Com os olhares focados para as realidades atuais, a Constituição Federal de 1988 dedicou, em seu Capítulo II, Título VII (Da Ordem Econômica e Financeira), a matéria pertinente a “política urbana”, onde estabeleceu princípios, diretrizes e instrumentos para a realização da função social da propriedade urbana.
Tais institutos têm um cunho negativo, no sentido de vedar determinado comportamento, mas também, e principalmente, um cunho positivo, no sentido de incentivar e até mesmo obrigar a adoção de outros determinados comportamentos.
Para ilustrar essa afirmação, vale a pena a transcrição do respectivo texto normativo:
CAPÍTULO II.
DA POLÍTICA URBANA.
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§ 1º – O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º – A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende ás exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§ 3º – As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.
§ 4º – É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos temos da lei federal, do proprietário do solo urbano não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I- parcelamento ou edificação compulsórios;
II- imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III- desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, asseguradas o valor real da indenização e os juros legais.
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe à o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º – O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º – Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
O primeiro aspecto interessante inserido no texto constitucional refere-se à outorga de poderes ao Município para legislar sobre a política de desenvolvimento urbano.
Num segundo momento, chama a atenção outro aspecto relevante, que diz respeito à obrigatoriedade da elaboração do plano diretor para cidades com mais de vinte mil habitantes.
Certamente a intenção do constituinte, quando da elaboração da norma (parágrafo 1º, artigo 182), foi evitar que a aplicação do princípio da função social da propriedade não se efetivasse principalmente em cidades onde, supostamente, ela se mostra imprescindível.
Pela letra da lei (parágrafo 2º, art. 182), pode-se entender que, não havendo plano diretor, não há o cumprimento do princípio da função social da propriedade, e como as cidades com menos de vinte mil habitantes não são obrigadas a tê-lo (plano diretor), não estariam obrigadas a observar tal princípio.
Sobre esse assunto, convém citar a lição de Liana Portilho de Mattos[1], a qual leciona, verbis:
“ Subordinar a efetividade da função social exclusivamente às exigências de uma lei ordinária corresponderia a apartá-la do conteúdo do direito de propriedade e equipará-la a uma limitação urbanística- - exigível somente em casos previstos em lei.”
Diante das razões acima expostas é que afirmamos ser um despropositado equívoco a crença no plano diretor como requisito essencial para a efetividade da função social da propriedade.
A mencionada autora ainda conclui que a leitura correta do citado artigo deveria ser, verbis:
“(...) a propriedade urbana cumpre sua função social quando (também) atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.”[2]
Nesse ponto, o que se observa é que, a inexistência do plano diretor não impede que determinada propriedade cumpra a função social, ou seja, o cumprimento da função social não está condicionado, necessariamente, à existência de um plano diretor. Consequentemente, ela pode cumprir sua função ainda que inexista um plano diretor que a determine.
Claro que a existência de um plano diretor facilita a efetivação da função social da propriedade, na medida em que regulamenta a matéria. Porém, a sua inexistência não pode impedir a sua concretização.
O parágrafo 3º, do artigo 182, da CF/88, disciplina que as desapropriações de imóveis urbanos serão feitas mediante prévia e justa indenização em dinheiro. E, apesar de se referir expressamente a imóveis urbanos, redundou o legislador constituinte, em vista da norma contida no inciso XXIV, do art. 5, no qual dispõe sobre imóveis em geral, verbis:
“ A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta constituição.”
Assim, o parágrafo 3º, do art. 182, simplesmente repete, em um campo mais específico (imóveis urbanos), as garantias já concedidas pelo inciso XXIV, do art.5, em outro mais genérico (imóveis rurais e urbanos), em nada inovando ou acrescentando.
No parágrafo 4º, o legislador criou instrumentos de política urbana, com o intuito de coibir a especulação imobiliária, punindo o proprietário de imóvel urbano incluído no plano diretor que não esteja utilizado ou edificado, ou até mesmo subutilizado.
Mais uma vez consideramos que andou bem o legislador constituinte, pelas razões que o fez quando da outorga da competência legislativa dada ao Poder Público municipal, para a elaboração do plano diretor, ou seja, as melhores condições deste para garantir a justa e eficaz fixação e aplicação dos preceitos contidos na norma.
Dessa maneira, caso o Poder Público municipal constate que um imóvel urbano incluído no plano diretor não está sendo adequadamente aproveitado por seu proprietário, poderá puni-lo com o parcelamento ou edificação compulsória. Se nem assim o proprietário cumprir o comando constitucional, será punido com o IPTU progressivo no tempo e, caso ainda se mantenha inerte, poderá ter seu imóvel desapropriado com indenização mediante títulos da dívida pública.
Como vimos, a CF/88 inovou em diversos aspectos no que diz respeito ao direito de propriedade e sua função social.
Mais que regras norteadoras do exercício do direito de propriedade, tais aspectos consistem em uma série de exigências e coordenadas a serem cumpridas, sobretudo nas grandes cidades, como forma de proporcionar condições dignas de vida para aqueles que lá residem.
Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
BRASIL. Estatuto da Cidade (2001). Estatuto da cidade: Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece diretrizes gerais da política urbana.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
MATTOS, Liana Portilho. Efetividade da Função Social da Propriedade Urbana à Luz do Estatuto da Cidade, 1ª ed. Rio de Janeiro, Ed. Temas e ideias, 2003.
MEDAUAR, Odete; Almeida, Fernando Dias Menezes de. Estatuto da Cidade, Lei 10.287/2001: comentários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
MORAES, José Diniz de, A Função social da propriedade e a Constituição Federal de 1988. 1ª ed. São Paul: Malheiros, 1999.
[1] MATTOS, Liana Portilho. Efetividade da Função Social da Propriedade Urbana à Luz do Estatuto da Cidade, Rio de Janeiro, Ed. Temas e ideias, 2003 – 1ª Edição, p. 113.
[2] Obr. Cit., p.113;
PROCURADOR FEDERAL lotado na Procuradoria Federal em Minas Gerais, Especialista em Direito Público pela PUC/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: XAVIER, Bruno Di Fini. Instrumentos da política urbana na Constituição Federal de 1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41646/instrumentos-da-politica-urbana-na-constituicao-federal-de-1988. Acesso em: 23 dez 2024.
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