RESUMO: O presente artigo objetiva analisar o poder normativo atribuído à Justiça do Trabalho pelo ordenamento jurídico brasileiro, contextualizando com a problemática da possível ofensa à separação dos poderes.
SUMÁRIO: 1 - PODER NORMATIVO. 2 - ASPECTOS SOCIAIS. 3 – SENTENÇA NORMATIVA. 4 - A PROBLEMÁTICA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. 5 -CONCLUSÃO.
1. PODER NORMATIVO
Segundo Amauri Mascaro Nascimento, “poder normativo, no sentido amplo, é a faculdade conferida por lei a órgãos não integrantes do Legislativo, para que possam estabelecer normas. Convenção coletiva é norma. Sentença normativa, também” [1].
Portanto, conforme elucida o supracitado autor, existe não só o poder normativo da Justiça do Trabalho (judicial), mas também os dos grupos sociais (extrajudicial). Na forma judicial, o poder normativo se expressa por meio da sentença normativa, prolatada pelos Tribunais trabalhistas nos dissídios coletivos. Já no modo extrajudicial, o comando normativo é resultado das negociações das partes, ou pela intervenção do árbitro nomeado para solucionar o litígio.
Qualquer que seja a forma, verifica-se um processo de elaboração normativa, criando normas e condições de trabalho que serão cogentes para todo o grupo. Nesse contexto, observa-se que o Estado não é a única fonte formal do direito, expressando a manifestação do pluralismo jurídico. [2]
2. ASPECTOS SOCIAIS
Um ponto de enfoque do poder normativo da Justiça do Trabalho que se apresenta demasiadamente importante é a função social. Há uma atuação no sentido de equilibrar a relação laboral, uma vez que, com os altos índices de desemprego observados atualmente, o empregado receia litigar com o empregador diante da possibilidade de ser demitido.
O jurista Ives Gandra [3] fez alusão acerca das vantagens e desvantagens dessa prerrogativa da Justiça laboral, vejamos:
“Vantagens:
· ausência de um sindicalismo forte no Brasil: para este autor, em decorrência dessa fragilidade, o poder de negociação se enfraquece, diminuem-se as greves e vantagens que se poderiam obter através de um acordo com o empresariado;
· necessidade social de superar o impasse na ausência de autocomposição: quando as partes não entram em acordo pode surgir a greve e o "lockout", de consequências danosas para a sociedade. O interesse público impõe a intervenção estatal para solucionar e compor o litígio.
Desvantagens:
· enfraquecimento da liberdade negocial: como há um Tribunal com poder para impor normas e condições de trabalho nos conflitos coletivos, diante de qualquer dificuldade na negociação direta as partes recorrem ao Tribunal, sem se esforçarem na autocomposição do conflito;
· desconhecimento real das condições do setor: o aparelho estatal trabalhista, não obstante a representação classista, não dispõe de meios técnicos que possibilitem os magistrados resolverem, satisfatoriamente, os dissídios coletivos que lhes são apresentados;
· demora nas decisões: por existir esta via judicial de composição de conflitos coletivos, as partes se vêm estimuladas a usá-la e, com isto, os Tribunais se encontram abarrotados com dissídios coletivos, que acabam por ser julgados após a data-base da categoria. Havendo revisão, a demora se prolonga, o que se incompatibiliza com o dinamismo das relações trabalhistas;
· generalização das condições trabalhistas: a Justiça do Trabalho cria e aplica a todas as categorias precedentes genéricos que abrangem toda classe obreira, ao invés de normas específicas relativas às condições especiais de trabalho em determinado segmento econômico. Isto se deve ao fato de haver um desconhecimento técnico do setor e à pressão do elevado número de processos a julgar;
· incompatibilidade com a democracia pluralista e representativa: uma vez que estamos em uma democracia, o modelo corporativista de intervenção estatal na solução dos conflitos coletivos atenta contra a liberdade negocial, impondo solução e impedindo o desenvolvimento de uma atividade sindical verdadeira e livre;
· maior índice de descumprimento da norma coletiva: sendo a norma imposta, muitas vezes, distante da realidade econômica e capacidade financeira das partes, ela gera o seu descumprimento, levando ao maior índice de dissídios individuais para cumpri-la.”
Entendo que o poder normativo não enfraquece a liberdade de negociação, nem tampouco a democracia pluralista e representativa. Pelo contrário. A liberdade de negociação é uma faculdade das partes envolvidas. Caso reste frustrada a negociação, as partes poderão propor o dissídio coletivo a fim de alcançar a justa composição da lide. [4]
Portanto, a garantia da resolução do conflito pela esfera judicial, favorece, de certa forma, a autocomposição, uma vez que a parte mais forte do litígio, os grupos econômicos, viabilizará o acordo coletivo. Sem o poder normativo haveria “imposição coletiva”, ou seja, os empregadores ditariam as regras do “jogo”.
3. SENTENÇA NORMATIVA
O pronunciamento jurisdicional nos dissídios coletivos denomina-se sentença normativa. Esta, em caso de insatisfação por quaisquer das partes, desafia o recurso ordinário, que será analisado pelo Tribunal Superior do Trabalho.
Em virtude do comando normativo não possuir cunho condenatório, não há execução de sentença normativa. A parte interessada, em caso de desobediência, poderá intentar ação de cumprimento.
Os efeitos das sentenças normativas alcançam não só as partes envolvidas no litígio, mas todos os que fazem parte da categoria envolvida, bem como os que passem a integrá-la, em virtude de sua eficácia ultra partes.
Questão importante a ser tratada é quanto à possibilidade da coisa julgada nos dissídios coletivos. Há diversidades de entendimentos, vamos observá-las.
Parte da doutrina considera que a sentença normativa, sem a propositura de recurso, só produz coisa julgada formal, uma vez que há possibilidade de cumprimento do comando normativo antes do trânsito em julgado. Ademais, tem-se que a sentença normativa não é passível de execução, necessitando de instauração de ação própria (ação de cumprimento) para a sua efetividade.
Outro argumento utilizado baseia-se na vigência temporária do comando normativo, confirmado no enunciado n. ° 277, do Tribunal Superior do Trabalho que dispõe, in verbis:
“as cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho.”
Outros doutrinadores defendem a possibilidade da coisa julgada, tanto formal quanto a material, à medida que há proibição expressa de nova apreciação, na ação de cumprimento, da matéria de fato e de direito, disposta no artigo 872 da Consolidação das Leis do Trabalho, in verbis:
“ Art. 872 - Celebrado o acordo, ou transitada em julgado a decisão, seguir-se-á o seu cumprimento, sob as penas estabelecidas neste Título.
Parágrafo único - Quando os empregadores deixarem de satisfazer o pagamento de salários, na conformidade da decisão proferida, poderão os empregados ou seus sindicatos, independentes de outorga de poderes de seus associados, juntando certidão de tal decisão, apresentar reclamação à Junta ou Juízo competente, observado o processo previsto no Capítulo II deste Título, sendo vedado, porém, questionar sobre a matéria de fato e de direito já apreciada na decisão.”(grifo nosso)
Indo de encontro às posturas acima expostas, juristas opinam no sentido de existir coisa julgada formal e material, uma vez que estabelece o artigo 2°, I, c, da Lei n. ° 7.701 de 1988, ipsis litteris:
“Art. 2º - Compete à seção especializada em dissídios coletivos, ou seção normativa:
I - originariamente:
(...)
c) julgar as ações rescisórias propostas contra suas sentenças normativas;”
4. A PROBLEMÁTICA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
Há uma discussão doutrinária acerca de o poder normativo desrespeitar a separação de poderes (separação de funções com mais propriedade, uma vez que o poder Estatal é uno), idealizada por Montesquieu[5], em seu livro “Do Espírito das Leis”, e tão recepcionado pela Constituição Federal, em seu artigo 2°, in verbis:
“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”
Defendem os teóricos defensores da extinção do poder normativo que é defeso ao Poder Judiciário exercer atividade legislativa, em virtude do princípio da separação dos poderes, pois os juízes, não sendo eleitos pelo povo, não possuem legitimidade para elaborar um comando normativo.
Entendo que a separação de funções não é, e não pode ser absoluta. Os parlamentares exercem a função judicante ao instituírem as CPI’s (Comissões Parlamentares de Inquérito), julgando a cassação de mandatos, etc. Por sua vez o Poder Executivo tem legitimidade para instituir medidas provisórias (comandos legais). Por que não permitir que o Poder Judiciário, órgão responsável pelo serviço jurisdicional (juris dictio = dizer o direito), incumbido de fazer justiça ao caso concreto, elabore uma norma reguladora de uma determinada relação coletiva de trabalho, aplicando a equidade e o equilíbrio contratual.
Ademais, defendemos o poder normativo da Justiça do Trabalho sob o argumento de que, ao exercê-lo, trata-se, não de um exercício legislativo, mas sim de aplicação de uma norma pré-estabelecida, a saber, o §2° do artigo 114 da Constituição. Como bem exemplifica Hans Kelsen[6], há a “moldura” e a “tela” a ser pintada pelo operador jurídico, mas sem ultrapassar os ditames legais (moldura). Isto é, respeitando-se “as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”, poderá o magistrado, fazendo uso da equidade, analogia, costumes e dos princípios gerais do direito, preencher “a moldura”, elaborando uma sentença normativa que regulará o caso concreto.
Desse modo, como todo e qualquer direito, o poder normativo tem seus limites, bastando aos Tribunais do Trabalho observá-los no momento de compor os dissídios coletivos.
5. CONCLUSÃO
Da análise do tema, podemos inferir que o poder normativo da Justiça do Trabalho constitui importante meio de proteção da classe operária, na medida em que permite a prerrogativa de empreender novos comandos normativos a fim de possibilitar melhores condições de trabalho, assim como revisar as normas coletivas então vigorantes.
Ademais, no panorama social em que vivemos, onde se observa a fragilidade da classe operária, que tem seus postos de trabalho gradativamente substituídos pelas máquinas, com o aumento dos índices de desemprego, há exacerbação do poder de negociação dos empregadores (que visam à majoração dos lucros e contenção de despesas); verifica-se, portanto, que, com o exercício do poder normativo, há a preservação do equilíbrio contratual, evitando, assim o massacre dos obreiros pelos grupos econômicos.
No que atine ao poder normativo não estatal, expressado na composição dos conflitos pelas convenções, acordos coletivos e na arbitragem, observa-se a sua relevância no sentido de proporcionar às partes a oportunidade de resolução amigável, discutindo propostas, até chegar a um acordo que satisfaça ambos os litigantes.
Entretanto, no Brasil, tal forma de aplicação do poder normativo mostra-se ainda incipiente, em razão da fragilidade dos sindicatos e do atual panorama social, que colocam em desvantagem os trabalhadores que temem o desemprego. Dessa forma, no momento da negociação, o receio da demissão, com a consequente submissão a piores condições de trabalho, sobrepõe-se às reivindicações.
Quanto à separação de poderes (funções), verifica-se que não há ofensa a tal instituto previsto constitucionalmente, mas sim um trabalho de integração do direito[7], com permissão estabelecida, igualmente, na Constituição Federal. Outrossim, observa-se que as relações trabalhistas são muito dinâmicas, mostrando-se, portanto, o pronunciamento jurisdicional mais eficaz (fator tempo e especificidade no comando normativo) do que a elaboração de uma norma abstrata pelo Poder Legislativo.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Amador Paes. Curso Prático de Processo do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 1986.
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10 ed. Brasília: Unb, 1999.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
GIGLIO, Wagner D.Direito Processual do Trabalho. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
GRINOVER, Ada Pelegrine, CINTRA, Antônio Carlos de Araújo e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 2 ed. São Paulo: LTR, 2004.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. 28 ed. São Paulo: LTr, 2002.
OLIVEIRA, Francisco Antônio de. Manual de Direito Individual e Coletivo do Trabalho. 2 ed. São Paulo: RT, 2000.
ANDRADE, Márcio Chalegre. Poder Normativo da Justiça do Trabalho. Disponível em: <http://cristianemarinhotrabalhista.vilabol.uol.com.br/aa20.htm>. Acesso em 18 de setembro de 2004.
[1] Iniciação ao Direito do Trabalho, 28 ed. São Paulo: LTr, 2002, p. 97.
[2] Iniciação ao Direito do Trabalho, 28 ed. São Paulo: LTr, 2002, p. 517.
[3] Ives Gandra apud ANDRADE, Márcio Chalegre. Poder Normativo da Justiça do Trabalho. Disponível em: <http://cristianemarinhotrabalhista.vilabol.uol.com.br/aa20.htm>. Acesso em 18 de setembro de 2004.
[4] Francesco Carnelutti apud GRINOVER, Ada Pelegrine, CINTRA, Antônio Carlos de Araújo e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1976.
[5] Ciência Política. BONAVIDES, Paulo. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 137.
[6] Teoria Pura do Direito. KELSEN, Hans. 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
[7] Teoria do Ordenamento Jurídico. BOBBIO, Norberto. 10 ed. Brasília: Unb, 1999, p. 147.
Bacharel em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em Direito Civil e Processual Civil. Membro da Advocacia-Geral da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: THIAGO Sá ARAúJO THé, . O poder normativo da Justiça do Trabalho e a problemática da separação dos poderes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 nov 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41955/o-poder-normativo-da-justica-do-trabalho-e-a-problematica-da-separacao-dos-poderes. Acesso em: 23 dez 2024.
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