RESUMO: A Constituição Federal e as normas de direitos humanos que se referem aos índios destina-lhes tratamento específico sobre o prisma da diferença. Isso traz reflexos inegáveis para a persecução penal em que figure como réu o indígena.
Palavras-chave: Direito Penal e Processo Penal. Direito à diferença. Reflexos. Laudo antropológico. Pena e cumprimento de pena.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 elenca como fundamento do Estado Brasileiro o pluralismo político, o qual não se resume a preferências políticas e ideológicas, mas expressa o direito fundamental à diferença a ser protagonizado em todas as esferas da convivência humana: política, ideológica, social, cultural, econômica, religiosa, entre outras.
Para Mendes (2008, p. 156), falar em pluralismo político significa dizer que, respeitados os limites impostos pela Carta Magna, “o indivíduo é livre para se autodeterminar e levar a sua vida como bem lhe aprouver, imune a intromissões de terceiros”, sejam elas do Estado ou de particulares.
Ao dedicar capítulo inteiro à temática indígena a Constituição deixa clara a opção pelo respeito à alteridade ao apontar expressamente, em seu artigo 231, que aos índios se reconhece sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Para Barreto (2011, p. 104), “desde então as relações dos índios, suas comunidades e organizações com a comunidade nacional passaram a se dar no plano da horizontalidade, e não mais no plano da verticalidade”.
A nova disciplina constitucional referente aos índios introduziu modificações no regime tutelar do Estatuto do Índio, consoante se depreende da leitura dos arts. 231 e 232 da Constituição, assegurando-lhes o direito de manter a sua identidade cultural enquanto povos etnicamente diferenciados, reconhecendo permanentemente sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras que ocupam, enfim, reconheceu-lhes a capacidade civil plena, ou seja, o direito a que exerçam todos os atos de gestão decorrentes da vida civil e assumam as obrigações deles decorrentes.
O tratamento constitucional aos indígenas, aliado às normas de direitos humanos e normas infraconstitucionais sobre o tema, traz inegáveis reflexos para o direito penal e processo penal em que figure como réu o indígena, o que passaremos a demonstrar.
O LAUDO ANTROPOLÓGICO COMO INSTRUMENTO DE DEFESA DO ÍNDIO
As considerações acima lançadas trazem a necessidade de se estabelecer o instrumento técnico adequado para a aferição das particularidades culturais e sua influência sobre o cometimento do ilícito. Firmamos, desse modo, a convicção da imprescindibilidade da produção do laudo antropológico em todos os processos em que figurem índios como réus.
A perícia antropológica estudará a história de vida do indígena, seu local de origem, a organização social a qual pertence, as relações de parentesco, o domínio da língua mãe e a da sociedade envolvente, o contexto do crime na sociedade a qual pertence, a reprovabilidade do crime na sociedade a qual pertence, o nível de interação com a sociedade externa, a compreensão acerca do caráter ilícito da conduta que lhe é imputada e a capacidade de se autodeterminar de acordo com esse entendimento. Enfim, a perícia permite ao julgador compreender por quais valores o indígena se pauta preponderantemente, como ele internaliza o valor do bem tutelado pelo direito penal e por ele violado, e como ele se autodetermina diante dessa compreensão. Para Paschoal (2010):
Eventual inculpabilidade do índio, em um determinado caso concreto, deve residir na verificação, também concreta, da internalização dos valores tutelados pela norma penal supostamente desrespeitada e, mais, na verificação da intenção deliberada de ferir o valor protegido pela norma.
O laudo antropológico, quando solicitado pelo magistrado, não deverá avaliar o desenvolvimento mental do índio. E sim as diferenças culturais envolvidas e, em que medida, ao violar um valor dos “brancos”, o índio não estaria até resguardando os valores cultivados por seu povo.(p. 84)
Lembramosque a realização da perícia não só é fundamental para a fixação da pena do indígena (art. 59 do Código Penal combinado com ocaput art. 56 do Estatuto do Índio), como também é a viabilização prática do direito à alteridade, motivo pelo qual a ausência da realização de perícia antropológica em procedimento penal viola o devido processo legal e seus consectários, a ampla defesa e o contraditório. É instrumento para a realização da justiça no caso concreto.
Infelizmente, oportuno ressaltar, parte da jurisprudência entende ser desnecessária a sua produção, quando o arcabouço probatório autorize o magistrado a dispensá-lo diante da aparente “integração do indígena”:
EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES, ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO E PORTE ILEGAL DE ARMA PRATICADOS POR ÍNDIO. LAUDO ANTROPOLÓGICO. DESNECESSIDADE. ATENUAÇÃO DA PENA E REGIME DE SEMILIBERDADE. 1. Índio condenado pelos crimes de tráfico de entorpecentes, associação para o tráfico e porte ilegal de arma de fogo. É dispensável o exame antropológico destinado a aferir o grau de integração do paciente na sociedade se o Juiz afirma sua imputabilidade plena com fundamento na avaliação do grau de escolaridade, da fluência na língua portuguesa e do nível de liderança exercida na quadrilha, entre outros elementos de convicção. Precedente. 2. Atenuação da pena (artigo 56 do Estatuto do Índio). Pretensão atendida na sentença. Prejudicialidade. 3. Regime de semiliberdade previsto no parágrafo único do artigo 56 da Lei n. 6.001/73. Direito conferido pela simples condição de se tratar de indígena. Ordem concedida, em parte.(HC 85198, Relator(a): Min. EROS GRAU, Primeira Turma, julgado em 17/11/2005, DJ 09-12-2005 PP-00016 EMENT VOL-02217-02 PP-00368 RTJ VOL-00203-03 PP-01088 RJP v. 2, n. 8, 2006, p. 162 LEXSTF v. 28, n. 327, 2006, p. 334-339).
"HABEAS CORPUS. ESTUPRO. MENORES INDÍGENAS. AUSÊNCIA DE LAUDO ANTROPOLÓGICO E SOCIAL. DÚVIDAS QUANTO AO NÍVEL DE INTEGRAÇÃO.NULIDADE.Somente é dispensável o laudo de exame antropológico e social para aferir a imputabilidade dos indígenas quando há nos autos provas inequívocas de sua integração à sociedade.No caso, há indícios de que os menores indígenas, ora pacientes, não estão totalmente integrados à sociedade, sendo indispensável a realização dos exames periciais.É necessária a realização do estudo psicossocial para se aferir qual a medida sócio-educativa mais adequada para cada um dos pacientes." Ordem concedida para anular a decisão que determinou a internação dos menores sem a realização do exame antropológico e psicossocial.(HC 40.884/PR, Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 07/04/2005, DJ 09/05/2005, p. 445).
Direito Penal e Processual Penal. "Habeas Corpus". Crime praticado por indígena. Competência. Súmula 140 do STJ. Ausência de exame antropológico e de idade. Cerceamento de defesa. Aculturação.Instrumento deficiente.A competência para o processamento e o julgamento das infrações penais em que figure índio como autor ou vítima, não havendo disputa de interesses da comunidade indígena, é da Justiça Estadual. Súmula 140 do STJ.É incabível o conhecimento da alegação de cerceamento de defesa, na via do "habeas corpus", quando se considera admissível a dispensa do laudo antropológico a fim de aferir a imputabilidade penal do índio, em face das provas de aculturação, não se formando o instrumento do "writ" com as peças motivadoras do convencimento da autoridade apontada coatora.Ordem denegada.(HC 25.003/MA, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 09/09/2003, DJ 01/12/2003, p. 406).
A crítica que se faz a tais decisões é o fato de levarem em conta o grau de integração do indígena com a sociedade, paradigma esse superado com a Constituição Federal da 1988. Villares (2009) tece contundente crítica a essas decisões:
Chega-se a adotar uma presunção de responsabilidade ao índio que fala o idioma nacional ou possui diploma escolar. A presunção geral e não a análise do caso concreto priva o Direito Penal de ser instrumento de justiça e reafirma sua opressão aos menos favorecidos. Julgar o índio através de uma presunção, sem analisar com profundidade o contexto social em que está inserido e seus valores culturais, é atingir o respeito ao diferente e violar o art. 231 da Constituição, ferindo mortalmente os direitos fundamentais dos índios e o próprio Estado Democrático de Direito (p. 303).
O que o laudo busca é o nível de interação com a sociedade envolvente e os reflexos dessa interação para a compreensão dos valores tutelados pela norma penal. Reforço que tal juízo de valor é importante para a aplicação do disposto no caput do art. 56 do Estatuto do Índio. É esse estudo de natureza técnica que irá subsidiar o livre convencimento do juiz para firmar a sua convicção sobre a real compreensão e modo de vida do indígena e, assim, julgá-lo segundo os preceitos do devido processo legal.
Sobre o momento de sua produção, nada obsta, e até recomenda-se, que o laudo antropológico seja realizado em sede de inquérito policial, a fim de influenciara conduta da autoridade policial e do órgão acusador, que pode até mesmo deixar de ofertar a denúncia. No mais, o momento propício para requerer a sua produção, já com a ação penal em curso, é o da resposta à acusação ou defesa preliminar, sem prejuízo de ser requerida em outro momento, acaso não tenha sido produzida e os elementos do processo apontem essa necessidade.
ERRO CULTURALMENTE CONDICIONADO E INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA
Não se aplicando aos índios a inimputabilidade do art. 26 do Código Penal, por absoluta negação de sua identidade cultural, entendemos que a infração penal cometida pode ser analisada a luz da figura do “erro”.
Embora o desconhecimento da lei não possa servir de fundamento para a sua inobservância, a ausência de interiorização do dado axiológico presente na norma penal ea inexistência de vontade de maculá-lo devem ser vetores a serem verificados no caso concreto.
Assim, quando o agente desconhece ou está impossibilitado de conhecer a antijuridicidade de sua conduta, está-se diante do erro de proibição (sobre a ilicitude do fato), a ser verificada quando da aferição da culpabilidade. Se inevitável, isenta de pena; se evitável, a reduz, nos termos do art. 21 do Código Penal:
Art. 21 - O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Parágrafo único - Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Para Zaffaroni (2006), no contexto indígena, a incompreensão da norma e a não internalização de seu valor se dão em razão do condicionamento cultural do agente, porque os valores protegidos pelas normas penais lhe são desconhecidos ou incompatíveis com aqueles inerentes a sua própria cultura, o que se convencionou chamar de erro de proibição culturalmente condicionado.
Muito embora exista delito que o silvícola pode entender perfeitamente, existem outros cuja ilicitude ele não pode entender, e, em tal caso, não existe outra solução que não a de respeitar a sua cultura no seu meio, e não interferir mediante pretensões de tipo etnocentrista, que escondem, ou exibem, a pretendida superioridade da nossa civilização industrial, para destruir todas as relações culturais a ela alheias (p. 554-555).
Sobre o tema, valiosa a síntese de Villares (2009):
O direito Penal latino-americano e sua doutrina têm enorme preocupação com a figura do erro. Calderón trata do erro culturalmente condicionado, que se aplica à não-compreensão do índio sobre a ilicitude das suas ações em relação ao sistema de punição da sociedade não índia. O erro culturalmente condicionado, segundo o mesmo autor, tem como um de seus principais defensores Eugenio Raul Zaffaroni, que identifica três formas: erro de compreensão, um caso de consciência dissidente e justificação putativa.
O erro de compreensão se apresentaria quando a uma pessoa de outra cultura é impossível entender e aceitar uma norma proibitiva ou imperativa de uma conduta que estabelece como ilegítima uma ação ou omissão, que para ela é culturalmente aceita. Existe uma dificuldade inata para a compreensão da proibição normativa. A pessoa conhece a norma, mas razões culturais impedem que ela aja de forma diferente. A consciência dissidente indica que o indivíduo tem conhecimento da proibição e da ausência de permissão legal, mas a ele não se pode exigir a sua interiorização. Por fim, o erro como justificativa putativa, nos casos em que um povo indígena vê o não índio como inimigo, o que justifica atitudes contrárias ao direito que antecipam a ação inimiga (p. 301).
Destaque-se que alguns autores criticam essa teoria, aduzindo que, em verdade, não se trata de erro. Nesses casos, o indígena agesem consciência do caráter delituoso de sua conduta ou ainda que possa ter potencial consciência, não pode se comportar de outra maneira, em razão dos valores culturais de seu povo, os quais são por ele internalizados,ou seja, age segundo a sua consciência de que se trata de uma prática lícita, porque para ele, para os seus valores e os de sua comunidade, não está configurada a prática de nenhum delito, mas o exercício regular de um direito. Nesse sentido, Rezende (2009) aposta na figura da inexigibilidade de conduta diversa:
Para que se possa, então, afirmar esta excludente é importante que se avalie se a conduta do indígena estava de acordo com os valores próprios de seu povo. Se sim, considerando que estes valores, apesar de conflitantes com os valores da norma que incrimina a conduta, são respeitados e protegidos, estará o indígena acolhido pela inexigibilidade da conduta diversa. Se não, não há se falar nessa excludente (p. 110).
O adultério, o aborto, a prática de duelo, o uso de determinadas substâncias entorpecentes, a forma de lidar com os cadáveres, a extração de minerais, de madeira, a caça, a pesca e inúmeras outras condutas que possam ser reprimidas pela legislação penal, podem ou não se conformar aos valores de determinados povos. A conformidade da conduta com os valores do povo a que pertence o agente indígena será o fator determinante para a incidência ou não da excludente da culpabilidade em comento (p. 111).
Paschoal (2010) nos brinda com mais um exemplo:
Há relatos de que, em algumas tribos, são comuns e até incentivadas as relações sexuais de adultos com as adolescentes. Tratando-se de verdadeiro ritual de iniciação na vida adulta (CALDERÓN, 2001, p. 130).
A legislação ordinária (branca) prevê como estupro a relação sexual consentida com uma menor de 14 (quatorze) anos.
Tratando-se de um índio não integrado à cultura branca, seria razoável que, ao julgar, o juiz pesquisasse, não se o índio é capaz, ou incapaz (pois ele é capaz no seu contexto cultural), mas se o ato praticado violou os valores inerentes ao seu povo e à suposta vítima.
Dessa forma, vindo o juiz a absolver o réu indígena, não o fará em decorrência de sua inimputabilidade (desenvolvimento mental incompleto), mas em razão de não ter agido com o intuito de ferir um valor caro, melhor dizendo, em virtude de ter agido de acordo com os valores que informam a sua comunidade (p. 85).
A verificação do erro de proibição culturalmente condicionado no caso concreto, ou a inexigibilidade de conduta diversa, aponta a necessidade de que o julgador instrua o processo com o laudo resultante da perícia antropológica, reforçando o argumento anteriormente lançado sobre a imprescindibilidade de sua realização.
PENA, FORMA DE CUMPRIMENTO E FORO ÉTNICO
A pena é a reação estatal contra o violador da norma penal. Possui finalidade retributiva, preventiva e ressocializadora. Um de seus princípios é o da humanidade, ou seja, a pena não pode violar a integridade física e moral do condenado, o que ganha maior contexto quando o apenado é indígena.
Assim, o legislador previu normas que conferem tratamento diferenciado ao indígena apenado, a começar pela dosimetria da pena, a qual deve ser atenuada em atenção “ao grau de integração do silvícola”(caput do art.56 do Estatuto do índio). Embora esse conceito – grau de integração – esteja superado, deverá o juiz atenuar a pena em razão da simples condição de indígena e do nível de internalização dos valores da sociedade que o cerca, o que reforça, mais uma vez, o papel do laudo antropológico.
Quanto ao regime de cumprimento da pena, determina o parágrafo único do mesmo art. 56 que “as penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado”.Trata-se de verdadeiro direito público subjetivo que preserva e confere eficácia ao direito à diferença, garante a sobrevivência física e cultural dos índios e evita a perda da identidade étnica e cultural, corroborando o princípio da humanização da pena.
EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES, ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO E PORTE ILEGAL DE ARMA PRATICADOS POR ÍNDIO. LAUDO ANTROPOLÓGICO. DESNECESSIDADE. ATENUAÇÃO DA PENA E REGIME DE SEMILIBERDADE. 1. Índio condenado pelos crimes de tráfico de entorpecentes, associação para o tráfico e porte ilegal de arma de fogo. É dispensável o exame antropológico destinado a aferir o grau de integração do paciente na sociedade se o Juiz afirma sua imputabilidade plena com fundamento na avaliação do grau de escolaridade, da fluência na língua portuguesa e do nível de liderança exercida na quadrilha, entre outros elementos de convicção. Precedente. 2. Atenuação da pena (artigo 56 do Estatuto do Índio). Pretensão atendida na sentença. Prejudicialidade. 3. Regime de semiliberdade previsto no parágrafo único do artigo 56 da Lei n. 6.001/73. Direito conferido pela simples condição de se tratar de indígena. Ordem concedida, em parte.(HC 85198, Relator(a): Min. EROS GRAU, Primeira Turma, julgado em 17/11/2005, DJ 09-12-2005 PP-00016 EMENT VOL-02217-02 PP-00368 RTJ VOL-00203-03 PP-01088 RJP v. 2, n. 8, 2006, p. 162 LEXSTF v. 28, n. 327, 2006, p. 334-339)
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO.
PACIENTE INDÍGENA. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL NÃO DEMONSTRADA ANTE A AUSÊNCIA DE SUBSTRATO FÁTICO QUE AMPARE A ALEGAÇÃO. PRISÃO PREVENTIVA SATISFATORIAMENTE FUNDAMENTADA NO REQUISITO DA APLICAÇÃO DA LEI PENAL, POIS O ACUSADO SE ENCONTRA FORAGIDO DESDE A PRÁTICA DO DELITO. POSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DA CUSTÓDIA CAUTELAR EM ÓRGÃO FEDERAL DE ASSISTÊNCIA AO ÍNDIO, EX VI DO DISPOSTO NO ART. 56, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI 6.001/973.
1. A base empírica embasadora da denúncia não evidencia, de plano, a existência declarada de disputa sobre direitos ou terras indígenas como fonte motriz do crime ora apurado, razão pela qual não se pode, nesse momento, a competência da justiça estadual.
2. A fuga do réu do distrito da culpa, é causa suficiente, por si só, para justificar a decretação da prisão preventiva como forma de garantia do cumprimento da lei penal.
3. A tese de nulidade da citação editalícia do réu não merece sequer ser conhecida, pois a presente alegação não foi suscitada pela defesa, na impetração originária. Assim, resta, na hipótese, impossibilitado o exame dareferida tese pelo Superior Tribunal de Justiça, sob pena de se incorrer em vedada supressão de instância.
4. Sendo assegurado aos silvícolas o benefício de cumprimento de penas privativas de liberdade em órgão de assistência ao índio, tem-se como plenamente plausível a concessão de tal benefício ao paciente para que cumpra a prisão provisória no referido estabelecimento.
5. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa parte, concedido tão-somente para assegurar ao paciente, índio pataxó, que permaneça durante o período da prisão preventiva, recolhido junto à órgão federal de assistência ao índio mais próximo de sua aldeia ou residência.
(HC 55.792/BA, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 29/06/2006, DJ 21/08/2006, p. 267)
Já no que tange ao chamado foro étnico, permite o Estatuto do Índio (art. 57) que se tolere a aplicação de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte. Tal norma é referendada pelo disposto na Convenção nº 169 da OIT:
Artigo 9º
1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros.
2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.
Artigo 10
1. Quando sanções penais sejam impostas pela legislação geral a membros dos povos mencionados, deverão ser levadas em conta as suas características econômicas, sociais e culturais.
2. Dever-se-á dar preferência a tipos de punição outros que o ncarceramento.
Em artigo intitulado “Foro Étnico”, Cavalcanti (2014) traz à lume dois casos interessantes de sua aplicação e conclui:
No primeiro, o indígena de prenome Basílio foi absolvido foi absolvido pelo Conselho de Sentença do Tribunal do Júri Popular da Justiça Federal em Roraima, presidido pelo juiz federal Helder Girão Barreto, sob a tese de causa supralegal de culpabilidade, hipótese na qual haveria um bis in idem, ou seja uma dupla punição para o mesmo fato. (...)Já o segundo e recente caso, sentenciado neste ano de 2014, enveredou por uma justificativa diferente, a da subsidiariedade do jus puniendi estatal, o qual ocorrerá somente na ausência do julgamento tribal.
(...)
Assevere-se que a observância do foro étnico não fragiliza o Estado, ao contrário, reforça o fundamento pluralista, os direitos humanos elencados na Constituição Federal, o princípio da celeridade, na medida em que é desnecessário processar e julgar os autores de tais delitos, bem como coloca o Estado Brasileiro no papel de vanguarda quanto ao respeito às premissas elencadas na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Por fim, e o mais importante: preserva e confere eficácia ao direito à diferença, garante a sobrevivência física e cultural dos índios, evita a perda da identidade étnica e cultural, reafirmando o princípio da humanização da pena.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O texto objetivaa sensibilização dos operadores do direito para a persecução penal envolvendo indígenas, de modo a que se internalize o conceito de alteridade e pluralismo como ponto de partida para o respeito e consagração dos direitos indígenas, uma vez que os índios serão índios onde quer que se encontrem e independente do seu grau de interação com a sociedade envolvente.
Assim, uma vez conhecedor dos normativos que regem a questão, cujo principal vetor hermenêutico é a Constituição Federal e as normas de direitos humanos sobre os povos indígenas, deve-se pugnar pela observância desses preceitos na persecução penal estatal, demonstrando a imprescindibilidade de produção de perícia antropológica como instrumento para a compreensão do comportamento do indígena ante a conduta que lhe foi imputada e para a fiel observância da ampla defesa e contraditório, afinal, em processos envolvendo índios, o laudo se afigura como verdadeiro instrumento de justiça.
Por fim, uma vez condenado o indígena, devem ser aplicadas as normas que o favoreça, por se tratar de direito subjetivo irrenunciável e que visa evitar a perda da identidade étnica e cultural.
REFERÊNCIAS
BARRETO, Helder Girão. Direitos Indígenas: vetores constitucionais. 1 ed. 6 reimp. Curitiba: Juruá, 2011.
CAVALCANTI, Lívio Coêlho. Foro étnico. ConteudoJuridico, Brasilia-DF: 08 jul. 2014. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.48956>. Acesso em: 16 nov. 2014.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
PASCHOAL, Janaína Conceição. O índio, a inimputabilidade e o preconceito. In: VILLARES, Luiz Fernando (Coord.). Direito Penal e Povos Indígenas. 1. Ed. Curitiba: Juruá, 2010.
REZENDE, Guilherme Madi. Índio: Tratamento Jurídico-Penal. Curitiba: Juruá, 2009.
VILLARES, Luiz Fernando. Direito e Povos Indígenas. 1 ed. Curitiba: Juruá, 2009.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 6ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, v.1.
Procurador Federal e Coordenador de Assuntos Contenciosos da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Ex-Procurador do Estado da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Lívio Coêlho. Defesa criminal dos indígenas: reflexos do respeito à diferença Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 nov 2014, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41901/defesa-criminal-dos-indigenas-reflexos-do-respeito-a-diferenca. Acesso em: 23 dez 2024.
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