Resumo:A Constituição Federal e seus princípios fundamentais são vetores informadores para se construir uma sociedade mais justa e harmônica de acordo com as necessidades sociais.A distinção entre direito público e privado está em crise. Na sociedade atual, é difícil indentificar um interesse particular que seja completamente autônomo, independente, isolado do interesse público. Há ainda os interesses coletivos como categoria intermediária. Técnicas e institutos do direito público são utilizados no direito privado, e vice-versa.
Palavras-chaves:Constituição Federal. Estado de Direito. Princípio da dignidade da pessoa humana. Direito Público. Direito Privado. Constitucionalização do Direito.
Fatores históricos e sociais alteraram profundamente a sociedade ao longo do século XX. Uma maior participação política, a democratização do pais, o sentimento de cidadania, entre outros, culminaram com a constitucionalização do direito. A Constituição Federal e seus princípios fundamentais são vetores informadores para se construir uma sociedade mais justa e harmônica de acordo com as necessidades sociais. Os princípios integradores, através dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade indicam o sentido para a realização concreta da norma.[1]
O liberalismo jurídico do século XIX consagrou a completude e unicidade do direito, o qual passou a ter como fonte única o Estado, com seu poder ideologicamente emanado do povo, a concepção do homem como sujeito abstrato e a neutralidade das normas como postulados fundamentais do Estado de Direito. Isto aconteceu porque a sociedade da época almejava romper com o regime absolutista e seus privilégios de classe, eliminando o caráter dispositivo e inseguro do direito.
O Estado de Direito é o Estado da legalidade e da liberdade; a autoridade do Estado se conciliava com a soberania do indivíduo, cuja conseqüência foi à redação do conjunto de normas organizadas em codificação, que seria suficiente para regular toda a vida da sociedade civil, bem como lei maior da mesma, assegurando a igualdade formal e proporcionando a segurança jurídica.[2]
Segundo Gustavo Tepedino,
Com o apogeu das codificações, no Século XIX, sabe-se quão diminuto foi o papel das Declarações de Direitos Políticos e dos textos constitucionais nas relações de direito privado. Por um lado, pode-se dizer que a completude do Código Civil, que caracteriza o processo legislativo com pretensão exclusivista, descarta a utilização de fontes de integração heteronômicas, forjando-se um modelo de sistema fechado, auto-suficiente, para o qual as Constituições, ao menos diretamente, não lhe diziam respeito.[3]
A distinção entre direito público e privado está em crise. Na sociedade atual, é difícil indentificar um interesse particular que seja completamente autônomo, independente, isolado do interesse público. Há ainda os interesses coletivos como categoria intermediária. Técnicas e institutos do direito público são utilizados no direito privado, e vice-versa.[4]
“A própria noção de ordem pública, sempre invocada como limite à livre atuação do sujeito, teve seu conteúdo redesenhado pelo projeto constitucional, com particular ênfase nas normas que tutelam a dignidade humana e que, por isso mesmo, ocupam a mais alta hierarquia da ordem pública, o fundamento último do ordenamento constitucional.”[5]
“O conjunto de valores, de bens, de interesses que o ordenamento jurídico considera e privilegia, e mesmo a sua hierarquia, traduzem o tipo de ordenamento com o qual se opera.”[6] Assim, para se chegar a uma solução para um dado problema concreto, é necessário analisar-se todo o conjunto de princípios e valores constitucionais e infra-constitucionais, de forma sistemática, desapegando-se do formalismo positivista. Nas palavras de Pietro Perlingieri:
O mundo dos códigos é o mundo da segurança, refletindo os valores do liberalismo do século XIX. De acordo com o liberalismo jurídico, o Direito Privado era apresentando como o coração de toda a vida jurídica e o Direito Público apenas como uma ‘leve moldura’ que devia servir de proteção ao primeiro.[7]
No entanto, esse modelo liberal burguês adotado pelo Código Civil de 1916 e copiado pelo Código Civil de 2002 possui inúmeros paradigmas. Segundo Carmem Lucia Ramos:
A igualdade, fundada na idéia abstrata de pessoa, partindo de um pressuposto meramente formal, baseado na autonomia da vontade, e na iniciativa privada, no entanto, veio acompanhada de um paradoxo, que traduz uma conseqüência do modelo liberal-burguês adotado: a prevalência dos valores relativos à apropriação de bens sobre o ser, impedindo a efetiva valorização da dignidade humana, o respeito à justiça distributiva e à igualdade material ou substancial. [8] [grifo nosso]
De acordo com esse modelo, o exercício de direitos ficou vinculado à apropriação de bens, contribuindo para as desigualdades, exclusão social e injustiça. O Estado de Direito liberal ignorou as desigualdades econômicas e sociais, considerando todos os indivíduos formalmente iguais perante a lei.[9] A vontade dos fortes passou a dominar e oprimir aqueles que não possuíam patrimônio; a ética individualista passou a dominar a sociedade, prevalência dos valores relativos aos bens em detrimento da pessoa como sujeito de direitos pelo simples fato de ser humano.
Assim, “A solução para cada controvérsia não pode mais ser encontrada levando em conta simplesmente o artigo de lei que parece contê-la e resolvê-la, mas, antes, à luz do inteiro ordenamento jurídico, e, em particular, de seus princípios fundamentais, considerados como opções de base que o caracterizam.”[10]
Despatrimonialização, publicização, despersonificação, a edição de estatutos especiais e tantos outros processos evocam a dimensão das mudanças sofridas pelo Direito Civil ao longo do século XX. No estágio atual em que se encontra a ordem jurídica, toda e qualquer situação subjetiva recebe a tutela do ordenamento se e enquanto estiver não apenas em conformidade com o poder de vontade do titular, mas também em sintonia com o interesse social.[11]
Destarte, “... no decorrer do século XX, com o advento das Constituições dos Estados democráticos, os princípios fundamentais dos diversos ramos do Direito, e também os princípios fundamentais do direito privado, passaram a fazer parte dos textos constitucionais nos países de tradição romano-germânica.”[12] Em um movimento de ruptura, buscando-se atender às aspirações da sociedade brasileira no limiar do século XXI, promulgou-se a Constituição Federal de 1988.
De acordo com Carmem Lucia RAMOS:
Esse sentido protecionista e solidarista – votado para uma realidade sócio-econômica diversificada, de vida predominantemente urbana, em contradição com vivência rural prevalente à época da edição do código (...) - operou-se através da manifestação de forças antagônicas reunidas na assembléia constituinte, que conseguiram delinear, no texto constitucional, elementos desta evolução, adequando as categorias jurídicas tradicionais às atuais exigências sócio-econômico-culturais brasileiras, se não efetivamente, pela fragilidade dos mecanismos existentes para sua operacionalização, pelo menos no texto maior.[13]
O sistema liberal do século XIX, levou a um positivismo exagerado e a uma abstração em detrimento dos fatos ocorridos na sociedade. Para se atender aos anseios da nova ordem constitucional, é necessário se fazer uma leitura interdisciplinar do direito, analisando-se os casos concretos, na sua historicidade, repensar o direito no contexto de uma ordem capaz de vincular lei e realidade social, preservando-se, assim, os interesses coletivos e não mais individualistas, bem como a dignidade do cidadão, ausentes no sistema clássico do Direito Civil do século XIX, consolidado no Código de 1916.
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[1]FACHIN, Rosana Amara Girardi. Uma releitura constitucionalizada da prisão civil (desafios e perspectivas à luz da jurisprudência recente). In:RAMOS, Carmem Lucia. (Coord.) Direito Civil Constitucional: Situações Patrimoniais. Curitiba: Juruá, 2002.
[2] RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. (Coord.) Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 4-5.
[3] TEPEDINO, Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa. In: Problemas de Direito Civil – Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
[4] MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: uma leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 53-54.
[5] Ibid., p. 105.
[6] Ibid., p. 5.
[7]PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002,p. 104.
[8] RAMOS, op. cit., p. 5.
[9] Ibid., p. 5-6.
[10] MORAES, M. C. B. de., p.
[11] Perlingieri, p. 121-122.
[12] Ibid., p. 68.
[13] RAMOS, op. cit., p. 9-10.
Procuradora Federal. Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera-Uniderp.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARTURI, Claudia Adriele. A constitucionalização do direito privado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 nov 2014, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41997/a-constitucionalizacao-do-direito-privado. Acesso em: 23 dez 2024.
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