RESUMO: O artigo destina-se a desmistificar a inimputabilidade penal indígena e orientar o aplicador do direito a reconhecer e aplicar o direito à diferença na persecução penal.
Palavras-chave: Inimputabilidade penal indígena. Mito. Responsabilidade penal. Direito à diferença.
A nova disciplina constitucional referente aos índios introduziu modificações no regime tutelar do Estatuto do Índio, consoante se depreende da leitura dos arts. 231 e 232 da Constituição: ampliou os direitos dos povos indígenas ao romper com o propósito de lhes impor os valores da nossa sociedade (política integracionista ou de assimilação), assegurando-lhes o direito de manter a sua identidade cultural enquanto povos etnicamente diferenciados, reconhecendo permanentemente sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras que ocupam (paradigma preservacionista). Enfim, a Constituição garantiu aos indígenas o direito de ser índios e de não perder essa sua identidade independentemente do grau de interação dos mesmos com a sociedade envolvente.
A partir do reconhecimento constitucional do respeito à alteridade, à diversidade cultural e, em consequência, a abolição das práticas integracionistas, bem como do reconhecimento da capacidade civil dos índios e de suas comunidades, o que lhes confere o direito ao acesso a todos os direitos e garantias constitucionais de forma autônoma, não há mais que se falar em tutela da pessoa do índio, já que não mais dependem de interposta pessoa para exercerem os seus direitos e administrar os seus bens. Nesse sentido, importante a transcrição de trecho da Convenção nº 169 da OIT, internalizada em nosso ordenamento jurídico pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, a qual deixa expressamente consignada a capacidade civil dos indígenas, ou seja, a faculdade de exercer direitos e contrair obrigações:
Artigo 8º
1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário.
2. Esses povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que for necessário, deverão ser estabelecidos procedimentos para se solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação deste principio.
3. A aplicação dos parágrafos 1 e 2 deste Artigo não deverá impedir que os membros desses povos exerçam os direitos reconhecidos para todos os cidadãos do país e assumam as obrigações correspondentes.
No mais, é a consciência da identidade indígena ou tribal que deve ser considerada como critério fundamental para o reconhecimento estatal da alteridade, competindo aos interessados o direito de escolher o seu próprio processo de desenvolvimento e interação com os demais membros da sociedade.
Artigo 1º da Convenção nº 169 da OIT.
1. A presente convenção aplica-se:
a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;
b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.
2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.
Cabe ao Estado, com a participação das comunidades interessadas, a proteção dessa escolha e da integridade de seus membros, assegurando-lhes o acesso aos direitos e oportunidades que a legislação confere aos não índios.
Artigo 2º da Convenção nº 169 da OIT.
1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade.
2. Essa ação deverá incluir medidas:
a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população;
b) que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições;
c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as diferenças sócio - econômicas que possam existir entre os membros indígenas e os demais membros da comunidade nacional, de maneira compatível com suas aspirações e formas de vida.
Além disso, devemos firmar o entendimento de que os direitos estabelecidos na legislação indigenista brasileira não podem ser contemplados apenas aos índios que vivem em aldeias e que tiveram ou têm pouco ou nenhum contato com a cultura da sociedade não indígena envolvente, devendo ser assegurados também aos índios influenciados pela cultura da sociedade envolvente. Lembremos que não existe cultura estanque e que a incorporação de valores de uma sociedade por outra é corrente na história das civilizações, e isso não importa dizer que o indivíduo é mais ou é menos índio. Diz-se que após a Constituição de 1988, os índios passaram a ter o direito de serem índios e de assim permanecer.
Frente ao que foi exposto, ainda causa perplexidade a equivocada noção de que os índios são inimputáveis, noção essa, muitas vezes difundida pela própria imprensa, a exemplo da notícia abaixo:
Manifestação contra a Copa paralisa o centro de Brasília
O protesto de índios a favor da demarcação de terras que chegou ao Congresso Nacional ganhou a adesão de manifestantes contra a Copa do Mundo e paralisou o centro de Brasília nesta terça-feira. O confronto com a Polícia Militar começou por volta das 17h no Eixo Monumental, nas imediações do Estádio Nacional Mané Garrincha.(...)Logo após um protesto que ocupou a marquise do Congresso, um grupo de 400 indígenas seguiu em direção à rodoviária do Plano Piloto, onde encontrou outro grupo, desta vez formado por pessoas ligadas ao movimento dos sem-teto e manifestantes contra a realização da Copa do Mundo.(...)Cerca de 900 policiais militares foram deslocados para conter o protesto.(...)Segundo a Polícia Militar, um membro da corporação foi ferido na perna por uma flecha disparada por um índio. Ele não foi preso, mas apreendido pelo fato de a legislação considerá-lo inimputável, e vai assinar um termo de compromisso na delegacia[1].
Segundo Rosane Lacerda (2010):
Um dos mitos que povoa o imaginário da sociedade em geral e o senso comum dos profissionais da área jurídica no Brasil é o de que os indígenas seriam penalmente irresponsáveis. Trata-se de um discurso fartamente veiculado nos meios de comunicação social, de modo muito semelhante àquele em que se diz que “neste país ninguém vai para a cadeia”. O mito da irresponsabilidade penal dos indígenas tem funcionado, ao longo do tempo, como um manto que torna invisível o movimento crescente de criminalização dos indígenas e o aumento de sua presença em meio à população carcerária do país (p. 17).
Tal ideia ainda prospera pela desinformação e preconceito que é atirado sobre essa significativa parcela da população brasileira(817.963 indivíduos, segundo o CENSO IBGE/2010).
Até mesmo o Código Penal de 1940, contribuiu para difundir essa informação, já que, em sua exposição de motivos, elencava os índios como portadores de desenvolvimento mental incompleto ou retardado:
no seio da Comissão, foi proposto que se falasse, de modo genérico em perturbação mental;mas a proposta foi rejeitada, argumentando-se em favor da fórmula vencedora, que esta era mais compreensiva, pois com referência especial ao ‘desenvolvimento mental incompleto ou retardado’, e devendo entender-se com tal a própria falta de aquisições éticas (....), dispensava alusão expressa aos surdos-mudos e silvícolas inadaptados(BRASIL, 1940)
Luiz Fernando Villares (2009) arremata:
Atualmente, como herança desse entendimento, ao se depararem com casos envolvendo índios como réus em processos criminais, muitas decisões judiciais e obras doutrinárias procuram na inimputabilidade do deficiente mental a saída para a não-responsabilidade criminal. A inimputabilidade do índio em relação ao Direito Penal é fruto do histórico tratamento como criança e da ausência de possibilidades para que no caso concreto exista a possibilidade de não responsabilidade (p. 298).
Contudo, os números que podem ser obtidos junto ao Sistema de Informações Penitenciárias (INFOPEN) contradizem essa noção de inimputabilidade ao apontar para a existência de 748 índios encarcerados no país no ano de 2010.A tabela abaixo, elaborada por Lacerda (2010, p. 20), nos dá a noção da evolução da população carcerária indígena:
Internos/Ano |
2005 |
2006 |
2007 |
2008 |
2009 |
2010 |
Mulheres indígenas |
15 |
68 |
31 |
36 |
35 |
56 |
Homens indígenas |
264 |
534 |
508 |
475 |
486 |
692 |
Total |
279 |
602 |
539 |
511 |
521 |
748 |
Com efeito, existe norma legal que admite a condenação e encarceramento de indígenas. Trata-se do próprio Estatuto do Índio, a Lei nº 6.001/73 que prevê:
Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola.
Parágrafo único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado.
Assim, deve ser superada essa visão anacrônica de que os índios não podem ser penalmente responsabilizados ou de que são pessoas com desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Nesse sentido, Paschoal (2010):
O desenvolvimento mental do índio, independentemente de seu estágio de integração à sociedade branca, é “completo”. Tanto que ele é plenamente capaz de aprender as artes da caça, da pesca, de educar seus filhos nos termos da cultura de seu povo, bem como de internalizar os rituais referentes às suas crenças religiosas, sem contar as avançadas técnicas de curas das chamadas, de forma grosseira, sociedades primitivas (p. 83).
Desmistifica-se, assim, a inimputabilidade penal indígena. O próprio conceito de inimputabilidade para o caso viola a dignidade da pessoa do índio, ao considerá-lo ser em estágio mais primitivo da evolução e, sob o pretexto de protegê-lo da atuação punitiva estatal, nega-se-lhe, simplesmente, a capacidade para gerir os negócios de sua própria vida e de assumir as consequências advindas de suas escolhas.
Por outro lado, não se lhes pode negar a “indianidade”, como critério para a responsabilização criminal, sob o argumento de que estariam “aculturados” ou “integrados”. Nesse sentido, Silva(2013)aponta a contradição entre a inimputabilidade e a responsabilização penal, a critério da conveniência do operador do Direito:
Esta aparente contradição acaba por elucidar o problema da criminalização indígena no Brasil como sendo uma forma de descaracterização étnica judicial dos indígenas. Esta descaracterização se dá como base em uma discricionariedade dos agentes policiais, delegados e demais operadores do direito que supõem serem os “índios” sujeitos “relativamente capazes” e, portanto, inimputáveis (...). Entretanto, ao serem suspeitos deterem cometido crimes ou presos em flagrante, estes índios são considerados “aculturados” ou “integrados” pelos mesmos de modo a serem tornados “imputáveis”, “culpados” e, finalmente, “apenados” (p. 148).
Assim, uma vez considerados sujeitos passíveis de responsabilização penal e, estando inseridos em uma sociedade pluriétnica e respeitadora do direito à diferença, quando o índio figurar como investigado em inquérito policial ou como réu em ação penal, compete ao Estado-juizaplicar o regramento penal e processual penal tendo como norte hermenêutico as diretrizes protetivas e preservacionistas do art. 231 da CF/88 e da Convenção nº 169 daOrganização Internacional do Trabalho(OIT), destacando-se, como nos ensina Paschoal (2010) que a eventual inculpabilidade do índio não deve residir em uma suposição de inimputabilidade:
Eventual inculpabilidade do índio, em um determinado caso concreto, deve residir na verificação, também concreta, da internalização dos valores tutelados pela norma penal supostamente desrespeitada e, mais, na verificação da intenção deliberada de ferir o valor protegido pela norma (p. 84).
Assim, no âmbito da atuação punitiva estatal, seja em fase de inquérito ou em fase de ação penal, devem ser consideradas as peculiaridades culturais expressas na organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e relações com a terra que tradicionalmente ocupam, quando da análise dos elementos configuradores da figura penal (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade), de modo a permitir a aplicação de um sistema penal compatível com os preceitos hermenêuticos que regem a temática indígena.
A fortalecer esse entendimento, a Convenção nº 169 da OIT prevê expressamente:
Artigo 9º
1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros.
2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.
Artigo 10
1. Quando sanções penais sejam impostas pela legislação geral a membros dos povos mencionados, deverão ser levadas em conta as suas características econômicas, sociais e culturais.
2. Dever-se-á dar preferência a tipos de punição outros que o ncarceramento.
Com efeito, a própria norma de direitos humanos, aplicável aos povos indígenas e tribais, prevê a possibilidade de aplicação de sanção penal aos indígenas, ainda que oriente a relativização de seus efeitos em razão de suas características econômicas, sociais e culturais, o que, de forma alguma, veda a atuação do jus puniendi estatal e o próprio encarceramento dos indígenas.
Assim, uma vez assentada a possibilidade de responsabilização penal dos índios por seus próprios atos, cumpre a todos os operadores do direito, partícipes do processo referente ao direito de punir estatal, reconhecer o direito à diferença e concretizá-lo em todas as fases do processo penal, tendo como norte a Constituição Federal e as normas de direitos humanos sobre os povos indígenas.
REFERÊNCIAS
LACERDA, Rosane. Responsabilidade penal e situação carcerária indígena no Brasil: Uma realidade a ser desvelada. Relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil. CIMI. 2010.
PACHOAL, Janaína Conceição. O índio, a inimputabilidade e o preconceito. In: VILLARES, Luiz Fernando (Coord.). Direito Penal e Povos Indígenas. 1. Ed. Curitiba: Juruá, 2010.
SILVA, Cristhian Teofiloda. O índio, o pardo e o invisível: Primeiras impressões sobre a criminalização e o aprisionamento de indígenas no Brasil. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia. Niterói, 2013.
VILLARES, Luiz Fernando. Direito e Povos Indígenas. 1 ed. Curitiba: Juruá, 2009.
[1] Extraído de http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/manifestacao-contra-a-copa-paralisa-o-centro-de-brasilia,ecf7b5de97f36410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html
Procurador Federal e Coordenador de Assuntos Contenciosos da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Ex-Procurador do Estado da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Lívio Coêlho. Responsabilidade penal do índio e direito à diferença Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41879/responsabilidade-penal-do-indio-e-direito-a-diferenca. Acesso em: 23 dez 2024.
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