RESUMO: O presente trabalho traz como tema a modulação de efeitos do controle concentrado de constitucionalidade, conforme previsto pelo artigo 27 da Lei Federal 9.868/1999. Objetiva identificar, a partir da análise da doutrina e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os requisitos e os parâmetros para utilização do instituto. O estudo procura sistematizar a definição e os requisitos formais e materiais de acordo com as tendências doutrinárias e jurisprudenciais sobre a possibilidade de mitigação dos efeitos da nulidade decorrente do controle de constitucionalidade. Observa-se que a previsão legal dá margem para amplificação do campo de atuação da modulação de efeitos, à medida que adota conceitos jurídicos indeterminados e possibilita a ponderação de qualquer efeito genérico da declaração de inconstitucionalidade (erga omnes, ex tunc, vinculante e repristinatório).
INTRODUÇÃO
O controle de constitucionalidade das leis exsurge como tópico de amadurecimento e aprofundamento teóricos crescentes, mormente após a Constituição cidadã de 1988.
Como consequência da declaração de inconstitucionalidade de ato normativo, no âmbito do controle jurisdicional concentrado ou incidental (art. 93, IX, da Constituição Federal) decorrem efeitos genéricos (erga omnes, ex tunc, vinculante e repristinatório) que, se adotados irrestritamente, podem causar situações de insegurança jurídica e lesão a interesse social, situações que a própria Constituição Federal resguarda.
Em determinadas hipóteses, especialmente naquelas em que a norma inconstitucional vigorou como aparentemente constitucional, diversas relações jurídicas ou situações fáticas consolidadas foram regidas pela norma inconstitucional. Simplesmente extirpar a citada norma por efeito do princípio genérico da nulidade absoluta acarretaria, como já dito, um grave dano ao próprio ordenamento jurídico constitucional.
A par disso, o estudo aqui realizado procura adentrar na conceituação do instituto da modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, previsão inserida pelo artigo 27 da Lei 9.868/1999, de forma a parametrizar os conceitos jurídicos indeterminados envolvidos na aplicação do instituto e estabelecer os contornos de dosimetria dos efeitos da nulidade anticonstitucional.
Do ponto de vista científico, a importância do tema deriva da necessidade de aferição do conteúdo, conceituação e alcance jurídico da modulação dos efeitos e dos contornos e limites delineados pela doutrina e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF).
Desse modo, acredita-se que a presente pesquisa e investigação sobre a temática escolhida poderá contribuir, embora de forma singela, na construção do conhecimento científico sobre o assunto, de forma a aprimorar a sistematização e a comparação da doutrina com a jurisprudência do Pretório Excelso.
1. EFEITOS genéricos DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE NO CONTROLE ABSTRATO
A declaração de inconstitucionalidade realizada no controle abstrato resulta, em regra, efeitos erga omnes, ex tunc, vinculantes e repristinatórios.
O efeito erga omnes significa que a inconstitucionalidade é oponível a todos, não se resumindo à aplicação somente às partes do processo, como é a regra do controle difuso.
O efeito ex tunc da nulidade consiste na não produção de efeitos do ato desde sua edição, ou seja, como se ele nunca existisse. Todas as relações jurídicas embasadas nas disposições normativas inconstitucionais também não produzem efeito jurídico, diante do vício principal.
A natureza vinculante da declaração de inconstitucionalidade significa o caráter impositivo da decisão aos demais órgãos da Administração Pública e do Poder Judiciário, sendo causa de rescisão da coisa julgada[1].
O efeito repristinatório, de natureza temporal, consiste na consequência da extração completa da norma inconstitucional do mundo jurídico, qual seja, o restabelecimento da ordem jurídica anteriormente vigente, de forma que as leis revogadas pela norma declarada inconstitucional têm sua vigência restaurada. É, em síntese, o retorno ao status quo ante existente antes da edição do ato nulo.
Isso tudo é consequência do pressuposto genérico de que lei ou ato normativo federal inconstitucional é nulo de pleno de direito, não produzindo, pois, quaisquer efeitos.
Muitos problemas surgiram diante da aplicação desses postulados aos procedimentos de controle de constitucionalidade, mormente quando o lapso entre a edição da norma e a declaração de sua inconstitucionalidade fez surgirem relações jurídicas presumidas como legítimas, pois reguladas pela norma enquanto litispendente sua validade.
Por força desses efeitos ordinários radicais em detrimento da necessidade de resguardar a segurança jurídica, a boa-fé e os direitos fundamentais das relações jurídicas formadas e reguladas pela lei até sua declaração de inconstitucionalidade, é que a ciência jurídica evoluiu para a criação de um instituto que relativizasse os efeitos genéricos decorrentes da declaração de nulidade da norma ou ato normativo federal.
Dessa forma, o legislador brasileiro, atento aos parâmetros do direito estrangeiro (v. g., o português e o austríaco), introduziu a possibilidade da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade realizada no controle abstrato.
2. MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
A modulação dos efeitos das decisões proferidas em controle abstrato de constitucionalidade foi introduzida no direito brasileiro pelo artigo 27 da Lei 9.868/1999, que, pela relevância, convém transcrever:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Tal previsão encontra precedentes legislativos no direito estrangeiro e seu pressuposto material é a preservação da segurança jurídica ou de relevante interesse social diante do lapso temporal transcorrido entre a edição do ato e a publicação da declaração de inconstitucionalidade.
Não obstante a previsão infraconstitucional, a modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal encontra raízes constitucionais, já que a ponderação dos efeitos visa ao resgate da unidade material da Carta Magna[2].
A previsão do artigo 27 da Lei 9.868/1999 representa mitigação do princípio da nulidade, que consubstancia a regra geral do direito brasileiro. Assim, a modulação dos efeitos da decisão declaratória de inconstitucionalidade admite um juízo de ponderação com base no princípio da proporcionalidade em sentido estrito.
Imprescindível destacar que o afastamento parcial dos efeitos tradicionais da nulidade deve representar a preservação da segurança jurídica ou de observância de interesse social de índole constitucional.
Segundo Gilmar Mendes (2010, p. 1446), o STF pode exarar, em tese, uma das seguintes decisões:
a) declarar a inconstitucionalidade apenas a partir do trânsito em julgado da decisão (declaração de inconstitucionalidade ex nunc)
b) declarar a inconstitucionalidade, com a suspensão dos efeitos por algum tempo a ser fixado na sentença (declaração de inconstitucionalidade com efeito pro futuro); e, eventualmente,
c) declarar a inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, permitindo que se operem a suspensão de aplicação da lei e dos processos em curso até que o legislador, dentro de prazo razoável, venha a se manifestar sobre situação inconstitucional (declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade = restrição de efeitos).
Alexandre de Moraes (2013, p. 775) defende a tese de que o termo inicial da nulidade do ato, em respeito à tradição da eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade, deve ser definido entre a edição da norma e a publicação da decisão. O próprio doutrinador aponta que a Corte Suprema não comunga do mesmo entendimento, sob o fundamento de que a projeção da nulidade para momento posterior à publicação da decisão é verdadeiro “apelo ao legislador” para que edite nova norma revogadora da inconstitucional.
Por outro lado, a modulação não se limita apenas aos efeitos temporais. É possível que a Suprema Corte deixe de aplicar a regra geral da eficácia erga omnes, de forma a afastar a aplicação da inconstitucionalidade a algumas situações jurídicas consolidadas.
Não obstante isso, a mitigação da eficácia erga omnes deve estar conjugada, como inerente que é ao instituto da modulação, à garantia da segurança jurídica ou de relevante direito social. Vale dizer, o afastamento da aplicação da declaração de inconstitucionalidade deve incidir sobre as relações jurídicas formadas enquanto a norma era aparentemente constitucional.
Não há, portanto, como o STF regular abstratamente situações jurídicas não formadas em relação a determinada categoria de indivíduos, pois estaria editando comando de caráter legislativo, ou seja, determinações abstratas regulatórias, vedadas ao Poder Judiciário diante do pilar constitucional da separação de Poderes (a tarefa é do Poder Legislativo).
Como consectário da garantia da segurança jurídica, é possível também que se module o efeito repristinatório das normas revogadas pelo ato declarado inconstitucional.
2.1 Parâmetros Formais
À luz da doutrina e da jurisprudência, examinam-se os parâmetros formais principais para a modulação de efeitos dos atos declarados inconstitucionais.
A expressa previsão legal condiciona a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal à aprovação por dois terços dos membros do STF, o que, considerando a composição atual de onze ministros, significa a necessidade da manifestação de oito integrantes da Suprema Corte para mitigar os efeitos genéricos da nulidade.
Nesse aspecto, o STF majoritariamente entende que a votação é bifásica, de forma que, mesmo os Ministros que votaram contra a inconstitucionalidade, podem votar novamente no juízo de modulação de efeitos, o que também implica em quóruns independentes. Em contrapartida, o Ministro Marco Aurélio entende[3] não ser possível que aqueles Ministros que votaram pela constitucionalidade votem pela modulação da inconstitucionalidade.
Questão mais tormentosa é sobre a forma como deve ser provocada a manifestação.
Na ADI 2.797-ED, o STF assentou o cabimento de Embargos de Declaração para provocar a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, pois o silêncio do decisum acerca do tema somente torna absoluta a não ocorrência de “razões de segurança jurídica” ou de “excepcional interesse social”[4] com o trânsito em julgado.
Segundo a jurisprudência anterior da Suprema Corte[5], “se houve silêncio quanto à modulação dos efeitos, entende-se que a declaração de inconstitucionalidade vale desde a vigência da lei inválida” [6].
De acordo com o novel entendimento, todavia, é dever do STF zelar pela declaração de inconstitucionalidade com efeitos limitados ou restritos se existentes “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social” (art. 27 da Lei 9.868/1999).
Disso se deduz que a modulação de efeitos independe de pedido expresso na inicial[7], até porque a necessidade de regular a ordem jurídica e social decorre, na maior parte das vezes, do período em que a lei nula estava vigente por força da demora da prestação jurisdicional de controle de constitucionalidade.
Por conseguinte, conclui-se que é plenamente possível que a Corte Suprema, provocada por Embargos de Declaração que não veicula proposta de modulação, resolva, de ofício, modular os efeitos da nulidade normativa.
Assim, se é possível a modulação de ofício, natural que se admita que a parte embargada, ou até mesmo a embargante após a apresentação dos Embargos de Declaração, provoque o STF a modular os efeitos da decisão.
Outra questão possível de conjeturar é se, mesmo sem provocação via Embargos de Declaração, algum Ministro pode suscitar questão de ordem até o trânsito em julgado da decisão.
É consabido que ao juiz somente é possível alterar de ofício a sentença, após sua publicação, se constatar inexatidões materiais ou erro de cálculo. Sob o ponto de vista processual, portanto, o STF somente poderia alterar a decisão declaratória de inconstitucionalidade até a publicação do acórdão.
2.2 Parâmetros materiais condicionais
Necessário primeiramente abordar-se alguns parâmetros materiais extrínsecos para o ato de modulação.
Segundo a disposição legal, a declaração de inconstitucionalidade pode ser modulada quando emanada em controle concentrado.
O STF entende, todavia, que, em situações excepcionalíssimas, é possível que a modulação ocorra em juízo de declaração incidental de inconstitucionalidade, desde que observado o rito do art. 97 da Constituição Federal[8].
Segundo Gilmar Mendes (2010, p. 1450), “não parece haver dúvida de que (...) a limitação de efeito é apanágio do controle judicial de constitucionalidade como um todo, podendo ser aplicado tanto no controle direto quanto no controle incidental”. O mesmo jurista, abordando eventuais conflitos entre ações diretas e concretas com escopo de declaração de inconstitucionalidade, ressalta que, se o STF se deparar com uma distância temporal entre as decisões do controle abstrato e as de caráter incidental (v. g., aquela fixando efeitos ex nunc e estas, prévias, com efeito ex tunc), é possível que a Corte Suprema ressalve a aplicação ampla da declaração de nulidade aos casos resolvidos no controle incidental.
Quanto ao objeto da declaração de inconstitucionalidade, ou seja, lei ou ato normativo, o Pretório Excelso, tendo em vista a adoção da teoria da revogação dos atos pré-constitucionais, entende que não cabe a modulação de efeitos para norma não recepcionada pela Constituição Federal de 1988[9].
Registradas essas posições gerais sobre a modulação, passa-se aos seus requisitos intrínsecos materiais.
Segundo o art. 27 da Lei 9.868/1999, são necessárias “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”. A primeira e mais básica constatação é que os requisitos não são cumulativos.
Denota-se, ainda, que os referidos conceitos jurídicos indeterminados devem ser interpretados sob base constitucional, de forma que a garantia da segurança jurídica deve estar fundada no equilíbrio do próprio Estado de Direito e o excepcional interesse social nos diversos direitos fundamentais preconizados pela Constituição Federal[10].
Na ADI 3.819/AC, a Suprema Corte, ao declarar a inconstitucionalidade de lei estadual que efetuou a transposição de servidores públicos para o cargo de Defensor Público sem observar o requisito do concurso público, modulou os efeitos da nulidade para seis meses após a data da decisão.
Naquele caso, o STF considerou que, apesar da inquestionável inconstitucionalidade do provimento dos cargos, a aplicação da regra da nulidade absoluta subtrairia de imediato 20% (vinte por cento) dos ocupantes dos cargos de Defensor Público, o que causaria grave prejuízo ao direito social dos hipossuficientes de acesso à Justiça.
Com a prospecção dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, o Poder Executivo estadual poderia prover os cargos de forma temporária e providenciar concurso para provimento definitivo, em observância à ordem constitucional.
Quando a norma extraída do ordenamento jurídico é tributária, o STF analisa com maior cautela o pedido de modulação, especialmente para afastar a presunção absoluta de que a Fazenda Pública aplique o fruto da tributação em finalidades públicas. A propósito, cita-se o seguinte excerto:
Pondero que, em matéria tributária, a aplicação de efeitos prospectivos à declaração incidental de inconstitucionalidade demanda um grau ainda mais elevado de parcimônia, porquanto é um truísmo afirmar que os valores arrecadados com a tributação se destinam ao emprego de finalidades públicas. Portanto, não basta ao sujeito ativo apontar a destinação de índole pública do produto arrecadado para justificar a modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, sob o risco de se inviabilizar qualquer pretensão de restituição de indébito tributário, em evidente prejuízo da guarda da constitucionalidade e da legalidade das normas que instituem as exações.[11]
Por outro lado, no RE 556.664/RS o STF modulou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade dos artigos 45 e 46 da Lei 8.212/1991 para considerar válidos os recolhimentos da contribuição previdenciária até a data do julgamento, ressalvando eventuais ações de repetições de indébito ajuizadas antes do citado marco temporal. A questão se referia à instituição indevida de prazo decadencial de constituição e de lapso prescricional de cobrança da contribuição previdenciária, já que matérias reservadas à lei complementar.
Naquele caso, o fundamento aventado pela Corte Suprema consistiu na repercussão e na insegurança jurídica decorrente da pronúncia de inconstitucionalidade, considerando a grande quantidade de recursos arrecadados pelo Fisco que seriam passíveis de ressarcimento aos contribuintes.
2.3 Parâmetros materiais de DOSIMETRIA
Tendo em vista a aplicação prática do instituto da modulação de efeitos, é possível abstrair alguns aspectos da definição em concreto da modulação.
A construção do entendimento conceitual de aplicação da modulação parece estar bem postada em considerações do Ministro Gilmar Mendes, realizadas na ADI 4.009/SC, sobre a visão de dois planos jurídicos de pronunciamento em matéria de exame de constitucionalidade.
O primeiro plano é sobre a validade da lei, questão essa que é objeto da declaração ou não de inconstitucionalidade. Nesse plano a lei não é válida abstratamente, como regramento genérico que é.
O segundo plano está condicionado à declaração de inconstitucionalidade e consiste no exame dos atos concretos realizados enquanto o ato era presumido constitucional.
No plano dos atos concretos, é possível, portanto, que, diante da necessidade de garantir a segurança jurídica e o excepcional interesse social, haja a restrição dos efeitos genéricos da nulidade.
Em contrapartida, salvo determinação judicial expressa, os atos que não se concretizaram não poderiam se enquadrar na modulação de efeitos.
Necessário, nesse ponto, ilustrar. Se uma determinada categoria obtém por norma legal a isonomia com outra categoria, e esse ato é declarado inconstitucional, é possível modular os efeitos da nulidade para não retroagir à data da decisão (ex nunc). O fundamento poderia ser o grande impacto social e a insegurança jurídica decorrente de grande período de vigência da lei. Independentemente dos fundamentos, o que interessa no exemplo acima é que somente os atos concretos seriam resguardados pela modulação de efeitos, não sendo afetado o plano abstrato (inconstitucionalidade da lei).
Não seria possível, por exemplo, que um servidor, não contemplado oportunamente pela norma (enquanto aparentava constitucionalidade), deduzir pretensão de majoração remuneratória com base nessa mesma norma. É que aqui a lei não foi concretizada (segundo plano) e o fundamento de sua aplicação esbarra na pronúncia de nulidade do plano abstrato (primeiro plano).
Sob outro ponto de vista para explicar o mesmo fenômeno, seria possível afirmar que importante limitação da modulação de efeitos seria restringi-la a situações jurídicas materialmente consolidadas (exercício do direito, ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada), sob pena de o instituto de modulação de efeitos se traduzir em atividade tipicamente legislativa (regramento abstrato das relações jurídicas).
A jurisprudência do STF admite que, em situações em que se criaria um caos jurídico com os efeitos ortodoxos da declaração de nulidade, seja proclamada a inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade por determinado prazo.
É a hipótese que ocorreu no julgamento da ADI 3.682/DF, em que a lei estadual que criou Município foi, apesar de declarada inconstitucional, mantida produzindo efeitos pelo prazo de vinte e quatro meses, frente à ausência de regulamentação para a criação de municípios por lei complementar. Com isso, se oportunizou que o Congresso Nacional cumprisse seu mister para editar o ato normativo regulamentador em prazo razoável.
Voltando à teoria dos planos da eficácia da declaração de inconstitucionalidade, fica claro que a prospecção dos efeitos da nulidade se restringe, na hipótese acima, ao caso concreto. Não se está afirmando que a Constituição Federal permite abstratamente que os municípios possam ser criados sem observação dos parâmetros constitucionais, pois isso foi rechaçado no denominado primeiro plano. O que o STF afirmou é que, no plano concreto (ou segundo plano), a eficácia ex tunc geraria um caos jurídico com a desestruturação de um Município há muito implantado com base na norma inconstitucional. Em contrapartida, após a decisão do STF não mais poder-se-ia criar municípios, por afrontar o comando abstrato (primeiro plano).
Por outro lado, situação incompatível, a princípio, com a construção doutrinária e jurisprudencial sobre a modulação se verificou em recente julgamento incidental de inconstitucionalidade relativo aos critérios para concessão do benefício assistencial da Lei 8.742/1993 relativos ao art. 34, parágrafo único, da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) [12].
Sem adentrar aqui no mérito, o julgamento final proclamado estipulou inconstitucionalidade parcial do art. 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso, e a rejeição da modulação de efeitos[13]. O acórdão, todavia, foi lavrado fixando a inconstitucionalidade por omissão, sem pronúncia de nulidade. Não bastasse isso, não foi fixado o prazo para a prospecção, de forma a proporcionar tempo para que o legislador reconstitua a constitucionalidade da matéria.
Tal situação se mostra dissonante do que a doutrina e jurisprudência afirmam acerca da natureza modulatória (segundo plano) da não pronúncia de nulidade da declaração de inconstitucionalidade, pois no citado julgado não foi alcançado o quórum de dois terços para a modulação de efeitos. Disso se conclui que ou houve equívoco de julgamento ou evolução jurídica para admitir a declaração da não pronúncia de nulidade no primeiro plano (abstrato) da declaração de inconstitucionalidade.
Acredita-se na possibilidade de que, à luz da doutrina e da jurisprudência, haja uma dissonância entre o que efetivamente decidido e a lavratura do acórdão, pois a não pronúncia da nulidade, inerente à fase de modulação de efeitos, foi afastada. E, pelos debates divulgados, o próprio Ministro Gilmar Mendes explicitou que ou se declarava simplesmente a inconstitucionalidade ou se modulavam os efeitos para não se pronunciar a nulidade por determinado período.
Gilmar Mendes (2010, págs. 1437 e 1438) também registra que a declaração de inconstitucionalidade de caráter restritivo ou sem a pronúncia da nulidade é amparada pelo artigo 27 da Lei 9.868/1999, o que ressalta a relevância da reflexão acima.
O juízo de modulação da declaração de inconstitucionalidade, como já versado, pode restringir a eficácia erga omnes da decisão.
No caso específico da ADI 2.501/MG foi o que ocorreu. O STF fundou-se “no fato de que milhares de estudantes frequentaram e frequentam cursos oferecidos pelas instituições superiores mantidos pela iniciativa privada no Estado de Minas Gerais” como excepcional interesse social para modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de norma que considerava estaduais instituições de ensino superior privadas, o que implicou a irregularidade do funcionamento dessas faculdades. Com base nisso, a ponderação realizada pelo STF culminou na declaração de validade dos atos (diplomas, certificados etc.) praticados pelas instituições até a data da decisão proferida na ADI.
De fato, o direito fundamental à educação serviu de parâmetro mitigador da abrangência subjetiva da declaração de inconstitucionalidade. É interessante que, na hipótese, o STF não estipulou prazo prospectivo da nulidade para proporcionar a regularização das instituições de ensino perante o órgão competente (no caso, o Ministério da Educação), de forma a não prejudicar os estudantes que frequentam os cursos dessas instituições na data do julgamento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base no estudo empreendido no presente trabalho, infere-se que, de forma especial, os Ministros do Supremo Tribunal Federal manifestam preocupação com a banalização do instituto da modulação de efeitos previsto no art. 27 da Lei 9.868/1999.
Com efeito, como já externou o Ministro Marco Aurélio[14], a ordinarização do juízo de mitigação da regra geral da nulidade dos atos inconstitucionais pode tornar o efeito ex nunc, antes exceção, como a nova regra geral.
O que se verifica na jurisprudência da Suprema Corte é a preocupação de alguns Ministros em frear esse impulso de excepcionar os efeitos genéricos da declaração de inconstitucionalidade.
Por outro lado, sem dúvida que o grande entusiasta do instituto na Corte Suprema é o Ministro Gilmar Mendes, que, tanto no seu “Curso de Direito Constitucional” quanto nas manifestações no Plenário da Corte, reforça a institucionalização material da modulação de efeitos no direito brasileiro, antes somente previsto no direito estrangeiro, como instrumento concretizador se segurança jurídica e dos direito sociais constitucionais.
De qualquer sorte, a aplicação prática do instituto ora em estudo encontra margem de interpretação subjetiva, especialmente diante dos conceitos jurídicos indeterminados (segurança jurídica e excepcional interesse social) e da ampla possibilidade de limitação material e temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.
O que se extrai do presente estudo é que a grande fonte de aperfeiçoamento do instituto da modulação é a jurisprudência do STF, e a ela os operadores do direito devem voltar a atenção.
Não obstante, é relevante que a comunidade jurídica discorra sobre a sistematização, parametrização e, principalmente, a objetivação dos critérios para incidência da modulação e para a dosimetria da mitigação dos efeitos da nulidade, o que reforçará indubitavelmente o instituto.
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[1] A jurisprudência do STF afasta a aplicação da Súmula 343/STF (“não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei,quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais“), sob o argumento de que ela não se aplica quando a matéria deduzida na ação rescisória envolve discussão de matéria constitucional (AR 1409, Relatora Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 26/03/2009, DJe-089 de 15/5/2009).
[2] Conforme voto condutor do acórdão da ADI 2.797/DF, de lavra do Ministro Ayres Brito.
[3] A exemplo: RE 580.963, Relator Ministro Gilmar Mendes.
[4] Pressupostos da modulação de efeitos, segundo o art. 27 da Lei 9.868/1999.
[5] A propósito: ADI 2.728-ED, Rel. Ministro Marco Aurélio; ADU 2.996-ED, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence; e ADI 1.498-ED, Rel. Ministro Ilmar Galvão.
[6] Trecho retirado do voto condutor do acórdão da ADI 2.797/DF, de lavra do Ministro Ayres Brito.
[7] No mesmo sentido: ADI 3.601-ED, Rel. Ministro Dias Toffoli; e RE 500.171-ED, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski.
[8] RE 497403 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 13/02/2007, DJ 23-03-2007
[9] “A não-recepção de ato estatal pré-constitucional, por não implicar a declaração de sua inconstitucionalidade - mas o reconhecimento de sua pura e simples revogação (RTJ 143/355 - RTJ 145/339) -, descaracteriza um dos pressupostos indispensáveis à utilização da técnica da modulação temporal, que supõe, para incidir, dentre outros elementos, a necessária existência de um juízo de inconstitucionalidade. - Inaplicabilidade, ao caso em exame, da técnica da modulação dos efeitos, por tratar-se de diploma legislativo, que, editado em 1984, não foi recepcionado, no ponto concernente à norma questionada, pelo vigente ordenamento constitucional” (AI 582.280 AgR, Relator Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 12/09/2006, DJ 06/11/2006).
[10] Conforme voto-vista proferido pelo Min. Gilmar Mendes na ADI 3489 (Relator Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 09/05/2007, DJ 03-08-2007)
[11] Trecho do voto do relator: AI 591311 AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 21/11/2006, DJ 16-02-2007 PP-00068 EMENT VOL-02264-19 PP-03994.
[12] RE 580.963, Relator Ministro Gilmar Mendes.
[13] Decisão: O Tribunal, por maioria, negou provimento ao recurso extraordinário e declarou incidenter tantum a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 34 da Lei nº 10.741/03 (Estatuto do idoso), vencidos os Ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que davam provimento ao recurso. Não foi alcançado o quórum de 2/3 para modulação dos efeitos da decisão para que a norma tivesse validade até 31/12/2015. Votaram pela modulação os Ministros Gilmar Mendes, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Celso de Mello. Votaram contra a modulação os Ministros Teori Zavascki, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Joaquim Barbosa (Presidente). O Ministro Marco Aurélio absteve-se de votar quanto à modulação. O Ministro
Teori Zavascki reajustou seu voto proferido na assentada anterior. Plenário, 18.04.2013.
[14] ADI 3.660/MS.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MEZZOMO, Renato Ismael Ferreira. A modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2014, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41868/a-modulacao-dos-efeitos-da-declaracao-de-inconstitucionalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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