RESUMO: versa o presente artigo acerca do tema da Constituição no tempoe suas principais questões. Parte-se de dois questionamentos iniciais acerca da Constituição de 1988, sobre a forma de convocação do Congresso Constituinte e sobre a transição “pacífica” entre os dois ordenamentos. Para responder esses questionamentos analisa-se a Constituição no tempo e seus aspectos gerais e principais problemas e o conflito entre os dois fundamentos de validade do ordenamento, a Constituição nova e a anterior.
PALAVRAS-CHAVE: Constituição. Constituição no tempo. Conflito entre a constituição nova e anterior. Constituição de 1988 e convocação do Congresso Constituinte.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Se tem uma matéria de direito constitucional desenvolvida pela doutrina brasileira e com páginas e páginas em nossos manuais é a temática da Constituição no tempo. E a resposta é simples: nossa realidade constitucional foi feita, ao menos até 1988, por rupturas promovidas de toda ordem, seja por golpes seja por movimentos populares como ocorreu com as diretas já, que pôs fim ao regime anterior.
Diante dessa realidade a doutrina se debruçou para dar as respostas necessárias aos problemas práticos do cotidiano jurídico de aplicação do novo fundamento de validade do ordenamento jurídico nacional.
Nesse diapasão, duas questões que ainda merecem debate e respostas é a respeito da forma que ocorreu a convocação do Congresso Constituinte que formulou a Constituição de 1988, que foi por meio de emenda à Constituição anterior do regime militar de 1969. Até que ponto esse procedimento macula a legitimidade do congresso constituinte e até que ponto pode ser uma forma de transição “pacífica” de um ordenamento jurídico para outro, são as questões que nos propomos a responde em sede de conclusão.
Para tanto, iremos analisar a problemática da Constituição no tempo com suas questões mais gerais e a problemática atinente a Constituição nova e a antiga.
A matéria concernente a Constituição no tempo traz a tona a relação das normas jurídicas de um mesmo sistema e a solução de eventuais contradições e oposições desse, em decorrência do advento de um novo fundamento de validade. Em razão de estarmos tratando da Constituição, norma que possui um brilho autônomo decorrente, também, da sua posição hierárquica superior, não ocorre o fenômeno das antinomias jurídicas, pois, nesse, se faz necessário a verificação “entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e tendo o mesmo âmbito de validade” (BOBBIO, 1997: p. 88), ou seja, igual hierarquia formal.
Escrevendo a respeito da posição do filósofo italiano, concluiu Juarez Freitas, que, “mostra-se preciso ao explicar a condição necessária à ocorrência de antinomias, como sendo a pertença ao mesmo ordenamento e ao mesmo âmbito de validade temporal, espacial, pessoal e material” (FREITAS, 2004: p. 90). Posteriormente conceitua as antinomias jurídicas como as “incompatibilidades possíveis ou instauradas entre regras, valores ou princípios jurídicos, pertencentes validamente ao mesmo sistema jurídico, tendo de ser vencidas para a preservação da unidade e da coerência sistemática e para que se alcance a efetividade máxima da pluralista teologia constitucional” (FREITAS, 2004: p. 102).
Como já dito, a Constituição está no topo da pirâmide normativa, a ela, portanto, devem respeito as demais leis, sejam anteriores ou posteriores. Estas, além de seu texto ser compatível com a Constituição o próprio processo de sua elaboração é posto pela norma fundamental. Não raras são as vezes em que há uma contradição entre as normas jurídicas em geral, seja entre a Constituição nova e a anterior, seja entre a Constituição e as leis infraconstitucionais, ou, mesmo, entre estas. Tornou-se corrente em doutrina, e na própria consciência coletiva do pensamento jurídico em geral, a proposição de diversos critérios para a solução dos conflitos de normas, ou seja, quando duas leis, em sentido amplo, preconizam soluções diferentes para a mesma situação fática. Dentre estes, são conhecidos de todos os critérios hierárquico, cronológico e o especial. O primeiro, preconiza que prevalecerá a norma que for hierarquicamente superior; o segundo, tem o tempo como definidor, pois do conflito entre normas, prevalecerá a cronologicamente mais recente; o terceiro, dispõe que a norma geral não subsiste à especial, na matéria conflituosa.
Com o advento de uma nova Constituição e com a geração dos conflitos entre esta a Constituição e as leis infraconstitucionais anteriores, somam-se os critérios hierárquico e cronológico em favor da nova Lei Maior, aspecto este que veremos nos pontos seguintes. Operam do mesmo modo os critérios, em relação ao processo de reforma formal da Constituição (via emenda ou revisão), ressalvado, neste caso, a obediência as Cláusulas Pétreas.
Conforme Luis Roberto Barroso: “A Constituição, como é corrente, é a lei suprema do Estado. Na formulação teórica de Kelsen, até aqui amplamente aceita, a Constituição é o fundamento de validade de toda a ordem jurídica. É ela que confere unidade ao sistema, é o ponto comum ao qual se reconduzem todas as normas vigentes no âmbito do Estado. De tal supremacia decorre o gato de que nenhuma norma pode subsistir validamente no âmbito de um Estado se não for compatível com a Constituição”. (BARROSO, 2004: 57).
Da hierarquia, formal e axiológica, advém o respeito que as leis futuras devem ter em relação a Constituição e, para que isso seja observado, é posto o sistema de controle de constitucionalidade.
Quando uma nova Constituição entra em vigor, de regra, ocorre uma descontinuidade constitucional, ao contrario da continuidade. Nas palavras de Gomes Canotilho, “existe continuidade constitucional quando uma ordem jurídico-constitucional que sucede a outra se reconduz, jurídica e politicamente, à ordem constitucional precedente; fala-se de descontinuidade constitucional quando uma nova ordem constitucional implica uma ruptura com a ordem constitucional anterior. Neste sentido, existirá uma relação de descontinuidade quando uma nova constituição adquiriu efetividade e validade num determinado espaço jurídico sem que para tal se tenham observado os preceitos reguladores da alteração ou revisão da constituição vigente que, assim, deixa de ser, por sua vez, válida e efctiva no mesmo espaço jurídico” (CANOTILHO, XXXX: p 195-196).
A Constituição brasileira de 1988 entra na descontinuidade formal e material do ordenamento jurídico pátrio, pois decorreu, embora suas vicissitudes, de um processo constituinte cuja titularidade foi alterada em relação à Constituição anterior (seja a de 1969, para os constitucionalista que consideram a emenda como uma verdadeira Constituição seja a de 1967), passando ao povo que elegeu os constituintes e teve uma ampla participação,até então sem similar em nossa história constitucional.
Essencial para as conseqüências decorrentes do conflito entre as normas de um ordenamento é saber se o novo texto constitucional é posto pelo poder constituinte derivado (constituído) ou pelo poder constituinte originário. Assim, no caso do advento de uma nova Constituição esta irá revogar totalmente a anterior (revogação global ou de sistema),[i] ou seja, o fundamento de validade da ordem jurídica passa a ser o novo texto e o anterior é inteiramente revogado, decorrência essa do caráter originário e inicial do produto do poder constituinte originário. Nesse sentido: “A superveniência de uma nova Constituição desaloja por completo a anterior. Isto se dá em virtude do seu próprio caráter inicial e originário. É dizer: a Constituição é a fonte geradora de toda a ordem jurídica, que dela extrai seu fundamento de validade” (BASTOS, 1999: p. 76).
Ademais, dependendo do grau de ruptura e da sua dramaticidade, ou seja, se por um processo radical de alteração do Poder Estatal, pelo advento de uma revolução, ou em razão de uma transição gradual e democrática do antigo regime para o novo (como se deu no caso brasileiro), ou, ainda, em razão, somente, de um golpe de estado, cujo objetivo e alterar as pessoas e não o poder, maior ou menor será a continuidade do ordenamento jurídico anterior ao advento da nova Constituição.
O novo fundamento do ordenamento passará a ser outro e, somente este, pois, como ensina Luis Roberto Barroso, “A Constituição escrita ordena sistematicamente os princípios fundamentais da organização política do Estado e das relações entre esse Estado e o povo que o compõe. É documento único e supremo. Não se pode cogitar, salvo casos de patologia institucional grave, da existência simultânea de mais de uma Constituição no âmbito territorial de um Estado” (BARROSO, 2004: p. 58).
Em razão das características do poder constituinte originário, entre essas, a de ser permanente (em razão de seu titular, o povo, poder exercê-lo no momento que entender), inicial (pelo fato do poder constituinte originário elaborar a nova ideia de direito de determinada coletividade), ilimitado (característica essa que já não é mais aceita em razão da vinculação as normas de direito internacionais, especialmente os tratados de direitos humanos), autônomo (pelo fato de não estar vinculado ao existente) e incondicionado (uma vez que não está adstrito a Constituição anterior), pode revogar a Constituição anterior e todo o ordenamento que for contrário a atual. Também pode, expressamente, dispor que determinadas normas da Constituição revogada permanecem em vigor, seja com hierarquia constitucional ou de lei ordinária. A hipótese de permanecia de texto anterior com hierarquia constitucional, apontada pela doutrina, pouco se verifica na história constitucional, por um simples motivo: ao invés de dizer que determinado capítulo ou artigo da constituição anterior permanece em vigor com força constitucional, é de melhor técnica e praticidade que se repita o dispositivo no novo texto.
Além da possibilidade de manter como materialmente constitucional preceito da Constituição anterior, pode ocorrer o fenômeno da desconstitucionalização das normas constitucionais, segundo o qual, as normas expressamente determinadas pela nova Lei Fundamental da Constituição anterior, permanecem em vigor com o advento do novo texto, mas, e aí consiste a diferença com a possibilidade anterior, com status de lei ordinária, isto é, com hierarquia infraconstitucional. Tal tese surgiu com o teórico da Constituição Carl Schmitt que, entretanto, admitia a permanência em vigor dos dispositivos da Constituição anterior que não fossem materialmente constitucionais, sem, necessariamente, ser previsto pela nova Constituição. Paulo Bonavides leciona que “... à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais. Tudo quanto for, enfim, conteúdo básico referente à composição e ao funcionamento da ordem política exprime o aspecto material da constituição” (BONAVIDES, 1997: p.63)
Para Jorge Miranda: “A desconstitucionalização (tal como a recepção material) tem de ser prevista por uma norma. Não pode estribar-se em mera concepção teórica ou doutrinal; não é por certos preceitos formalmente constitucionais não o serem materialmente ou pertencerem a outro ramo de Direito que ela se verifica ou pode verificar-se – até porque, como dissemos na altura própria, toda a Constituição formal é Constituição material, qualquer preceito formalmente constitucional é, desde logo, materialmente constitucional” (MIRANDA: 2002, p. 460).
Luis Roberto Barroso nos noticia somente um exemplo de uma Constituição do Estado de São Paulo que adotou a desconstitucionalização em seu texto, ao dispor: “‘Art. 290º (Direito anterior) 1. As leis constitucionais posteriores a 25 de abril de 1974 não ressalvadas neste capítulo são consideradas leis ordinárias, sem prejuízo no disposto no número seguinte. 2. O direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados’” (BARROSO, 2004: p. 6.0).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em sede de conclusão, para não incorrermos em redundância não iremos retomar as questões debatidas no decorrer do texto, vamos direto as perguntas formuladas no início do presente trabalho. Afinal: até que ponto o procedimento de convocação do Congresso Constituinte via emenda à Constituição anterior macula a legitimidade do processo constituinte e até que ponto pode ser uma forma de transição “pacífica” de um ordenamento jurídico para outro, são as questões que nos propomos a responde em sede de conclusão.
A primeira resposta a história recente da Constituição de 19888 responde, pois estamos vivenciando um período mais longo de democracia que o pais vivenciou em toda sua trajetória. Foi com a norma advinda do Congresso Constituinte de 1988 que foi possível chegarmos até o presente sempre com respeito as instituições da democracia, especialmente, o voto soberano, livre e igual de todos os brasileiros.
No que diz com o segundo questionamento, de fato a forma de convocação do Congresso Constituinte, via emenda à norma anterior, foi uma transição de um ordenamento jurídico para o outro sem traumas institucionais em que houve uma convivência “pacífica” entre as Constituições. Possibilitou uma gradual adaptações do ordenamento jurídico anterior a nova constituição que estava sendo gestacionada pelo Congresso.
Desse modo, o próprio sucesso da Constituição de 1988 em implementar a nova democracia brasileira também se deve a forma como foi feita a transição do ordenamento jurídico anterior para o atual.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução Maria Celeste C. J. Santos; revisão técnica Cláudio De Cicco. 10a ed., Brasília: UNB, 1997.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6a ed., São Paulo: Saraiva, 2004.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20a ed., São Paulo: Saraiva, 1999.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª Ed. 5ª reimpressão, Coimbra: Almedina, 2003.
FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. 4a ed., São Paulo: Malheiros, 2004.
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. São Paulo: Forense, 2002.
[i] A esse respeito: “Antes de mais, uma Constituição nova revoga a Constituição anterior. Por definição, não pode haver se não uma Constituição – em sentido material e em sentido formal; em cada país e em cada momento, só pode prevalecer certa idéia de Direito; a finalidade específica do acto constituinte consiste em substituir a ordem constitucional criada a partir de anterior acto constituinte por uma diferente ordem coinstitucional.
“Esta revogação é uma revogação global ou de sistema, e não uma revogação stricto sensu ou uma recepção individualizada, norma a norma. Não cabe indagar da compatibilidade ou não de qualquer norma constitucional anterior com a correspondente norma constitucional nova ou com a nova Constituição no seu conjunto; basta a sua inserção na anterior Constituição para que automaticamente – expressa ou tacitamente – fique ou se entenda revogada pela Constituição posterior” (MIRANDA, 2002: p. 459).
Procurador Federal da Adovocacia-Geral da União - AGU, especialista em Direito Público pela Universidade Nacional de Brasília - UNB, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FURIAN, Leonardo. Constituição de 1988 e convocação do Congresso Constituinte: principais questões referente ao conflito entre a Constituição nova e a anterior Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42018/constituicao-de-1988-e-convocacao-do-congresso-constituinte-principais-questoes-referente-ao-conflito-entre-a-constituicao-nova-e-a-anterior. Acesso em: 23 dez 2024.
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