Com a evolução do Estado, evidencia-se uma maior influência do direito constitucional sobre os demais “ramos” do direito, inclusive sobre o direito administrativo, que, deve-se reconhecer, sempre esteve próximo ao direito constitucional, por serem talvez, os dois grandes representantes do chamado “direito público”.
Na verdade, hodiernamente mostra-se absolutamente superada a classificação dicotômica do direito em “ramos” público e privado. Nesse sentido, ensina Pedro Lenza (2007, páginas 37-38):
"(...) apesar da “suposta” utilidade didática, parece mais adequado não mais falar em ramos do direito mas em um verdadeiro escalonamento verticalizado e hierárquico das normas, apresentado-se a Constituição como norma de validade de todo o sistema, situação esta decorrente do princípio da unidade do ordenamento e da supremacia da Constituição (...)”
destaques no original
Estabelecida esta verdade – a Constituição como instrumento jurídico-positivo orientador e conformador de todo o ordenamento jurídico subjacente – mostra-se extremamente necessária a compreensão dos princípios estabelecidos pela Magna Carta a respeito das diversas atividades por ela reguladas.
Cabe aqui registrar uma singela noção sobre as normas jurídicas e sua divisão entre regras e princípios. A diferenciação é explicitada pela doutrina. Com efeito, Robert Alexy (2002, página 87) apresenta um fator que facilita tal compreensão, afirmando que a diferença entre regras e princípios é de caráter qualitativo e não de grau, sendo o princípio um mandamento de otimização, que deve ser aplicado da forma mais ampla e completa possível.
Assim, as regras são prescrições mais específicas e conduzem a conseqüências mais certas e determinadas. Já os princípios são diretrizes gerais e sua incidência é maior e mais ampla que o das regras, tendo, por esta razão, incidência em vários casos concretos (sendo um mandamento de otimização, alcança a maior quantidade de situações possíveis).
A atividade da Administração Pública tem especial atenção na Constituição Federal de 1988, que estabeleceu na cabeça do artigo 37, 05 (cinco) princípios norteadores para o agente público e para o particular que com o Estado se relacione: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Como ensina a doutrina (MELLO, 2008, página 192), os princípios expressos constantes do artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988, geralmente decorrem de outro (grande) princípio, como, por exemplo, a supremacia do interesse público sobre o privado, que inspira e direciona toda a atividade administrativa executada pelos agentes públicos do Estado, bem como os particulares que com ele se relacionam.
Segundo DI PIETRO (2008, páginas 75 a 77), o princípio da moralidade possui autonomia em relação ao princípio da legalidade. Quando determinada conduta é ilegal, há ofensa ao princípio da legalidade e, obviamente, à moralidade. Sim, pois a conduta que se pretende evitar já foi considerada imoral (não aceita pela sociedade) e inserida em texto legal.
Contudo, mesmo quando a conduta não ofende expressa ou diretamente uma lei, ainda assim, pode não ser considerada ética.
Com efeito, a probidade administrativa já era mencionada antes da CF/88 como algo a ser obedecido pelos agentes públicos e pelos particulares que lidam com a administração. Porém, com a CF/88, houve avanço ao conferir expressamente autonomia ao princípio da moralidade (DI PIETRO, 2008, página 77).
Assim, mesmo que determinado ato não se enquadre perfeitamente a uma previsão legal, pode o mesmo ser evitado ou punido socorrendo-se do princípio da moralidade, caso ocorra ofensa aos bons costumes, as regras de boa administração, à honestidade, et coetera.
É comum, também, que determinado ato ofenda vários princípios constitucionais da Administração Pública, sendo que, nesse caso, o princípio da moralidade reforça a idéia de repúdio àquele comportamento flagrantemente contrário à ordem jurídica.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal ao julgar a ADI 4125/TO afastou evidente desrespeito ao princípio da moralidade em um caso em que o Estado do Tocantins pretendia criar quadro de servidores públicos quase que em sua totalidade compostos por ocupantes de cargos em comissão, sem a exigência de concurso público.
Por pertinente, veja-se a ementa do julgado:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EXPRESSÃO “CARGOS EM COMISSÃO” CONSTANTE DO CAPUT DO ART. 5º, DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 5º E DO CAPUT DO ART. 6º; DAS TABELAS II E III DO ANEXO II E DAS TABELAS I, II E III DO ANEXO III À LEI N. 1.950/08; E DAS EXPRESSÕES “ATRIBUIÇÕES”, “DENOMINAÇÕES” E “ESPECIFICAÇÕES” DE CARGOS CONTIDAS NO ART. 8º DA LEI N. 1.950/2008. CRIAÇÃO DE MILHARES DE CARGOS EM COMISSÃO. DESCUMPRIMENTO DOS ARTS. 37, INC. II E V, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E DOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. 1. A legislação brasileira não admite desistência de ação direta de inconstitucionalidade (art. 5º da Lei n. 9.868/99). Princípio da Indisponibilidade. Precedentes. 2. A ausência de aditamento da inicial noticiando as alterações promovidas pelas Leis tocantinenses ns. 2.142/2009 e 2.145/2009 não importa em prejuízo da Ação, pela ausência de comprometimento da essência das normas impugnadas. 3. O número de cargos efetivos (providos e vagos) existentes nos quadros do Poder Executivo tocantinense e o de cargos de provimento em comissão criados pela Lei n. 1.950/2008 evidencia a inobservância do princípio da proporcionalidade. 4. A obrigatoriedade de concurso público, com as exceções constitucionais, é instrumento de efetivação dos princípios da igualdade, da impessoalidade e da moralidade administrativa, garantidores do acesso aos cargos públicos aos cidadãos. A não submissão ao concurso público fez-se regra no Estado do Tocantins: afronta ao art. 37, inc. II, da Constituição da República. Precedentes. 5. A criação de 28.177 cargos, sendo 79 de natureza especial e 28.098 em comissão, não tem respaldo no princípio da moralidade administrativa, pressuposto de legitimação e validade constitucional dos atos estatais. 6. A criação de cargos em comissão para o exercício de atribuições técnicas e operacionais, que dispensam a confiança pessoal da autoridade pública no servidor nomeado, contraria o art. 37, inc. V, da Constituição da República. Precedentes. 7. A delegação de poderes ao Governador para, mediante decreto, dispor sobre “as competências, as atribuições, as denominações das unidades setoriais e as especificações dos cargos, bem como a organização e reorganização administrativa do Estado”, é inconstitucional porque permite, em última análise, sejam criados novos cargos sem a aprovação de lei. 8. Ação julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade do art. 5º, caput, e parágrafo único; art. 6º; das Tabelas II e III do Anexo II e das Tabelas I, II e III do Anexo III; e das expressões “atribuições”, “denominações” e “especificações” de cargos contidas no art. 8º da Lei n. 1.950/2008. 9. Definição do prazo máximo de 12 (doze) meses, contados da data de julgamento da presente ação direta de inconstitucionalidade, para que o Estado faça a substituição de todos os servidores nomeados ou designados para ocupação dos cargos criados na forma da Lei tocantinense n. 1.950.
(ADI 4125, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 10/06/2010, DJe-030 DIVULG 14-02-2011 PUBLIC 15-02-2011 EMENT VOL-02464-01 PP-00068)
(destaques acrescentados)
Diante disso, conclui-se que o princípio da moralidade possui objeto próprio, não seu confundindo com o princípio da legalidade (por ser mais abrangente e ter um caráter subsidiário), sendo certo que possui fundamento na doutrina, no direito positivo (em especial, no texto constitucional), e é utilizado com sabedoria na jurisprudência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2002.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22ª Edição. São Paulo. Atlas, 2009.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 11ª Edição. São Paulo: Editora Método. 2007.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª Edição Revista e Atualizada. São Paulo. Malheiros, 2009.
STF – ADI 4125 – Relatora Ministra Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 10/06/2010, DJe nº 030 de 15-02-2011.
Procurador Federal atuante na cidade de Umuarama - PR. Aluno do curso de Especialização em Direito do Estado da Universidade Estadual de Londrina.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Menahem David Dansiger de. O princípio constitucional da moralidade na Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41591/o-principio-constitucional-da-moralidade-na-administracao-publica. Acesso em: 23 dez 2024.
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