Introdução
A preocupação com o estudo da família romano-germânica se deve pelas origens sócio-históricas do Direito Brasileiro. Muito embora a proeminente contribuição do constitucionalismo norte-americano – vista, por exemplo, na incorporação do controle difuso de constitucionalidade –, toda a herança jurídica vem, inegavelmente, da Europa Continental e, mais precisamente, do Direito Português. A submissão do Estado Brasileiro ao Direito não se calca nos precedentes judiciais, ao contrário, firma-se na supremacia da lei, na racionalidade jurídica advinda desde as codificações romanas e, após, oitocentistas.
Nos países de Direito de common law, cabe aos juízes a tarefa de criação do Direito. Se buscarmos as duas funções básicas de um Estado de Direito – a função de criar e de aplicar o Direito – veremos que é na sua criação que cinge a maior diferença jurídico-sociológica das duas famílias. Afinal, os Tribunais exercem uma função legislativa quando a sua decisão, em um caso concreto, se torna um precedente para a decisão de outros casos similares.
Esta função legislativa, assim chamada por KELSEN, inova o mundo jurídico dos países em que o Direito é consuetudinário, enquanto que, nos países romano-germânicos, tal tarefa advém da deliberação política das assembléias, encarregada de, por meio de um ato de vontade, criar um comando geral e abstrato obrigatório a todos os indivíduos de determinado Estado.
Convém, a fim de ilustrar a presente proposta, a brilhante exposição de CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR, acerca dos fundamentos sócio-históricos das famílias de direito:
Em seu fundamento sociológico, toda ordem estatal concreta combina necessariamente direito genético (direito bruto e direito dos juristas) e direito operativo (direito estatal legislado). Entretanto, participação específica de cada qual na configuração sócio-jurídica de um Estado varia caso a caso. Pesam, aí, decisivamente, os fatores sócio-históricos da própria formação do Estado.
Assim, na Inglaterra – e em todos os Estados que seguiram sua tradição jurídica – o direito genético consubstanciado nos precedentes judiciais teve, desde as origens, primazia sobre o direito estatal legislado. A estrutura sócio jurídica desses países está construída sobre o direito dos juristas, com a matéria normativa extraída diretamente das decisões e dos precedentes judiciais.
Já nos Estados formados, no continente europeu, à sombra da influência comum das codificações justinianéias do direito romano, espalhando-se, depois, por outras terras, o direito estatal legislado prevalece sobre o direito genético. A estrutura sócio-jurídica desses países está alicerçada sobre normas jurídicas legisladas por um poder estatal legislativo formal e, não, sobre as decisões judiciais.
Existe, assim, um substrato sociológico palpável para a consagrada classificação dos sistemas ocidentais em duas grandes famílias, respectivamente, a de common law e da tradição romano-germânica.
Por isso, a diferenciação entre os sistemas do common law e os sistemas romano-germânico não se cinge a meras especificidades jurídico-formais, como, por exemplo, a estrutura normativa do ordenamento. Há peculiaridades profundas, impressas no caráter das relações entre as forças sociais e das relações entre a sociedade e o Estado, que condicionam as diferenças propriamente jurídicas entre os sistemas. Eis tudo: a diferenciação entre as duas famílias, antes de ser jurídica, é sociológica. [1]
Tais assertivas bem justificam a preocupação em pautar os institutos jurídicos brasileiros na experiência vivida na Europa Ocidental.
Das Revoluções Liberais
Pois bem, muito embora o fenômeno constitucional remonte dos tempos da Grécia, lembrando que já Aristóteles referia-se à constituição – politéia – como a ordem e distribuição de poderes existentes num Estado, não há como negar que este fenômeno – constitucionalismo – só ganhou força e efetividade com as Declarações de Direitos advindas das Revoluções Liberais. Dentre elas, a mais importante para a cultura romano-germânica, sem dúvida, foi a Déclaration dês Droits de l’Homme et duCitoyen, de 26 de agosto de 1795, o ‘pacto social’ da nova sociedade política, herança do movimento liberal revolucionário francês.
É a partir deste período histórico que o Direito Constitucional começa – de maneira acanhada, ainda – a ganhar autonomia dentro do Direito Público. Até então, a dicotomia havida encerrava-se na diferenciação entre o Público e o Privado.
Vale lembrar, também, que a evolução do Direito Constitucional andou paralelamente com a evolução do Estado – inicialmente, um Estado Liberal, que, através de um processo histórico, transforma-se em um Estado Democrático de Direito. Aliás, falar em Estado Democrático de Direito é falar em Supremacia do Direito e, por conseguinte, é falar em um sobre-Direito que irá gravitar acima do Estado, limitando-o e legitimando-o. Estesobre-Direito é estudado pelo Direito Constitucional, em uma esfera diferenciada: a Jurisdição Constitucional.
Esta trajetória do Estado corresponde ao caminho traçado pelo constitucionalismo, intrinsecamente ligada ao processo histórico, vindo a corroborar as primeiras linhas deste trabalho. A propósito, vale transcrever o pensamento do constitucionalista espanhol JAVIER PÉREZ ROYO, que revela a importância da evolução histórica na construção do Estado Constitucional, bem como assinala, como ponto de partida do constitucionalismo, o nascimento do Estado Liberal:
De entrada hay que decir que el concepto de Estado Democrático de Derecho es el concepto enel que culmina una larga evolución histórica, que se inicia enlosorígenesdel Estado Constitucional en sentido estricto. Se trata, por tanto, de un concepto que se ha ido precisando de manera acumulativa, de tal suerte que el resultado final es la suma de los elementos que se han ido imponiendoenlassucesivasfasesde «la lucha por el Estado de Derecho» (Lucas Verdú). Cada fase Del Estado de Derecho ha supuesto una conquista, a partir de lacual se ampliabael âmbito material delmismoenlasiguiente, hasta llegar a esta última que recogenuestraConstitución: «Estado democrático de Derecho».
Endichoproceso de concrecióndel concepto de Estado de Derecho se pueden distinguir tres momentos fundamentalmente:
1. El primero correspondente a losorígenesdel Estado Constitucional, y enélla lucha por el Estado de derecho es la lucha por limiracióndel poder del Estado mediante lautilización de principios jurídicos racionales. En este momento no se trata de definir ensuorigenlavoluntaddel Estado, sino que el objetivo que se persigue es mucho más modesto, más limitado. Se trata simplesmente de conseguir que el Estado monárquico, relativamente autónomo respecto de lasociedad, se someta enelejerciciodel poder a determinadas formas jurídicas.
Fundamental en este período eslareivindicación de que toda intervención em lalibertad y lapropriedad de losciudadanosdebe ser decidida mediante ley (reserva de ley) y qyedichaley há de ser aprobada conjuntamente por elMonarca y el Parlamento, órganoéste a través delcuallasociedad participa em ladeterminacióndelcontenido de lavoluntaddel Estado, em principio independiente de ella.
Éstaeslarazón de que el concepto de leyseael concepto em el que se sintetiza en este período laesenciadel estado de Derecho. El concepto de ley que se afirma en este primer momento se caracteriza por varias notas. Em primer lugar, por ser uma regla general; em segundo lugar, por ser producida com elconsentimiento de lasociedad, y em tercer lugar, por ser formulada a través de um procedimiento caracterizado por ladiscusión y lapublicidad.
Enella se reflejan, por tanto, losprincipiosracionales a los que debe estar sometido el poder del Estado. Por um lado, el principio de generalidadsuponela no intervencióndel estado em laliberdad y lapropiedad de losciudadanos de manera individual. Por outro, laaceptación de la norma de larepresentación de lasociedad implica elreconocimiento de laliberdad política delciudadano. Por último, ladiscusión y lapublicidadsonlamejorgarantía de laracionalidaddelcontenido de laleyasí como de ser expresíon de laopinión pública”[2]
Neste diapasão, cumpre, dentre as Revoluções Liberais do final do século XVIII, dar um destaque maior à Revolução Francesa.
Com o declínio das relações feudais, que caracterizaram a Europa Medieval, inúmeros fatores contribuíram para o início do Estado Monárquico Absoluto. Em apertada síntese, mormente por não ser o objeto do presente estudo, pode-se citar: (i) no campo territorial, a instabilidade vivenciada pelas constantes guerras e disputas por terras; (ii) no campo econômico e social, a criação dos primeiros burgos e a deterioração das relações obrigacionais de vassalagem e suserania – gerando o medo do rei feudal frente a possíveis insurreições; (iii) no campo religioso, a disputa do clero em galgar mais espaço político, somando-se a vasta riqueza agregada ao patrimônio da Igreja nos séculos de Período Medieval, bem como as guerras religiosas vivenciadas no período.
Toda esta instabilidade do reino feudal – marcado pela fragmentação territorial e a forte hierarquização social – fez com que muitos pensadores da época, entre eles MAQUIAVEL e BODIN, passassem a defender uma soberania ilimitada e uma forte concentração de poder. A opção foi clara: melhor a ordem à anarquia. A Europa passa a viver um processo de nacionalização e fortalecimento do poder público, traçando as primeiras formatações do ente estatal.
Entretanto, a soberania ilimitada acaba gerando um custo muito grande. Os regimes monárquicos europeus, entre eles destaca-se o Antigo Regime francês, foram protagonistas de extremas injustiças sociais. Para manter toda a estrutura do reino, bem como a máquina burocrática e as regalias da decadente aristocracia, uma enorme parcela da população – trabalhadores urbanos, camponeses e a pequena burguesia comercial – era soterrada por cargas tributárias cada vez mais escorchantes.
Somado a isso, o descontentamento popular ganha uma aliada forte. A alta burguesia, detentora de poder econômico, entra na disputa do poder político, visando, essencialmente, garantir suas propriedades e conter o poder estatal que se avolumava a cada dia.
Talvez este processo, que culminou com o nascimento do Estado Liberal, fosse mais lento e gradual. Entretanto, na França, Luís XVI acelerou sua própria derrocada quando, em 1789, por sugestão de seu recém empossado ministro Necker, convocou, em assembléia, os ‘Estados Gerais’ da nação, como uma resposta ao incipiente descontentamento. O que não estavam nos seus propósitos é que os representantes do povo não aceitariam os desmandos régios e, quando tentou dissolver a Assembléia Nacional (que fugira do seu controle), restou caracterizada a insurreição política.
Da insurreição política, para a insurreição do povo, não foi necessário muito esforço. A sociedade parisiense já estava mobilizada, tanto pelas recentes eleições, que convocaram a Assembléia Nacional, como pelos panfletos revolucionários que circulavam pela cidade – destaque especial para EMMANUEL SIÉYÈS, que pregava poder ilimitado para o Parlamento originário: o Poder Constituinte.[3] Assim, quando Luís XVI quis reagir com a força militar, o clima de revolta tomou as ruas de Paris, dando início à Revolução.
Enquanto o povo tomava a Bastilha, o Parlamento proclamava a Déclaration dês Droits de l’Homme et duCitoyen.
Em seu artigo 16, está sintetizado o espírito desta nova concepção estatal: “Toutesociétédanslaquellelagarantiedesdroits n'est pasassuréenila séparationdespouvoirs déterminée, n'a point de Constitution” – grifo nosso. Ou seja, garantir direitos – liberdade e propriedade – e barrar a ação predatória do Estado, através da separação de poderes. Ao separar os poderes, admitindo-se, até mesmo a imobilidade estatal, estar-se-á transferindo a soberania para as mãos do povo, através de seus representantes. Em outras palavras, a soberania do povo era a supremacia da lei.
Da Supremacia da Lei e a tripartição de poderes
Com a tripartição dos poderes, por sua vez, conforme já foi salientado, buscava-se uma racionalização na esfera política. Nas palavras literais do barão de MONTESQUIEU, que concebeu este modelo estatal inspirado no modelo inglês, o objetivo era combinar os poderes, regrá-los, temperá-los, fazê-lo agir; dar a um Poder, por assim dizer, um lastro, para pô-lo em condições de resistir a um outro.[4]
Ressalte-se que Charles-Louis de Secondat, o barão de MONTESQUIEU, não foi o primeiro a pregar a separação de poderes. Muitos autores contemporâneos esquecem, quando falam em sistema de poderes, de mencionar a contribuição de JOHN LOCKE. Depois de ARISTÓTELES, em seu livro a Política, LOCKE, no seu TwoTreatisesofGovernment, prega um poder político limitado. Em sua obra, o autor explicita que os poderes políticos do Estado – Government – eram de duas naturezas: Poder Legislativo e Poder do Rei. Estava aí a tripartição de poderes! Não esqueçamos que o autor inglês retratou, provavelmente perto de 1680, o governo de seu país, que vivenciava esta harmonia entre os três poderes. O judiciário já tinha sua parcela de independência! Muito embora no embate entre parlamento e judiciário, travado na Inglaterra a partir do Bonham’s Case (1610), em que o juiz Edward Coke pretendeu firmar a supremacia deste último, a vitória daquele foi inexorável. Entretanto, não há como negar que a magistratura já tinha sua parcela de autonomia no Estado inglês.
MONTESQUIEU, quase setenta anos depois, em 1748, transportou os princípios de LOCKE, sem antes escancarar a existência de um Judiciário independente, fazendo parte do poder estatal.
Não há como afirmar que LOCKE tenha esquecido de mencionar o judiciário. Ao contrário, uma das suas primeiras preocupações, quando defendia sua visão contratualista de Estado, era a existência de juízes imparciais que decidissem os eventuais litígios, essenciais na preservação da propriedade.
CEZAR SALDANHA, ao lembrar das concepções do filósofo inglês, traça algumas respostas acerca desta faceta – o ‘esquecimento’ de LOCKE em mencionar o poder dos juízes:
Talvez isso se explique, primeiro, porque, pelo menos a partir de Guilherme o Conquistador, a justiça de primeiro grau era exercida diretamente na própria sociedade, pelos pares, no júri. Depois, porque as Cortes de segundo grau eram compostas livremente pelo Rei, integrando a esfera das funções do poder executivo arcaico. E, enfim, porque as Cortes Reais passaram também a sentar no Parlamento, o que fazia deste uma praça pública universal das relações entre as principais autoridades do Estado.
Entretanto, podemos afirmar com certeza que a função judiciária estava no âmbito do poder executivo arcaico. (...)[5]
O judiciário, embora a tese de que fazia parte do poder executivo arcaico, tinha certa autonomia que pudesse guindá-lo como poder independente, mormente em 1680, muito tempo depois das lições de Sir Edward Coke. Vale lembrar que estas mesmas lições foram largamente utilizadas pelo judiciário norte-americano, quando firmou sua supremacia. Talvez a razão de LOCKE não mencionar nada a respeito da esfera judicial seja mais simples.
Na verdade, o filósofo inglês, quando traçou as características dos poderes políticos, pretendia lançar um tratado de governo. Government, para o inglês do início do século XVII, confundia-se com a própria concepção de Estado. Ora, como já fora salientado, em linhas atrás deste mesmo trabalho, há que se ter em mente a diferenciação sócio-histórica e cultural das duas famílias de direito – ruleoflaw e o Estado de Direito romano-germânico. Não há como afastar o pensamento de LOCKE do common law. Assim, quando o autor busca alinhavar as características do Estado ideal, o faz separando, claramente, o direito da política. Seu livro era de política! Diferentemente do Parlamento da Europa continental, que, dentro do campo político, cria o direito, por meio da lei; na Inglaterra, o parlamento restringe-se somente no campo político. A construção do direito é tarefa dos juízes, com os precedentes, através do processo. Nada mais esperado, com efeito, que o inglês que fosse retratar seu government restringisse seu estudo nos únicos poderes eminentemente políticos existentes: o do rei e o do parlamento.
O certo é que foi inegável a contribuição de LOCKE, como também importantíssima a leitura de MONTESQUIEU, que muito bem soube trazer a função judicial como uma função estatal independente.
Cumpre admitir que existiu, inicialmente, uma certa restrição da sociedade frente aos juízes. Um dos esteios dos desmandos do Ancien Regim foi a magistratura. Com efeito, como salienta MAURO CAPPELLETTI, fazendo referência ao pensamento de CHIOVENDA, o abuso verificado pela monarquia significava “um droit de propriété, um droit patrimonial”.
Mais adiante o autor ironiza:
Não foi à toa que aqueles juízes estiveram, quase sempre, entre os adversários mais implacáveis de qualquer, mesmo mínima, reforma em sentido liberal, e, então, implacabilíssimos adversários da Revolução que, nas terras das guilhotinas, fez, afinal, larga messe de suas veneráveis cabeças(...)[6]
Além disso, a concepção clássica montesquiana de separação total de poderesfoi tomada ao extremo na França. Enquanto que países da América adotaram mecanismos de relativização da independência dos poderes estatais – a doutrina dos checksandballances ou dos feios e contrapesos –, a França não fez questão de harmonizar esta tripartição do Estado. Ao contrário, aceitou a proeminência da Assembléia legislativa.
Diferenças da Supremacia do Direito na Europa e na América
Convém lembrar que, nos Estados Unidos da América, país originado nos modelos de supremacia do Direito na família de common law, a tarefa de criar o Direito surge pelo precedente. Este, por sua vez, embora válido, em um primeiro momento, somente para os partícipes do processo, vinculará as futuras decisões dos tribunais, transformando-se em jurisprudência, para, após, formar o costume. Nessa linha, parece até óbvio que o nascimento do Estado de Direito na América de origem ruleoflaw superestime o órgão encarregado da criação jurídica, como assim fez a França. A única diferença é que tal tarefa coube ao Judiciário.
Enfim, independente dos reais motivos, o certo é que, no embate de forças políticas entre os poderes institucionalizados, restou ileso o parlamento, representante do povo e da supremacia do direito.
Quem muito bem constata tal situação é CARRÈ DE MARBERG, em trecho de seu debate no Instituto de Direito Público, publicado em livro de HANS KELSEN:
O sistema francês de organização de poderes constituídos tomou, desde o início, caminho bem diferente. Deixando de lado a excepcional medida em que o rei, sob alguns aspectos particulares, era qualificado de ‘representante’, a Constituição de 1791, na esteira da declaração dos direitos de 1789, estabeleceu entre o corpo legislativo e as outras autoridades uma espécie de desigualdade que tinha uma causa profunda e que excluía qualquer possibilidade de uma separação verdadeira e substancial entre poder legislativo e poder constituinte. Enquanto o executivo e a autoridade judiciária exerciam suas atribuições na forma e com os poderes de funcionários que agem a serviço da nação, a assembléia de deputados, concebida como órgão que ‘quer pela nação’, se tornava a ‘representação’ mesma desta última e adquiria, a esse título, a posse da soberania nacional com os poderes aí decorrentes. E é isso que a declaração de 1789 formulava em termos penetrantes quando, no art. 6º, a propósito da lei oriunda das decisões do legislador, dizia que é ‘expressão da vontade geral’ (Const. 1793, art. 4º da Declaração dos Direitos; Const. Do ano III, art. 6º da Declaração dos Direitos); e na seqüência do texto precisava e reforçava o alcance dessa definição especificando que ‘através dos seus representantes todos os cidadãos’ exercem ‘o direito de participar da sua formação’. Era como dizer que, no corpo legislativo, no momento da elaboração das leis, está presente o próprio povo ou a totalidade dos cidadãos. O que o legislador decidiu é decisão legislativa do povo, isto é, não de uma autoridade encarregada pelo povo, mas o próprio povo soberano. Abria-se desse modo um abismo jurídico entre o poder legislativo da assembléia dos deputados, que representa a nação, e as competências das outras autoridades, que só ocupam cargos funcionários. Compreende-se portanto facilmente como, dadas essas premissas, a Constituição de 1791 (tít. III, cap. II, séc. I, art. 3º) tenha podido concluir que ‘na França, não há autoridade superior à da lei.[7]
As idéias de ROUSSEAU, que, dentre todos os autores modernos, foi o mais enfático em caracterizar o verdadeiro regime político como aquele em que impera a vontade do povo, impregnaram a visão política francesa. Mas não foi só lá. Preocupados em justificar uma legítima contenção à soberania do Estado, que, em última análise, era conter o poder do déspota, outros autores da Europa Continental iniciaram uma série de debates, buscando justificar o Estado Moderno.
Não se pode esquecer que a soberania do rei já havia sido extensamente legitimada pelo processo de nacionalização e fortalecimento do poder público, através de pensadores do porte de BODIN e HOBBES. Nesta concepção que se arraigou na Europa Continental, fazia parte do pensamento europeu que, em nome de um pacto de segurança e ordem, cada indivíduo alienava seus direitos a um soberano. Por isso, constata-se que o europeu muitas vezes confundia a limitação deste soberano como um ato limitador do próprio Estado. O soberano era o Estado!
Basta contextualizar, historicamente, o momento vivido na Europa Continental, que culminou no regime absolutista: as constantes instabilidades sociais e territoriais – tanto na luta por fronteiras quanto o temor de subversão dos súditos, bem como os conflitos religiosos – primeiramente entre cristãos e pagãos e, mais tarde, ente católicos e protestantes. Todo este quadro de instabilidade levou a um sentimento de insegurança, o qual justificou a soberania. Foi preciso fortalecer o laço de autoridade do monarca, para que pudesse pôr fim às crises desencadeadas ao final do período medieval. BODIN, em ‘DE LÁ REPUBLIQUE’ (1576), prega a ordem social, enfatizando a autoridade do soberano, quem melhor dispõe da unidade indispensável para o recrudescimento do Estado.
A fim de fundamentar a soberania, o autor defendia que tantos súditos quanto o próprio monarca deveriam respeitar as leis naturais, sendo, este último, estabelecido por Deus. Outro teórico, mais tarde, em 1642, desapegado da influência cristã – a qual influenciou seu antecessor – rompe este quadro, fundamentando a soberania – existência de um Estado forte e ilimitado – na existência de um contrato de segurança. Era o início dos contratualistas. HOBBES, em seu célebre LEVIATÃ, partindo do pressuposto que o homem nascia em estado de desigualdade, ditado pelas paixões, concluía sobre a inevitável guerra de todos contra todos.
No entanto, os homens, sabendo que esta guerra os consumiria, despojam-se de seus direitos, unindo-se para ganharem força, formando um contrato de segurança, surgindo a figura de um Estado forte e concentrado.
Até então, restou inevitável compor o Estado na figura do soberano, sendo sobremaneira difícil imaginar em uma limitação de poder estatal.
É com LOCKE que as bases teóricas se descortinam. É interessante observar a evolução do pensamento, no mesmo diapasão histórico: BODIN reforça a soberania, com fundamento impregnado de religiosidade; HOBBES se desvencilha dos laços teológicos e, na defesa da soberania concentrada, busca lastros voluntaristas e racionais; já LOCKE, na linha de HOBBES – desapegado de bases religiosas na sua fundamentação política –, seguindo um discurso racionalista, conclui pela limitação do poder estatal.
Enquanto o primeiro escreveu quando a Igreja exercia forte influência nas decisões políticas, este escreveu após as instabilidades vividas na Inglaterra.
Talvez por isso seu contrato social tenha tido fundamento mais otimista – ao contrário do estado de natureza dos homens de HOBBES, no qual regia a guerra de todos contra todos. Para o primeiro, a existência do contrato era para modificar o estado inicial, para o segundo, em grosso resumo, o que se pretendia era a manutenção do estado primitivo. O resultado disso foi admitir a força de um Parlamento, a fim de garantir a existência de um Estado de Direito.
Para conceber uma mudança de paradigmas de tal envergadura, era necessário um lastro teórico capaz de legitimar a superioridade deste poder estatal – o Parlamento.
Nessa esteira, cabe transcrever as palavras de RUDOLF VON JHERING, em texto escrito entre 1877 e 1883, demonstrando sua preocupação em limitar a soberania estatal, lançando as primeiras linhas da idéia de Estado de Direito e, também, de Direito Administrativo:
Portanto o direito, nesta acepção lata, implica a força bilateralmente obrigatória da lei, a submissão do próprio Estado às leis que ele promulga.
(...)
Ora o poder legislativo não está como o juiz, como o governo, colocado sob a lei, antes está acima da lei. Cada lei que ele proclama, qualquer que seja seu teor, é, em direito, um ato perfeitamente legal. Portanto, em sentido jurídico, o legislador não pode cometer nunca uma arbitrariedade; sustentar o contrário seria o mesmo que dizer que lhe não assistia o direito de mudaras leis existentes; seria colocar o poder legislativo em contradição consigo mesmo. Mas, assim como o pai deve, senão juridicamente pelo menos moralmente, usar do seu poder em conformidade com o fim da autoridade paternal, ao legislador pelo seu lado cumpre empregar no interesse da sociedade o poder de que dispõe: o seu direito é ao mesmo tempo, como o do pai, um dever; por força da sua própria missão tem que satisfazer a umas certas exigências, que respeitarumas certas normas. Portanto ele pode também abusar do poder que lhe foi confiado.[8]
Assim como MONTESQUIEU assumiu o risco de um imobilismo natural do Estado, JHERING, por sua vez, assume, claramente, o risco do perigo da superioridade de um poder sobre o outro: o abuso do legislador.
Nos Estados Unidos, em um enfrentamento de poderes, no célebre caso Marbury v. Madson, em 1803, em histórica decisão do Chief Justice John Marshall, a fim de evitar uma grave crise política na América recém inaugurada, firmou-se a necessidade de controle da constituição. Marshall conquistou a vitória que Coke não conseguiu, quando propugnou, diferentemente de JHERING, a impossibilidade de abuso do parlamento.
Naquela oportunidade, Willian Marbury, Dennis Ramsay, Robert TownsendHooe e Willian Harper, que haviam sido nomeados, em 1801, na calada da noite – nos últimos dias do governo do federalista John Adams –, para o cargo de juiz de paz no Distrito de Columbia, tiveram negadas as suas posses pelo governo republicano de Thomas Jéfferson. O caso foi parar na Suprema Corte americana.
O caso, em si, não seria de maior repercussão, se não fossem alguns detalhes. A começar que Marshall, então encarregado de decidir o caso concreto, foi o secretário de governo responsável pelos atos de nomeação daqueles juízes de paz. Portanto sabia que o novo secretário Madson era obrigado a dar-lhes posse. Por outro lado, dar provimento à demanda, poderia gerar uma séria resistência do Executivo à decisão favorável da Suprema Corte, mormente porque tal corte era composta majoritariamente por federalistas, enquanto que, devido à última eleição, que consagrou Jefferson, tanto o Congresso, quanto o Executivo, eram republicanos. Acresce-se que, uma crise no seio dos poderes instituídos, poderia trazer abalos inimagináveis na impúbere República americana. Com efeito, sabendo destas repercussões, amplamente noticiadas na época, pelos jornais oficiosos do país, Marshall, de forma inteligente, embora admitindo a pretensão da causa, fulminou o pedido veiculado por Marbury, invocando a constitucionalidade de uma regra de competência. Por entender que as competências da Suprema Corte são taxativamente previstas na Constituição – regra até hoje adotada, bem como, constantemente, argüida pelo Supremo Tribunal Federal –, declarou a inconstitucionalidade do art. 13 da lei de 1789, que ampliava o rol originário de competências insculpidos no art. III, Seção II, do texto constitucional americano.
De qualquer forma, o constitucionalismo europeu não seguiu a linha descortinada por MARSHALL. Na verdade, houve certa dificuldade da Europa em assumir a necessidade do controle de constitucionalidade das leis, surgindo, talvez como efeito colateral, um ambiente propício para o desenvolvimento do positivismo jurídico.
Ora, enquanto que, nos Estados Unidos, o poder do Estado foi eficientemente limitado pelo Judiciário; a Europa seguiu caminho inverso, legitimando ao Parlamento tal tarefa. As conseqüências, por conseguinte, foi a dificuldade em adotar o controle constitucional concebido pelos americanos. Até porque, como já asseverado, o direito europeu não é calcado no precedente, mas na lei.
Das dificuldades europeias em aceitar a possibilidade de um controle difuso de constitucionalidade ao controle constitucional concentrado
A Europa bem que tentou adotar esta sistemática, qual seja, legitimar o juiz a afastar a aplicação da lei que não se coadunasse com os preceitos ou princípios constitucionais. Mas a cultura romano-germânica não permitiu tal adaptação. O direito europeu, a partir da Revolução Francesa, estabeleceu a supremacia do parlamento, sobre os demais poderes estatais. Esta proeminência do poder legislativo gerou, como influências inevitáveis, a supervalorização dos princípios da legalidade e da segurança jurídica, abrindo as portas ao positivismo jurídico. Assim, legitimar qualquer juiz a afastar uma lei, fruto da vontade do povo – representado em um parlamento –, em um caso concreto, aceitando decisões díspares sobre um mesmo fato, é pôr em risco os pilares da segurança jurídica.
A propósito, vale transcrever o seguinte trecho de Mauro Cappelletti:
No método de controle ‘difuso’ de constitucionalidade – no denominado método ‘americano’, em suma – todos os órgãos judiciários, inferiores ou superiores, federais ou estaduais, têm, como foi dito, o poder e o dever de não aplicar as leis inconstitucionais aos casos concretos submetidos a seu julgamento. Experimentemos então imaginar, como hipótese de trabalho – uma hipótese que, de resto, foi tornada realidade, como já se referiu, em alguns Países, ou seja, na Noruega, Dinamarca, Suécia e foi posta em prática, por poucos anos, também na Alemanha e na Itália – a introdução deste método “difuso” de controle nos sistemas jurídicos da Europa continental e, mais em geral, nos sistemas denominados de civil law, ou seja, de derivação romanística, em que não existe o princípio, típico dos sistemas de common law, do “staredecisis”. Pois bem, a introdução, nos sistemas de civil law, do método “americano” de controle, levaria à conseqüência de que uma mesma lei ou disposição de lei poderia não ser aplicada, porque julgada inconstitucional, por alguns juízes, enquanto poderia, ao invés, ser aplicada, porque não julgada em contraste com a Constituição, por outros. Demais, poderia acontecer que o mesmo órgão judiciário que, ontem, não tinha aplicado uma determinada lei, ao contrário, a aplique hoje, tendo mudado de opinião sobre o problema de sua legitimidade constitucional. (...) [9]
Somente a partir do pós-guerra, sente-se a necessidade, na Europa Continental, de criar mecanismos de controle de constitucionalidade, devido às experiências vividas na Alemanha.
Foi a falta de um controle na exemplar Constituição de Weimer que propiciou o início do nazismo alemão, culminando na Segunda Guerra Mundial.
ENTERRÍA, salienta que:
(...) o fracasso do sistema weimariano de justiça constitucional (especialmente visível no famoso juízo de 1932, sobre o chamado golpe de Estado do Reich contra a Prússia de Von Papen, legitimado nas Ordenações presidenciais autorizadas pelo famoso artigo 48 da Constituição), levou a República Federal alemã, surgida no segundo pós-guerra, sensibilizada pela perversão do ordenamento jurídico ocorrida no nazismo, a adotar, com algumas variantes importantes, o sistema kelsiano. (...)[10]
Com efeito, precisou uma catástrofe como a Segunda Grande Guerra Mundial para a Europa implementar, de uma vez por todas, o princípio do constitucionalismo. Para não se repetirem as mazelas dos regimes totalitários do século passado, as constituições passaram a adotar mecanismos de defesa. Em síntese: a constituição urge por controle, rigidez, para dar eficácia aos ditames da própria carta. Por falta destes mecanismos, viu-se a constituição de Weimer padecer sob o império de Hitler.
O debate entre FERDINAND LASSALE e KONRAD HESSE bem mostra a preocupação em fazer valer a supremacia da Constituição. KELSEN, defendendo uma jurisdição constitucional, em que a Carta Maior deve estar hierarquicamente em um nível superior ao ordenamento infraconstitucional, objetou as teorias de CARL SCHMIDT, segundo a qual a Constituição de um país não passava das decisões políticas vivenciadas em determinado período da história.[11]
Desta feita, não foram apenas palavras que calaram os críticos da eficácia da constituição, mas também uma guerra de proporções mundiais despertou a Europa para o princípio do constitucionalismo.
O controle de constitucionalidade das leis é o corolário lógico da supremacia da constituição. Sem o controle das leis, frente ao ordenamento maior – a Constituição –, não será possível assegurar a eficácia das diretrizes maiores de um Estado, propugnadas em um documento político ímpar.
O mecanismo adotado pela Europa foi concebido, como já assinalado, por HANS KELSEN, que, ao contrário do modelo norte-americano, criou um controle concentrado, nas mãos de um Tribunal Constitucional, a tarefa de garantir a eficácia das normas constitucionais.
Assim, a Constituição Austríaca de 1º de outubro de 1920 consagrou, como forma de garantir a força normativa da constituição, pela primeira vez, a existência de um tribunal, com exclusividade para o exercício do controle de constitucionalidade, em oposição ao consagrado judicial review dos americanos, em que cada juiz é um órgão legitimado a afastar a aplicação de uma lei considerada incompatível com o ordenamento constitucional.
O controle difuso de constitucionalidade na Europa só recentemente foi reinaugurado, mas com uma série de mecanismos visando adaptá-lo à cultura jurídica da região.
Conclusões
Concluindo este breve estudo, convém reforçar a ideia lançada no introito, qual seja, da importância, na leitura dos institutos jurídicos, mormente aqueles que dizem respeito ao controle de constitucionalidade, de se buscar as origens sócio-históricas do Direto local.
No caso do Brasil, no que toca ao controle difuso de constitucionalidade, merece atenção à evolução histórica desse instituto no direito europeu, a fim de que se possa entender os diversos contrastes verificados na atualidade brasileira. Com efeito, não se pode negar a origem romano-germânica das instituições brasileira, sob pena de distorções jurídicas nefastas.
A intenção deste breve estudo não foi de aprofundar tais distorções, mas lembrar os passos trilhados na Europa na evolução do Estado de Direito e do Estado Constitucional, norteando o estudo de outras instituições jurídicas.
[1]SOUZA JÚNIOR, Cezar Saldanha. A Supremacia do Direito no Estado Democrático e seus Modelos Básicos, Porto Alegre: Tese para concurso a professor titular da USP, 2002
[2]ROYO, Javier Pérez. Curso de Derecho Constitucional. Barcelona: Marcial Pons Ediciones Jurídicas y Sociales S. A..2003
[3] Apud HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. Belo Horizonte : Del Rey, c1999
[4]MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Tradução Cristina Murachco.São Paulo: Martins Fontes, 2000.
[5]SOUZA JÚNIOR, Cezar Saldanha. O Tribunal Constitucional como poder. Uma nova teoria da divisão dos poderes, São Paulo: Memória Jurídica, 2002
[6]CAPPELETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre : S. A. Fabris, 1999
[7]KELSEN, Hans.Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[8]JHERING, Rudolf von. A Evolução do Direito. Salvador: Livraria Progresso Editora. 1950
[9]CAPPELETTI, Mauro. Obra citada.
[10]GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Constitución como norma y el tribunal constitucional. 3. ed.
Madri: Civitas, 1994. p. 59
[11] KELSEN, Hans. Obra citada.
Procurador Federal, mestre em Direito pela UFRGS, professor da pós-graduação da IMED-RS e formado em engenharia civil pela UFRGS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Odilon Carpes Moraes. A Supremacia da Lei e a evolução do controle de constitucionalidade na Europa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 nov 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41652/a-supremacia-da-lei-e-a-evolucao-do-controle-de-constitucionalidade-na-europa. Acesso em: 23 dez 2024.
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