Introdução
Já em suas origens, a hermenêutica tradicional vinha calcada no hoje superado brocardo in clariscessat interpretativo (disposições claras não comportam interpretação). Segundo nos ensina Miguel Reale, a essencialidade do ato interpretativo implica na impossibilidade de uma norma dispensar a interpretação.[1] Na verdade, a simples precisão se uma norma é clara ou complexa e a possibilidade de outra norma ser aplicável ao caso concreto já é prova de que a interpretação está presente no menor dos movimentos do intérprete.
É o que nos ensina Carlos Maximiliano, referência na matéria: “A palavra é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida aforma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias idéias, valores mais amplos e profundos do que os resultantes da simples apreciação literal no texto”.[2]
Ao lado da evolução da hermenêutica em geral, nasce a teoria estruturante do alemão Friedrich Müller, que deu novos contornos ao conceito de norma jurídica em sua JuristischeMethodik.
A teoria estruturante
Müller, seguindo caminho paralelo ao de Robert Alexy[3], buscou retirar a excessiva carga teórica que assombra a interpretação/aplicação das normas jurídicas em geral[4] – e das normas de direitos fundamentais em especial[5] – dividindo tal processo em três planos: a) programa da norma; b) âmbito da norma; e c) norma de decisão.
A hermenêutica estruturante foi inspirada na tópica, conforme assegura Paulo Bonavides que se refere ao pensamento de Müller como “um método concretista de inspiração tópica”[6], que consiste em problematizar a partir de pontos retóricos iniciais – os topoi ou loci.A hermenêutica tradicional e seus métodos e os textos normativos representariam esses topoi, embora não possa alcançar por si só o verdadeiro sentido da norma jurídica, substanciado numa típica norma de decisão.
Veja-se o que diz o próprio Müller sobre o conceito de norma jurídica:
Normas jurídicas não são dependentes do caso, mas referidas a ele, sendo que não constitui problema prioritário se se trata de um caso efetivamente pendente ou de um caso fictício. Uma norma não é carente de interpretação porque e à medida em que ela não “unívoca”, “evidente”, porque e à medida que ela é “destituída de clareza” – mas sobretudo porque ela deve ser aplicada a um caso (real ou fictício). Uma norma no sentido da metódica tradicional (isto é: o teor literal de uma norma) pode parecer “clara” ou mesmo “unívoca” no papel, já o próximo caso prático ao qual ela deve ser aplicada pode fazer que ela se afigure extremamente “destituída de clareza”. Isto se evidencia sempre somente na tentativa efetiva da concretização. Nela não se “aplica” algo pronto e acabado a um conjunto de fatos igualmente compreensível como concluído. O positivismo legalista alegou e continua alegando isso. Mas “a” norma jurídica não está pronta nem “substancialmente” concluída.[7]
Há, pois, um procedimento estruturado a ser seguido até que se chegue ao objetivo principal do intérprete: “Inicialmente caminhamos do texto da norma até a norma jurídica. Em seguida caminhamos da norma jurídica até a norma de decisão, aquela que determina a solução do caso. Apenas então se dá a concretização da norma, ou seja, mediante a produção de uma norma jurídica geral, no quadro da solução de um caso determinado”.[8]
Para o Autor alemão, tal processo deve partir do texto da norma, formado pela aplicação de todos os recursos hermenêuticos disponíveis (v.g. métodos clássicos de interpretação[9], princípios de interpretação constitucional[10]). O resultado dessa interpretação – a primeira parte integrante da norma jurídica – é chamado de programa da norma.
O segundo estágio nasce a partir da consideração dos dados reais coletados no caso concreto. Na medida em que esses fatos são relevantes para a questão do direito em tela e compatíveis com o programa da norma elaborado, constituem sua segunda parte: o âmbito da norma.
É da junção de ambos os elementos que se chega ao terceiro e último ponto do processo interpretativo proposto por Müller: a norma de decisão, que concretiza a linha conclusiva do raciocínio, distanciando o texto da norma propriamente dita.
Essa distância entre texto e norma é a base para compreensão da teoria estruturante, como reconhece Canotilho:
Elemento decisivo para a compreensão da estrutura normativa é uma teoria hermenêutica da norma jurídica que arranca da não identidade entre norma e texto normativo; o texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo (F. Müller), correspondendo em geral ao programa normativo (ordem ou comando jurídico na doutrina tradicional); mas a norma não compreende apenas o texto, antes abrange um “domínio normativo”, isto é, um “pedaço de realidade social” que o programa normativo só parcialmente contempla; consequentemente, a concretização normativa deve considerar e trabalhar com dois tipos de concretização: um formado pelos elementos resultantes da interpretação do texto da norma (=elemento literal da doutrina clássica); outro, o elemento de concretização resultante da investigação do referente normativo (domínio ou região normativa). [11]
Para ilustrar aludida teoria, tomemos um exemplo corriqueiro no Judiciário brasileiro – aqui hipotético – em que se discute a quebra da vinculação a edital de concurso público pela Administração ao fixar exigência desarrazoada a candidato aprovado. Geralmente, os argumentos utilizados são as ofensas aos princípios da legalidade (CF, art. 5º, II, e 37, caput), do concurso público (CF, art. 37, II), da razoabilidade e proporcionalidade (CF, art. 5º, LIV) e da eficiência (CF, art. 37, caput).
Programa da norma
O chamado princípio da vinculação ao edital, consectário da legalidade (CF, art. 37, caput), grosso modo, significa que administração e administrados estão atrelados aos ditames gerais do concurso, desde que compatíveis com a Constituição e demais atos normativos superiores. Trata-se de desdobramento da legalidade estrita, um dos pilares da Administração Pública (CF, art. 37, caput).
Nesse ponto, o STF tem entendimento firmado sobre a admissibilidade do controle jurisdicional da legalidade do concurso público quando verificado o descompasso entre a conduta da Administração e o edital do certame, que á considerado a lei do certame.[12]
Partindo desse raciocínio, a faceta que interessa do princípio do concurso público(CF, art.37, II) não é a que obriga a Administração a prover seus cargos mediante realização do certame. É, sim, aquela em que assegura o acesso otimizado ao serviço público de um candidato que, segundo interpretação razoável das regras do certame, possui totais condições de ocupar o respectivo cargo.
Daí os princípios da razoabilidade e proporcionalidade (CF, art. 5º, LIV) – amplamente utilizados pelo STF no controle de atos praticados em concurso público[13] – impedem que restrições despropositadas atinjam o núcleo essencial do aludido preceito. Atuam, pois, como típica proibição de excesso.[14]
Veja-se o que decidiu oSuperior Tribunal de Justiça reconhecendo que “mostra-se desarrazoado obstacularizar o acesso ao serviço público de um candidato detentor de conhecimentos em nível mais elevado do que o exigido para o cargo em que fora devidamente aprovado mediante concurso”.[15]Tratando de prova de títulos, no mesmo raciocínio, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região ponderou que “cursos de pós-graduação lato sensu com carga superior a 360 horas também podem ser valorados, pois não seria razoável que se desconsiderasse a presunção de maior quantidade e profundidades de conteúdo que milita a favor deles”[16].
O princípio da eficiência viria justamente para legitimar essa visão finalista que, de um lado, norteia a interpretação das regras do certame e, do outro, afasta eventuais formalidades exacerbadas.
Segundo Marçal Justen Filho, “a transformação concreta da realidade social e sua adequação ao modelo constitucional dependem primordialmente do desenvolvimento de atividades administrativas efetivas”. Nesses casos, “a supremacia da Constituição não pode ser mero elemento do discurso político. Deve constituir o núcleo concreto e real da atividade administrativa. Isso equivale a rejeitar o enfoque tradicional, que inviabiliza o controle nas atividades administrativas por meio de soluções opacas e destituídas de transparência, tais como ‘discricionariedade administrativa’, ‘conveniência e oportunidade’ e ‘interesse público’. Essas fórmulas não devem ser definitivamente suprimidas, mas sua extensão e importância têm de ser restringidas à dimensão constitucional e democrática”.[17]
Como se vê, o programa da norma é o que delimita sua extensão a partir da aplicação dos métodos e princípio da interpretação e sua compatibilidade com a próxima etapa, o âmbito da norma.
Âmbito da norma
Atentando-se ao exemplo proposto, o programa da norma demonstra de plano: a) o Judiciário pode exercer o controle de ato praticado por comissão de concurso público que eventualmente imponha restrição despropositada a candidato; e b) os atos praticados pela comissão devem respeitar aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e eficiência, otimizando o princípio do concurso público e se desgarrando de exigências formais exacerbadas.
O próximo passo, já adentrando ao âmbito da norma, seria delimitar as situações de fato envolvidas: as disposições do edital que regulamentam a questão, a conduta praticada pelo candidato e, sobretudo, a conduta praticada pela Administração acompanhada de seus motivos, caso tenham sido expostos.
Norma de decisão
Uma vez formadas duas etapas anteriores, chegar-se-ia à norma de decisão: o cumprimento ou não das regras editalícias pelo candidato a partir das diretrizes fixadas pelo programa da norma.
Bibliografia
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[1]Reale, Miguel. O Direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 250.
[2] Maximiliano, Carlos.Hermenêutica e aplicação do Direito. 18ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 36.
[3] A incompatibilidade entre as teorias de Alexy e Müller, embora poucos no Brasil tenham se atentado a isso, é evidenciada a partir do momento em que este rejeita expressamente o sopesamento – uma das pilastras do pensamento de Alexy – como método de aplicação do direito, considerando-o irracional e contrário à ideia de unidade da Constituição, cujos resultados não passam de mera suposição. Além disso, como reconhece expressamente o próprio Alexy, a mesma incompatibilidade é evidenciada pela concepção dada por cada um às normas jurídicas em geral. Segundo Alexy, “aquilo que aqui [na teoria dos direitos fundamentais] é chamado de ‘disposição de direito fundamental’ corresponde ao que Müller chama de ‘texto’, e aquilo que aqui leva o nome de ‘norma’ é o que Müller chama de ‘programa normativo’” (Alexy, Robert.Theorie der Grundrechte, Suhrkamp, Frankfurt, 1994, p. 65). Não se nega, todavia, que, nos direitos fundamentais, ambas as teorias nasceram com o mesmo propósito: superar as chamadas teorias dos direitos fundamentais sistematizadas por Ernst-WolfgangBöckenförde (cf. “GrundrechtstheorieundGrundrechtsinterpretation”, in Staat, Verfassung, Demokratie: StudienzurVerfassungstheorieund zum Verfassungsrecht, Frankfurt amMain, Suhrkamp, 1991, p. 115-145). Para umavisão de toda essa problemática, cf. Victorino, Fábio Rodrigo. “Evolução da teoria dos directos fundamentais”, Revista do Centro de EstudosJudiciáriosdo Conselho da Justiça Federal, vol. 39.
[4] Cf. Müller, Friedrich.JuristischeMethodik, 5ª ed., Berlin: Duncker&Humblot, 1993 e Métodos de Trabalho de Direito Constitucional, 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
[5] Cf. Müller, Friedrich. “Interpretação e Concepções Atuais dos Direitos do Homem”, in Anais da XV Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, p. 540 e s.
[6] Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. 13ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 498.
[7]Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 2ª ed., São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 61-2.
[8]Grau, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 73.
[9] Cf. Savigny, Friederich Karl von. Metodologia Jurídica. Campinas: Edicamp, 2002.
[10] Cf. Hesse,Konrad. GrundzügedêsVerfassungsrechts der BundesrepublikDeutschland, 16. Aufl., Heidelberg: C. F. Muller JuristischerVerlag, 1988, p. 26; Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998, p.1096 e s.
[11]GomesCanotilho, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7º ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 1213.
[12] STF, MS 30.894, rel min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 8-5-2012, Segunda Turma, DJE de 24-9-2012.)No mesmo sentido: MS 30.860, rel. min. Luiz Fux, julgamento em 28-8-2012, Primeira Turma, DJE de 6-11-2012.
[13] Foi assim, por exemplo, no caso de limitação de idade (ADI/MC 776, Rel. Min. Celso de Mello), exigências de tempo mínimo de atividade jurídica (ADI 1040, Rel. Min. Néri da Silveira) ou altura mínima (RE 194952, Rel. Min. Ellen Gracie) para inscrição, avaliação em exame psicotécnico (AI-AgR 539408, Rel. Min. Celso de Mello).
[14] Cf., sobretudo,Pulido,Carlos Bernal.El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. 2ª ed., Madrid: Centros de Estudios Políticos y Constitucionales, 2005, passim.
[15] STJ, REsp nº 308.700/RJ, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU 15/4/2002.
[16] TRF 4ª Região, AI nº 2005.04.01.017609-1, Rel. Des. Luiz Carlos de Castro Lugon, DJU 18/8/2005.
[17]Justen Filho, Marçal.Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 13-14.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. A teoria estruturante de Friedrich Müller Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41623/a-teoria-estruturante-de-friedrich-muller. Acesso em: 23 dez 2024.
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