Introdução
O art. 97 da Constituição de 1988 consignou explicitamente que “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.
Trata-se de regra trazida do direito norte-americano – onde se consagrou a expressão FullBench – pela Constituição Brasileira de 1934.
Seu pano de fundo está na segurança jurídica como forma de resguardar a natural presunção de constitucionalidade das leis e atos advindos do poder público.
Nos dizeres de Paulo Bonavides,“As Constituições rígidas, sendo Constituições em sentido formal, demandam um processo especial de revisão. Esse processo lhes confere estabilidade ou rigidez bem superior àquela que as leis ordinárias desfrutam. Daqui procede pois a supremacia incontrastável da lei constitucional sobre as demais regras de direito vigente num determinado ordenamento. Compõe-se assim uma hierarquia jurídica, que estende da norma constitucional às normas inferiores (leis, decretos-leis, regulamentos etc.), e a que corresponde por igual uma hierarquia de órgãos”.[1] (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 11ª ed., 2001, p. 267-268).
O quórum qualificado exigido – tornando a decisão de inconstitucionalidade exceção – se presta justamente a evitar contínuas modificações de entendimentos dos tribunais sobre questão de extrema relevância. Exige-se, com ele, maior discussão e reflexão sobre o tema como forma de evitar decisões prematuras.
Procedimento
Atentando-se ao controle difuso de constitucionalidade, o próprio Código de Processo Civil fixa algumas regras básicas sobre seu exercício perante os tribunais.
Em seu art. 480 estabelece que, uma vez arguidaa inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, ouvido o Ministério Público, o relator submeterá a questão à turma ou câmara, a que tocar o conhecimento do processo.
Aqui já se tem um primeiro exame de inconstitucionalidade do ato refutado procedido pela turma ou câmara em que a arguição chegue. Caso a alegação seja rejeitada, o processo segue para o julgamento final contando com os efeitos normais da norma. Já se acolhida, será lavrado respectivo acórdão submetendo a questão ao tribunal pleno para fins de cumprimento do já citado art. 97 da Constituição (CPC, art. 481).
Tudo isso independentemente de requerimento das partes, já que a inconstitucionalidade é matéria de ordem pública, passível de conhecimento de ofício pelo juiz.[2]
Uma vez remetidas cópias dos acórdãos a todos os juízes, o presidente do tribunal designará data da sessão de julgamento (art. 482), sendo possível manifestação do Ministério Público e responsáveis pela edição do ato questionado (§ 1º), dos titulares do direito de propositura referidos no artigo 103 da Constituição (§ 2º), além de outros órgãos ou entidades admitidos pelo relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes (§ 3º).
Geralmente, atribui-se a competência para apreciação dessas questões a órgãos especiais internos dos tribunais. É assim, por exemplo, no Superior Tribunal de Justiça (RISTJ, art. 11, IX) [3], no Tribunal de Justiça de São Paulo (RITJSP, art. 177, VI) [4], no Tribunal de Justiça do Paraná (RITJPR, art. 83, V, e)[5] etc.
A cláusula de reserva do plenário, no entanto, não está restrita ao controle difuso de constitucionalidade. Também no controle concentrado – exercido pelo STF e pelos Tribunais Estaduais – é de observância obrigatória, sob pena de nulidade absoluta do julgado.
Nesse sentido: “a norma inscrita no art. 97 da Constituição consagra no nosso ordenamento jurídico o princípio da reserva de plenário, determinando que a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público somente pode ser declarada pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou, quando houver, dos integrantes do respectivo órgão especial. E essa exigência é de ser observada seja quando se trate do controle em via principal, seja quando se trate do controle em via incidental”.[6]
Em suma, como observa José Carlos Barbosa Moreira: “Nenhum órgão fracionário de qualquer tribunal, exceto o ‘órgão especial’ de que cogita o art. 93, nº XI, da Carta da República, tem competência para declarar inconstitucional, mesmoincidentalmente, uma lei ou outro ato normativo do poder público. É o que resulta do preceito segundo o qual a inconstitucionalidade não pode ser declarada senão pelo voto da maioria absoluta dos membros do tribunal ou – onde exista – do ‘órgão especial’ acima referido”.[7]
Exceções
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ao longo dos anos cuidou de algumas exceções à reserva do plenário, que resultaram, inclusive, na alteração do Código de Processo Civil.
Assim, em caso de declaração de inconstitucionalidade já pronunciada pelo STF ou pelo plenário ou órgão especial do respectivo tribunal, o princípio da reserva do plenário pode ser afastado, possibilitando a declaração de inconstitucionalidade através de órgãos fracionários (CPC, art. 481, parágrafo único, acrescentado pela Lei nº 9.756/98)[8].
Os motivos para tanto homenageiam não só a racionalidade das decisões, como também, implicam a interpretação teleológica do art. 97 da Constituição de 1988 evitando a burocratização dos atos judiciais no que nefasta ao princípio da economia e da celeridade processual (CF, art. 5º, LXXVIII). A razão de ser do preceito, por sua vez, está na necessidade de se evitar que órgãos fracionados apreciem, pela primeira vez, a inconstitucionalidade arguida em relação a certo ato normativo.[9]
Importante mencionar que o artigo em questão só se aplica aos tribunais indicados no art. 92 da Constituição e respectivos órgãos judiciais que atuam sob regime de plenário ou órgão especial. Não é o caso, portanto, dos juizados de pequenas causas ou juizados especiais.[10]
A exceção também é estendida aos casos em que há súmula do STF (vinculante ou não): “descabe cogitar, no caso, de reserva de plenário – art. 97 do referido Diploma –, especialmente quando a matéria de fundo se encontra sumulada”.[11]
Não se submete, também, à exigência de quórum qualificado as decisões que reconheçam a constitucionalidade de determinado dispositivo: “A cláusula constitucional de reserva de plenário, insculpida no art. 97 da CF, fundada na presunção de constitucionalidade das leis, não impede que os órgãos fracionários ou os membros julgadores dos tribunais, quando atuem monocraticamente, rejeitem a arguição de invalidade dos atos normativos, conforme consagrada lição da doutrina (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V – Arts. 476 a 565, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009, p. 40)”, como reconheceu o próprio STF.[12]
E, por fim, os atos anteriores à constituição não estão sujeitos ao controle de constitucionalidade em geral (salvo hipótese da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF). Sua compatibilidade com o texto constitucional se dá no campo da recepção ou não pela nova ordem. Não se submetem, pois, à reserva do plenário. Nesse sentido, decidiu o STF:
Vê-se, portanto, na linha de iterativa jurisprudência prevalecente nesta Suprema Corte e em outros tribunais, que a incompatibilidade entre uma lei anterior (como anorma ora questionada inscrita na Lei 691/1984 do Município do Rio de Janeiro/RJ, p. ex.) e uma Constituição posterior (como a Constituição de 1988) resolve-se pela constatação de que se registrou, em tal situação, revogação pura e simples da espécie normativa hierarquicamente inferior (o ato legislativo, no caso), não se verificando, por isso mesmo, hipótese de inconstitucionalidade. Isso significa que a discussão em torno da incidência, ou não, do postulado da recepção – precisamente por não envolver qualquer juízo de inconstitucionalidade (mas, sim, quando for o caso, o de simples revogação de diploma pré-constitucional) – dispensa, por tal motivo, a aplicação do princípio da reserva de Plenário (CF, art. 97), legitimando, por isso mesmo, a possibilidade de reconhecimento, por órgão fracionário do Tribunal, de que determinado ato estatal não foi recebido pela nova ordem constitucional, além de inviabilizar, porque incabível, a instauração do processo de fiscalização normativa abstrata.”[13]
A Súmula Vinculante nº 10
A Súmula Vinculante nº 10 consolidou o entendimento do STF segundo o qual “viola a cláusula de reserva de plenário (CF, art. 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”.
Trata-se de medida tomada como forma de coibir situação corriqueira no Judiciário brasileiro: ao invés de enfrentar com todas as letras a suposta inconstitucionalidade de determinada norma, ignora a situação como um todo (inclusive o comando normativo) e passa-se á solução do caso concreto.
Tal entendimento, no entanto, não abrange discussões sobre dispositivos legais sem ofensa constitucional[14] ou que tal ofensa seja indireta (como é o caso de alguns princípios constitucionais, por exemplo)[15].
Conclusão
Como visto, hoje a cláusula da reserva do plenário conta com contornos mais do que delimitados pelo Supremo Tribunal Federal. Sua razão de ser é o seu pano de fundo: garantir estabilidade e segurança em assuntos constitucionais.
A tendência, todavia, é que cada vez mais seja afastada, desde que o faça por motivos de celeridade, racionalidade e efetividade processuais, nos casos em que haja entendimento do STF sobre a matéria. Trata-se, em outras palavras, de expandir os efeitos das decisões da Corte, conferindo uniformidade em suas decisões.
Bibliografia
Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 11ª ed., 2001.
Moraes, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 5ª ed., São Paulo: Atlas, 2005.
Moraes, Alexandre de. Direito constitucional. 15ª ed., São Paulo: Atlas, 2004.
Moreira, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 15ª ed., n. 30,Rio de Janeiro: Forense, 2010.
[1]Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 11ª ed., 2001, p. 267-268.
[2]“Não há necessidade de pedido das partes para que haja o deslocamento do incidente de inconstitucionalidade para o Pleno do tribunal. Isso porque é dever de ofício do órgão fracionário esse envio, uma vez que não pode declarar expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, nem afastar sua incidência, no todo ou em parte.” (Rcl 12.275-AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 22-5-2014, Plenário, DJE de 18-6-2014.)
[3]Art. 11. Compete à Corte Especial processar e julgar:
IX – as argüições de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo suscitadas nos processos submetidos ao julgamento do Tribunal.
VI – a representação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou municipal, contestados em face da Constituição do Estado, o pedido de intervenção em município e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, em face de preceito da Constituição Estadual;
[5]Art. 83 – Compete, privativamente, ao Órgão Especial:
V – julgar:
f) os incidentes de declaração de inconstitucionalidade suscitados pelos demais órgãos julgadores.
[6] STF, AI 300252/CE, Rel. Min. Ellen Gracie, Diário da Justiça, 7/5/2002.
[7]Moreira, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil.15ª ed., n. 30,Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 39.
[8]Art. 481. [...]
Parágrafo único. Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.
[9]Moraes, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 5ª ed., São Paulo: Atlas, 2005, p. 1401-2; ______. Direito constitucional. 15ª ed., São Paulo: Atlas, 2004, p. 611.
[10] “O art. 97 da Constituição, ao subordinar o reconhecimento da inconstitucionalidade de preceito normativo a decisão nesse sentido da ‘maioria absoluta de seus membros ou dos membros dos respectivos órgãos especiais’, está se dirigindo aos tribunais indicados no art. 92 e aos respectivos órgãos especiais de que trata o art. 93, XI. A referência, portanto, não atinge juizados de pequenas causas (art. 24, X) e juizados especiais (art. 98, I), os quais, pela configuração atribuída pelo legislador, não funcionam, na esfera recursal, sob regime de plenário ou de órgão especial.” (ARE 792.562-AgR, rel. min. Teori Zavascki, julgamento em 18-3-2014, Segunda Turma, DJE de 2-4-2014.)
[11] STF, AI 555.254-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 11-3-2008, Primeira Turma, DJE de 2-5-2008.
[12] STF, RE 636.359-AgR-segundo, Rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 3-11-2011, Plenário, DJE de 25-11-2011.
[13] STF, AI 582.280 AgR, voto do Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12-9-2006, Segunda Turma, DJ de 6-11-2006. No mesmo sentido: RE 495.370-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 10-8-2010, Segunda Turma, DJE de 1º-10-2010
[14] “O Verbete Vinculante 10 da Súmula do Supremo não alcança situações jurídicas em que o órgão julgador tenha dirimido conflito de interesses a partir de interpretação de norma legal.” (Rcl 10.865-AgR, rel. min. Marco Aurélio, julgamento em 27-2-2014, Plenário, DJE de 31-3-2014.)
[15] “Resta evidente que não ocorreu violação à reserva de Plenário, pois o embasamento da decisão em princípios constitucionais não resulta, necessariamente, em juízo de inconstitucionalidade.” (RE 575.895-AgR, voto da Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 15-3-2011, Segunda Turma, DJE de 5-4-2011.)
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. A cláusula da reserva do plenário (CF, art. 97) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41598/a-clausula-da-reserva-do-plenario-cf-art-97. Acesso em: 23 dez 2024.
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