (daí sua nomenclatura), adota um pouco da teoria advinda dos concretistas, ao admitir que, em determinadas situações (como no excerto acima exemplificou: possibilidade jurídica do pedido, legitimidade das partes, interesse de agir, por exemplo), alguns elementos de direito material interfeririam efetivamente no direito processual à ação, restringindo-o.
Em outras palavras, vige o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (art. 5°, XXXV, da CRFB/88) e o cidadão tem direito a uma resposta do Judiciário. No entanto, em determinação situações, como na ilegitimidade ativa, a parte que ajuizou uma demanda não obterá do Estado, por meio do Judiciário, uma resposta, de mérito, para seu pedido, eis que lhe faltaria uma condição da ação, que inviabilizaria o desfecho inicialmente pretendido.
2. Ação x jurisdição
Sob esse viés publicista do direito da ação, nos termos dos excertos acima,a jurisdição – o poder estatal de “dizer/impor o direito”[7] – tem ganhado cada vez maior autonomia e poder, principalmente diante de um ativismo judicial progressivamente percebido.
Isso porque o princípio da inércia da jurisdição tem sido relativizado, abrindo espaços para uma atuação mais proativa dos juízes, com o fundamento de angariar elementos para a formação de sua convicção, o que, inclusive, encontraria respaldo constitucional, quando se tem como foco a busca pela efetividade de uma jurisdição que viabilize o processamento e o julgamento de ações de modo justo, célere e imparcial.
Aqui, oportuna a lição de Barbosa Moreira sobre a matéria:
“Ao longo dos últimos anos, reformas processuais em vários países têm tratado de reforçar os poderes do juiz na direção do feito e na atividade de instrução. A ideia subjacente a essas reformas, ocioso ressaltar, é a de que o processo deve chegar a um resultado justo, de preferência com dispêndio mínimo de tempo e energias. Ora, o que normalmente quer cada uma das partes é sair vitoriosa, tenha ou não razão: pouco lhe importa, em regra, que se mostre justo o resultado, desde que lhe seja favorável; e, quando não tem razão, importa-lhe de ordinário retardar o desfecho do pleito. Há de existir alguém que atue imparcialmente no sentido de que o processo tenha marcha regular e venham aos autos todos os elementos necessários para que o julgamento corresponda, na medida do possível, à realidade. Esse alguém não pode ser outro senão o órgão judicial; por conseguinte, é mister provê-los dos meios indispensáveis para que ele possa desincumbir-se cabalmente de sua função.[8]”
Nesse contexto de protagonismo crescente da jurisdição, o Juiz deixa de ser visto como mero espectador do “duelo” das partes para ser também fundamental ator do “diálogo processual”,evidenciando que o conceito de jurisdição tem superado em importância o de ação.
E, para reforçar esse pensamento, faz-se válido destacar o princípio da colaboração a que o magistrado se vincula no processamento dos feitos sob sua responsabilidade, o qual, muito embora não previsto em nossa legislação, extrai sua autonomia do contraditório e do devido processo legal, impondo ao juiz três deveres principais: a) de esclarecimento (dever de esclarecer às partes a razão de suas decisões e ser claro para a compreensão das partes), b) de proteção/prevenção (o juiz ao constatar um defeito no processo tem o dever de apontá-lo e ainda de dizer como se deve corrigi-lo) e c) o dever de consulta (o juiz não pode decidir com base em questão de fato ou de direito sobre a qual as partes não tiveram a oportunidade de se manifestar).[9]
Daí, percebe-se que a atuação do Magistrado, na sua atividade de dizer o direito, tem ganho papel de destaque na marcha processual atual, distante da ideia de uma inércia processual que já vingou no direito processual civil brasileiro.
Considerações finais
Diante do estudo do tema, portanto, é possível constatar as várias modificações que o conceito de ação sofreu ao longo do tempo e a tendência, pelo menos sob o viés histórico (atrelado à mutabilidade do direito), que o termo ação continue a enfrentar questionamentos e sofrer mutações.
Também é possível perceber o seu entrelaçamento com o conceito de jurisdição, isto é, de dizer o direito, positiva ou negativamente, em relação às ações ajuizadas, evidenciando a importância crescente de tal atividade, desempenhada pelo Poder Judiciário (em verdade, função judiciária, eis que o Direito é uno).
A partir deste breve artigo, portanto, espera-se ter fornecido elementos capazes de ajudar a compreender um pouco mais as teorias que envolvem o tema ação, fundamental para um entendimento mais aprofundado do tema
Bibliografia
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Leituras complementares de processo civil. 6ª. Ed. Bahia - JusPodivm, 2008. Págs. 157/158.
COSTA, Henrique Araújo e COSTA, Texto-base 1: Alexandre Araújo. Conceito de ação: da teoria clássica à moderna. Continuidade ou ruptura? - DF: CEAD/UnB, 2012. (Pós-graduação lato sensu em Direito Público). Disponível em: <http://moodle.cead.unb.br/agu/>. Acesso em: 15/05/2013.
Daniel Amorim Assumpção NevesManual de direito processual civil - 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010.
DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil, Vol. 1. 14ª Ed. Bahia: JusPodivm –2012.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O neoprivatismo no processo civil. Leituras complementares de processo civil. 6ª. Ed. Bahia - JusPodivm, 2008.
[1] COSTA, Henrique Araújo e COSTA, Texto-base 1: Alexandre Araújo. Conceito de ação: da teoria clássica à moderna. Continuidade ou ruptura? - DF: CEAD/UnB, 2012. (Pós-graduação lato sensu em Direito Público). Disponível em: <http://moodle.cead.unb.br/agu/>. Acesso em: 15/05/2013. Pág. 6.
[2]DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil, Vol. 1. 14ª Ed. Bahia: JusPodivm –2012. Pág. 207.
[3]COSTA, Henrique Araújo e COSTA. Ob. Cit. Pág. 7.
[4]Manual de direito processual civil - 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010. Págs. 79/80.
[5]CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo.Leituras complementares de processo civil. 6ª. Ed. Bahia - JusPodivm, 2008. Págs. 157/158.
[6]COSTA, Henrique Araújo e COSTA. Ob. Cit. Pág. 8.
[7] Para um conceito mais preciso de jurisdição, conferir: DIDIER Jr., Fredie. Ob. Cit. Pág. 95.
[8] MOREIRA, José Carlos Barbosa. O neoprivatismo no processo civil. Leituras complementares de processo civil. 6ª. Ed. Bahia - JusPodivm, 2008. Pág. 31.
[9]Conferir, a respeito, DIDIER, Jr. Ob. Cit. Pág. 84 e ss.
Procurador Federal e Professor de Processo Civil da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS). Pós-graduado em Direito Público (UnB/AGU), em Direito da Economia e da Empresa (Fundação Getúlio Vargas - FGV) e em Relações Internacionais (Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAGA, Bruno César Maciel. Teorias da ação: sua evolução em breves linhas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41585/teorias-da-acao-sua-evolucao-em-breves-linhas. Acesso em: 23 dez 2024.
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