RESUMO: O artigo destina-se a elucidar o tema da competência do policiamento ostensivo em terra indígena.
Palavras-chave: Terra Indígena. Direito à segurança pública. Policiamento Ostensivo. Competência.
Nos termos do art. 20, inciso XI da Constituição Federal, as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são bens da União. Nesse sentido, alguns afirmam que à Polícia Federal competiria o policiamento ostensivo desse bem da União afetado por um uso específico (usufruto exclusivo indígena, nos termos do art. 231 da CF/88). Contudo, tal raciocínio, decorrente da correlação bem público federal e atuação da Polícia Federal é equivocado, como demonstraremos nas razões adiante alinhavadas.
É fácil observar que não existe tratamento diferenciado do indígena no que tange à prestação dos serviços de segurança pública. Afinal, o legislador constituinte não criou regra específica para a segurança pública em terra indígena ou em face da pessoa do índio. Nesse sentido, importante a menção aos arts. 3º e 5º da CF/88:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Com efeito, não há fundamento constitucional para a distinção de tratamento e para a negativa de prestação do serviço de segurança pública pelos entes estatais, especificamente a fiscalização rotineira e a consequente apuração e repressão de delitos, no que se refere aos indígenas no âmbito de suas terras indígenas.
Assim, evidenciado o direito do indígena à segurança pública, cumpre-nos buscar no arcabouço constitucional quem será o responsável por tal prestação de serviço.
Nesse sentido, fundamental a transcrição o art. 144 da Constituição Federal:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;
III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
§ 2º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
§ 3º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
§ 4º - Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
§ 5º - Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.
§ 6º - As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
§ 7º - A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.
§ 8º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
§ 9º A remuneração dos servidores policiais integrantes dos órgãos relacionados neste artigo será fixada na forma do § 4º do art. 39. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
§ 10. A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 82, de 2014)
I - compreende a educação, engenharia e fiscalização de trânsito, além de outras atividades previstas em lei, que assegurem ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente; e (Incluído pela Emenda Constitucional nº 82, de 2014)
II - compete, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos respectivos órgãos ou entidades executivos e seus agentes de trânsito, estruturados em Carreira, na forma da lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 82, de 2014)
No texto constitucional acima reproduzido, reforça-se que a segurança pública é direito de todos. Enumeram-se as atribuições da Polícia Federal, dentre as quais não se cita o policiamento ostensivo e, no tocante à função de polícia judiciária, assegura-lhe a exclusividade no âmbito federal. Afirma-se que à polícia civil atribui-se a função de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, ressalvada as de competência da União e as militares. Por fim, atribui às polícias militares – forças públicas estaduais - as funções de policiamento ostensivo e de preservação da ordem pública.
Não há atribuição de fiscalização ostensiva à Polícia Federal, nem mesmo restrição do policiamento ostensivo da Polícia Militar ao ente federado Estado. Ora, se o patrulhamento da Polícia Militar fosse restrito ao ente federado, cairíamos no absurdo de se proibir a fiscalização rotineiramente feita nas vias públicas e demais bens municipais.
No mais, em que pese a terra indígena ser bem da União, nem todos os crimes ali cometidos são de competência do Judiciário Federal e, por conseguinte, da Polícia Federal. Os crimes que não sejam cometidos em detrimento de bens, serviços ou interesses da União (suas entidades autárquicas ou empresas públicas) – art. 109, IV da CF/88 – e que não se relacionem à disputa de direitos indígenas – art. 109, XI da CF/88 – são de competência da Polícia Civil. A própria súmula nº 140 do Superior Tribunal de Justiça disciplina que a competência para processar e julgar crime em que indígena figure como autor ou vítima é da Justiça Comum Estadual.
Assim, o patrulhamento ostensivo cuja realização é atribuição quase que exclusiva da polícia militar – as exceções são a polícia rodoviária federal e a polícia ferroviária federal – deve ser realizado em todo o território nacional em face de bens públicos e bens de particulares. Não existe território inviolável para a fiscalização rotineira. Lembro que nem mesmo a casa é inviolável em caso de flagrante delito, desastre ou para prestar socorro. Logo, o bem público da União chamado terra indígena, embora de usufruto restrito aos indígenas, não está imune ao patrulhamento ostensivo da polícia militar.
Ressalte-se que o Decreto nº 88.777/1983, em seu art. 2º, item 27 define o Policiamento Ostensivo como sendo a “ação policial, exclusiva das Policias Militares em cujo emprego o homem ou a fração de tropa engajados sejam identificados de relance, quer pela farda quer pelo equipamento, ou viatura, objetivando a manutenção da ordem pública” e que prevê em seu art. 45 que a “competência das Polícias Militares estabelecida no artigo 3º, alíneas a, b e c[1] do Decreto-lei nº 667, de 02 de julho de 1969, na redação modificada pelo Decreto-lei nº 2.010, de 12 de janeiro de 1983, e na forma deste Regulamento, é intransferível, não podendo ser delegada ou objeto de acordo ou convênio”. Logo, não pode a Polícia Militar eximir-se de seu dever ou repassá-lo a quem quer que seja.
Para ficar extreme de dúvidas, cito o próprio Estatuto do Índio, que atribui a todos os entes federados obrigações perante os índios e suas comunidades:
Art. 2° Cumpre à União, aos Estados e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, nos limites de sua competência, para a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos:
I - estender aos índios os benefícios da legislação comum, sempre que possível a sua aplicação;
(...)
III - respeitar, ao proporcionar aos índios meios para o seu desenvolvimento, as peculiaridades inerentes à sua condição;
IV - assegurar aos índios a possibilidade de livre escolha dos seus meios de vida e subsistência;
V - garantir aos índios a permanência voluntária no seu habitat , proporcionando-lhes ali recursos para seu desenvolvimento e progresso;
(...)
VII - executar, sempre que possível mediante a colaboração dos índios, os programas e projetos tendentes a beneficiar as comunidades indígenas;
(...)
IX - garantir aos índios e comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes;
X - garantir aos índios o pleno exercício dos direitos civis e políticos que em face da legislação lhes couberem.
Por fim, em relação ao tema, cito o seguinte acórdão, o qual se expressou formalmente sobre a possibilidade de patrulhamento rotineiro em bem da União, no caso, universidade federal, além da possibilidade de atuação da Polícia Militar quando convocada pelo reitor:
CONSTITUCIONAL, CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. USO EXCESSIVO DE FORÇA POLICIAL MILITAR NAS DEPENDÊNCIAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. TRANSGRESSÃO A DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS COLETIVOS. PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. PEDIDO INICIAL CERTO E DETERMINADO. VIOLAÇÃO AO EXERCÍCIO DE FUNÇÃO INSTITUCIONAL DE ESTADO FEDERADO NÃO CARACTERIZADA. CULPA E NEXO DE CAUSALIDADE COMPROVADOS. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL E MATERIAL. I - O pedido formulado na inicial, no sentido de que, em situações similares à noticiada nos autos (coibição de manifestação popular), o Estado Federado (no caso, o Estado da Bahia) se abstenha de ingressar, sem prévia e competente autorização, nas dependências de instituição pública de ensino superior (Universidade Federal da Bahia), não se mostra incompatível nem contraditório com a ordem judicial, contida no julgado recorrido, relativamente ao exercício regular do poder de polícia, em operações policiais rotineiras(...)
(AC 0010564-33.2001.4.01.3300 / BA, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, SEXTA TURMA, REPDJ p.123 de 13/02/2007).
Destaco que em seu âmbito de competência e, por se tratar de atribuição constitucionalmente prevista, a atividade exercida pela Polícia Militar deve ocorrer de ofício, ou seja, sem necessidade de prévia solicitação e sem necessidade de anuência da União ou da entidade indigenista oficial (Fundação Nacional do Índio).
Contudo, em se tratando de população indígena, as quais apresentam vicissitudes que lhes são próprias, a exemplo dos usos costumes, tradições, modo de vida e ordenamento jurídico, apesar de não ser obrigatório – repita-se –, recomenda-se que o planejamento da operação de patrulhamento ostensivo seja realizado em conjunto com a FUNAI, tendo em vista a relação de confiança que as comunidades indígenas depositam nesse órgão a quem compete, nos termos do Decreto nº 7.778/2012 a proteção e a promoção dos direitos indígenas.
Frente ao exposto, em torno da prevenção e repressão de ilícitos em terra indígena, temos a seguinte situação: I) o patrulhamento rotineiro, ostensivo, no interior e entorno da terra indígena, bem como a preservação da ordem pública, deve ser realizado pela Polícia Militar do Estado; II) uma vez praticado o crime, quem deve entrar em ação é a polícia investigativa, atribuição da Polícia Federal ou da Polícia Civil, salvo as exceções constitucionalmente previstas, e cada uma no âmbito de sua respectiva competência.
[1] Art. 3º - Instituídas para a manutenção da ordem pública e segurança interna nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, compete às Polícias Militares, no âmbito de suas respectivas jurisdições: (Redação dada pelo Del nº 2010, de 1983)
a) executar com exclusividade, ressalvas as missões peculiares das Forças Armadas, o policiamento ostensivo, fardado, planejado pela autoridade competente, a fim de assegurar o cumprimento da lei, a manutenção da ordem pública e o exercício dos poderes constituídos; (Redação dada pelo Del nº 2010, de 1983)
b) atuar de maneira preventiva, como força de dissuasão, em locais ou áreas específicas, onde se presuma ser possível a perturbação da ordem; (Redação dada pelo Del nº 2010, de 12.1.1983)
c) atuar de maneira repressiva, em caso de perturbação da ordem, precedendo o eventual emprego das Forças Armadas; (Redação dada pelo Del nº 2010, de 1983)
Procurador Federal e Coordenador de Assuntos Contenciosos da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Ex-Procurador do Estado da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Lívio Coêlho. Policiamento ostensivo em terra indígena Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 nov 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41678/policiamento-ostensivo-em-terra-indigena. Acesso em: 23 dez 2024.
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