Introdução
O princípio da proporcionalidade tem ganhado cada vez mais utilidade prática depois da consagração do novo constitucionalismo, sobretudo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Como era de se esperar, o crescimento dessa utilidade prática traz consigo uma porção redobrada de questões teóricas.
Nossa preocupação no presente trabalho nasceu da irônica colocação de Inocêncio Mártires Coelho: “Como aplicar, com segurança, o multifuncional princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, essa espécie de vara de condão de que se valem as cortes constitucionais – e não apenas elas – para fazer milagres hermenêuticos de que até Deus duvida?”.[1]
Tirando a ironia e a impropriedade teórica (!) de se comparar razoabilidade e proporcionalidade, afinal, qual a relação desta última com a hermenêutica constitucional? Seria a proporcionalidade um daqueles princípios de hermenêutica criados pelo alemão Konrad Hesse[2] e amplamente difundidos no Brasil por Canotilho[3]?
A doutrina brasileira
Analisando alguns estudo feitos por autores brasileiros há uma confusão generalizada.
Gustavo Ferreira Santos, por exemplo, define o princípio da proporcionalidade como um princípio formal ou procedimental, sem deixar de reconhecer, porém, alguns elementos materiais que acompanham sua aplicação, no caso, os direitos fundamentais protegidos ou sopesados. Nesse ponto de vista, o princípio da proporcionalidade ocuparia o papel de verdadeiro princípio de interpretação, servindo como instrumento de proteção aos direitos fundamentais.[4]
Tudo isso implica na impossibilidade de se declarar uma norma inconstitucional por violar o princípio da proporcionalidade, segundo afirma. Nesse caso, a norma é inconstitucional por violar os direitos fundamentais envolvidos, sendo o princípio da proporcionalidade instrumento para constatar tal inconstitucionalidade.[5]
De plano, percebe-se a ligação do princípio da proporcionalidade com o princípio da concordância prática. Ambos os princípios, frequentemente equiparados, – segundo o Autor – se distinguem por sua própria estrutura: o princípio da concordância prática se aproxima ao terceiro subprincípio formador da proporcionalidade (proporcionalidade em sentido estrito) e envolve somente questões jurídicas. Já o princípio da proporcionalidade em si, envolve tanto questões fáticas, quanto jurídicas.[6]
David Diniz Dantas, embora reconhecidamente não considere o princípio da proporcionalidade como método de interpretação das normas constitucionais, acaba por considerá-lo como princípio de interpretação constitucional, presente nos casos de antagonismo entre preceitos constitucionais.[7]
Opinião semelhante está em Helenilson Cunha Pontes. Segundo o Autor, reduzir o princípio da proporcionalidade a mero método de interpretação/aplicação do direito implica em desconsiderar todo conteúdo normativo desse princípio. Isto porque, método é resultado da escolha do intérprete, já o princípio da proporcionalidade não se resume em mera alternativa, mas sim, uma imposição decorrente do Estado de Direito, sob pena de inconstitucionalidade da medida tomada.[8]
Mais adiante, ao distinguir proporcionalidade de razoabilidade o Autor acaba por considerar que ambos constituem princípios de interpretação, que apelam ao livre arbítrio do interprete/aplicador da regra (jurídica, moral ou ética), sujeita à interpretação-interpretação, sendo a proporcionalidade, ainda, princípio jurídico material decorrente do Estado Democrático de Direito.[9]
Celso Ribeiro Bastos afirma que o princípio da proporcionalidade é o primeiro passo na compreensão das insuficiências dos chamados métodos tradicionais de interpretação (gramatical, histórico, sistemático, teleológico e lógico), servindo como guia à atividade interpretativa, que apresenta considerável subjetividade frente aos fins pretendidos pelo intérprete.[10]
Sylvia Marlene de Castro Figueiredo, tratando especificamente do tema, considera o princípio da proporcionalidade como princípio de interpretação constitucional a serviço do método hermenêutico-concretizante[11], que na concepção seguida pela Autora, consiste na compreensão da constituição partindo de sua pré-compreensão, buscando um preenchimento juridicamente inovador e concretizando a norma a partir de uma situação histórica concreta.[12]
Ainda mencionando (não defendendo) o princípio da proporcionalidade como princípio de interpretação presente sempre no caso de colisão entre direitos fundamentais, temos Luís Roberto Barroso[13], Paulo Arminio Tavares Buechele[14] e Francisco Fernandes de Araújo[15].
Paulo Bonavides liga o princípio da proporcionalidade, enquanto método interpretativo, diretamente à tópica. Assim, justifica o Autor: “com efeito, o critério da proporcionalidade é tópico, volve-se para a justiça do caso concreto ou particular, se aparenta consideravelmente com a equidade e é um eficaz instrumento de apoio às decisões judiciais que, após submeterem o caso a reflexões prós e contras (Abwägung), a fim de averiguar se na relação entre meios e fins não houve excesso (Übermassverbot), concretizam assim a necessidade do ato decisório de correção”.[16]
Já Eros Roberto Graudefende que proporcionalidade e razoabilidade não são princípios, mas sim, postulados normativos da interpretação/aplicação do direito, com ênfase na chamada “nova hermenêutica”, que superou os velhos cânones da interpretação.[17]
Trata-se de afirmativa também defendida por Humberto Ávila, que considera a proporcionalidade como postulado normativo aplicativo específico, ou seja, é norma estruturante da aplicação dos princípios e regras, cuja aplicabilidade está vinculada a um fim específico: relação de causalidade entre meio e fim.[18]
A tese mais acertada – que analisou o problema como um todo e com propriedade –foi sustentada por Wilson Antônio Steinmetz.
O Autor, reconhecendo que o princípio da proporcionalidade não é um princípio de interpretação, parte da distinção entre ponderação e interpretação posta por Canotilho, que assim distingue ambas atividades:
Assim, a ponderação de bens possui autonomia em relação à interpretação, a quem compete atribuir sentido ou significado às normas. Já a ponderação, partindo dos resultados obtidos pela interpretação, vem como forma de solucionar o conflito entre princípios.[20]
Isso leva à conclusão de que, embora indispensável, a interpretação constitucional não é suficiente diante da colisão entre direitos fundamentais.
Sendo a ponderação equiparada ao terceiro subprincípio da proporcionalidade, qual seja, a proporcionalidade em sentido estrito, e reconhecendo a distinção entre ponderação e interpretação, o princípio da proporcionalidade jamais pode ser considerado princípio de interpretação constitucional propriamente dito.
Admitir o contrário seria o mesmo que reconhecer que caberá ao intérprete escolher o momento de sua aplicação e o que é pior: de acordo com seus próprios objetivos.
O princípio da proporcionalidade, decorrendo do Estado de Direito e atuando como forma de garantir eficácia aos direitos fundamentais, verdadeira imposição do texto constitucional é mais que isso: possui aplicabilidade obrigatória quando presente qualquer restrição desarrazoada ou no caso de colisão entre tais garantias, usando de seus três subprincípios formadores. Trata-se de norma que está intrínseca na própria estrutura dos princípios encarados como mandamentos de otimização.
Sua função hermenêutica, como lembra Willis Guerra Filho, seria no máximo de hierarquizar, perante uma situação concreta de conflito, todos os demais princípios envolvidos no caso concreto analisado, fornecendo, por consequência, unidade e consistência almejadas. Ou ainda: que tais princípios sejam interpretados e aplicados de acordo com a racionalidade apta a determinar qual a melhor dentre as diversas interpretações possíveis.[21]
Tal fato leva à conclusão de que o princípio da proporcionalidade está acima dos princípios de hermenêutica e, como tal, busca dentre outros objetivos a unidade da constituição, a máxima efetividade das normas, a concordância prática de valores etc.
Bibliografia
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STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
[1]COELHO, Inocêncio Mártires. Racionalidade hermenêutica: acertos e equívocos. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. As vertentes do Direito Constitucional contemporâneo: estudos em homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 364.
[2]HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Antonio Fabris, 1998, p. 65-8.
[3]CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998, p.1096 e s.
[4]SANTOS, Gustavo Ferreira. O Princípio da Proporcionalidade na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Limites e Possibilidades. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 143-4.
[5] SANTOS, Gustavo Ferreira. Op. Cit., p. 145.
[6] SANTOS, Gustavo Ferreira. Op. Cit., p. 132-5.
[7] DANTAS, David Diniz. Interpretação Constitucional no Pós-Positivismo: teoria e casos práticos. São Paulo: Madras, 2004, p. 268 e s.
[8]PONTES, Helenílson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o Direito Tributário, São Paulo: Dialética, 2000, p. 54.
[9] PONTES, Helenílson Cunha. Op. Cit., p. 86-9.
[10]BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 3ª ed., São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, p. 232-3.
[11] FIGUEIREDO, Sylvia Marlene de Castro. A Interpretação Constitucional e o Princípio da Proporcionalidade. São Paulo: RCS Editora, 2005, p. 229.
[12] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit., p. 1086.
[13] Embora não justifique expressamente os motivos que o levaram a reconhecer o princípio da proporcionalidade como princípio de interpretação constitucional, o Autor, em sua obra Interpretação e Aplicação da Constituição, trata do referido princípio justamente no capítulo titulado Princípios de Interpretação Especificamente Constitucional. (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 218 e s.)
[14] BUECHELE, Paulo Arminio Tavares. O princípio da proporcionalidade e a Interpretação da Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 165 e s.
[15] Tal Autor, além de considerar o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade como princípios de interpretação, atribui a esse último a característica de princípio de calibragem ou dosimetria da criação e aplicação da norma (ARAUJO, Francisco Fernandes de. Princípio da Proporcionalidade: Significado e aplicação prática. Campinas: Editora Copola, 2002, p. 54).
[16]BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 426.
[17] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 2ª ed., São Paulo, Malheiros, 2003, p. 181.
[18]AVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 89 e s.
[19] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit., p. 1109-0.
[20]Os pressupostos básicos da ponderação são: (a) a colisão de direitos fundamentais e bens constitucionalmente protegidos, na qual a realização ou otimização implica a afetação, a restrição ou até mesmo a não realização do outro; (b) a inexistência de uma hierarquia abstrata, a priori, entre os direitos em colisão (STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 142).
[21] GUERRA FILHO, Willis Santiago. Princípio da Proporcionalidade e Teoria do Direito. In: Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. Organizadores: Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 271 e s.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. O princípio da proporcionalidade e a interpretação constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41589/o-principio-da-proporcionalidade-e-a-interpretacao-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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