I. Considerações iniciais
O presente estudo enfoca a possibilidade do exercício da autotutela pela Administração Pública em relação aos atos atinentes à concessão de aposentadoria de servidores, de acordo com as normas que regem o processo administrativo federal e o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto.
II – Da autotutela administrativa
Na seara da relação jurídica de direito administrativo, a noção de autotutela é conformada como um valor informador da atuação da Administração Pública, justamente com diferentesbalizas existentes, como a legalidade, a supremacia do interesse público, a impessoalidade, a transparência e a eficiência.
O embasamento teórico inafastável é de que o Poder Público deve agir em observância estrita à lei. Logo, a atuação estatal sobre o crivo do controle de legalidade, o qual, quando é exercido pela própria Administração, sobre seus próprios atos, estará exercendo a chamada autotutela.
O Supremo Tribunal Federal há muito tempo fixou o viés interpretativo através da edição de dois verbetes de sua súmula de jurisprudência, a saber:
A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos. (Súmula nº 346)
A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial. (Súmula nº 473)
Segundo José dos Santos Carvalho Filho[1] “A autotutela se caracteriza pela iniciativa de ação atribuída aos próprios órgãos administrativos. Em outras palavras, significa que, se for necessário rever determinado ato ou conduta, a Administração poderá fazê-lo ex officio, usando sua auto-executoriedade, sem que depende necessariamente de que alguém o solicite. Tratando-se de ato com vício de legalidade, o administrador toma a iniciativa de anulá-lo; caso seja necessário rever ato ou conduta válidos, porém não mais convenientes ou oportunos quantia a sua subsistência, a Administração providencia a revogação. Essa sempre foi a clássica doutrina sobre o tema”.
Porém, adverte o renomado administrativista, “Modernamente, no entanto, tem prosperado o pensamento de que, em certas circunstâncias, não pode ser exercida a autotutela de ofício em toda sua plenitude”.
Estes limites serão traçados especificamente em relação aos autos de concessão de aposentadoria de servidores públicos federais, de acordo com o entendimento sufragado pela Suprema Corte Brasileira.
III – Do entendimento do Supremo Tribunal Federal
Em exame da matéria, o Supremo Tribunal Federal declarou que, transcorrido in albis o interregno quinquenal a contar da aposentadoria, é de se convocar o servidor/pensionista para participar do processo de seu interesse, a fim de desfrutar das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa[2]. Isso significa que o prazo decadencial de cinco anos para a verificação de regularidade de concessão - por parte de ente administrativo - de aposentadoria ou pensão deve ser observado, como condição resolutória, pela Corte de Contas. Ultrapassado esse termo quinquenal, imperiosa a observância de contraditório em ampla defesa por parte do TCU – não do órgão concedente originário.
Num segundo instante, o Supremo Tribunal Federal consignou que o prazo de cinco anos deve ser contado a partir da data de chegada ao TCUdo processo administrativo de aposentadoria ou pensão encaminhado pelo órgão de origem para julgamento da legalidade do ato concessivo de aposentadoria ou pensão e posterior registro pela Corte de Contas[3].
O que se depreende dos julgados do Pleno do Pretório Excelso é que, transcorrido o prazo quinquenal para que a Administração impugne o ato de concessão de aposentadoria ou pensão, o TCU deverá ofertar ampla defesa e contraditório aos interessados. Isso significa que há reconhecimento subjacente de que a Administração somente pode lançar mão da autotutela para revisar o ato de concessão do benefício a partir de cinco anos da remessa do processo administrativo correlato ao TCU; acaso superados esses cinco anos, somente o TCU poderá cassar o ato concessório a partir de procedimento que permita ampla defesa e contraditório aos interessados.
A função da Corte de Contas é apreciar a legalidade do ato de concessão de aposentadoria e/ou de pensão, ou seja, a conformidade do ato administrativo com a lei e os fatos pertinentes. A concessão de aposentadoria e de pensão é ato de competência da Administração, não do Tribunal de Contas, cuja incumbência é exercida posteriormente ao ato concessório. Nesse exame de legalidade, pode o TCU assinar prazo para que o órgão ou a entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei (CF/88, art. 71, IX.) No entanto, não desfruta a Corte de Contas de competência para proceder a qualquer inovação no título jurídico de aposentação submetido a seu exame, a menos que o ato concessório tenha sido atingido, na seara administrativa, pela decadência quinquenal, de modo a se tornar intocável pela Administração, mas não pelo TCU. Isso porque a Segurança Jurídica, segundo interpretação do Supremo Tribunal Federal, é componente da Dignidade Humana insculpida no art. 1º, III da Carta Magna Tupiniquim. Tanto é assim que o Poder Constituinte Reformador aditou o art. 5º da CF/88 para ali fazer constar, como direito fundamental, a razoável duração do processo (inciso LXXVIII).
Cabe breve digressão teórica: as atribuições da Administração Pública são necessariamente exercidas com vistas à concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, tendo como vetor axiológico o imperativo a dignidade da pessoa humana. Esse é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, expressamente delineado na Constituição Federal, em seu art. 1º, III. Nesse sentido é pertinente a lição de LUIS ROBERTO BARROSO[4]:
“O novo Direito Constitucional ou neoconstitucionalismo desenvolveu-se na Europa, ao longo da segunda metade do século XX, e, no Brasil, após a Constituição de 1988. O ambiente filosófico em que floresceu foi o do pós-positivismo, tendo como principais mudanças de paradigma, no plano teórico, o reconhecimento de força normativa à Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e a elaboração das diferentes categorias da nova interpretação constitucional.
Fruto desse processo, a constitucionalização do direito importa na irradiação dos valores abrigados nos princípios e regras da Constituição por todo o ordenamento jurídico, notadamente por via da jurisdição constitucional, em seus diferentes níveis. Dela resulta a aplicabilidade direta da Constituição a diversas situações, a inconstitucionalidade das normas incompatíveis com a Carta Constitucional e, sobretudo, a interpretação das normas infraconstitucionais conforme a Constituição, circunstância que irá conformar-lhes o sentido e o alcance. A constitucionalização, o aumento da demanda por justiça por parte da sociedade brasileira e a ascensão institucional do Poder Judiciário provocaram, no Brasil, uma intensa judicialização das relações políticas e sociais. Tal fato potencializa a importância do debate, na teoria constitucional, acerca do equilíbrio que deve haver entre supremacia constitucional, interpretação judicial da Constituição e processo político majoritário.
O Direito Administrativo é um dos mais afetados pelo fenômeno da constitucionalização. A partir da centralidade da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, a relação entre Administração e administrados é alterada, com superação ou releitura de paradigmas tradicionais, sendo de se destacar: a) a redefinição da idéia de supremacia do interesse público sobre o particular, com o reconhecimento de que os interesses privados podem recair sob a proteção da Constituição e exigir ponderações em concreto; b) a conversão do princípio da legalidade administrativa em princípio da juridicidade, admitindo-se que a atividade administrativa possa buscar seu fundamento de validade diretamente na Constituição, que também funciona como parâmetro de controle; c) a possibilidade de controle judicial do mérito do ato administrativo, com base em princípios constitucionais como a moralidade, a eficiência, a segurança jurídica e, sobretudo, a razoabilidade/proporcionalidade.”
De seu turno os atos administrativos (do qual a concessão e aposentadoria e/ou pensão é uma espécie) devem se guiar pela juridicidade, deixando de existir a dicotomia discricionariedade/vinculatividade nos termos da doutrina jurídica clássica. A teoria administrativista contemporânea, embasada na constitucionalização do Direito (corrente teórica que defende que o centro do ordenamento jurídico é a Constituição, não a lei), ultrapassou a diferenciação entre atos administrativos vinculados e discricionários, passando a adotar a nomenclatura da juridicidade dos atos administrativos. Segue perfeita síntese[5]:
As transformações recentes sofridas pelo direito administrativo tornam imperiosa uma revisão da noção de discricionariedade administrativa. Com efeito, pretende-se caracterizar a discricionariedade, essencialmente, como um espaço carecedor de legitimação. Isto é, um campo não de escolhas puramente subjetivas, mas de fundamentação dos atos e políticas públicas adotados, dentro dos parâmetros jurídicos estabelecidos pela Constituição e pela lei.
A emergência da noção de juridicidade administrativa, com a vinculação direta da Administração à Constituição, não mais permite falar, tecnicamente, numa autêntica dicotomia entre atos vinculados e atos discricionários, mas, isto sim, em diferentes graus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade. A discricionariedade não é, destarte, nem uma liberdade decisória externa ao direito, nem um campo imune ao controle jurisdicional. Ao maior ou menor grau de vinculação do administrador à juridicidade corresponderá, via de regra, maior ou menor grau de controlabilidade judicial dos seus atos. Não obstante, a definição da densidade do controle não segue uma lógica puramente normativa [que se restrinja à análise dos enunciados normativos incidentes ao caso], mas deve atentar também para os procedimentos adotados pela Administração e para as competências e responsabilidades dos órgãos decisórios, compondo a pauta para um critério que se poderia intitular jurídico-funcionalmente adequado. (...)
A constitucionalização do direito ensejou uma incidência direta dos princípios constitucionais sobre os atos administrativos não diretamente vinculados pela lei. Assim, não há espaço decisório da Administração que seja externo ao direito, nem tampouco nenhuma margem decisória totalmente imune à incidência dos princípios constitucionais. Portanto, não é mais correto se falar de uma dicotomia entre atos vinculados e atos discricionários, senão que numa teoria de graus de vinculação à juridicidade. Conforme a densidade normativa incidente ao caso, pode-se dizer, assim, que os atos administrativos serão: (i) vinculados por regras [constitucionais, legais ou regulamentares], exibindo alto grau de vinculação à juridicidade; (ii) vinculados por conceitos jurídicos indeterminados [constitucionais, legais ou regulamentares], exibindo grau intermediário de vinculação à juridicidade; e (iii) vinculados diretamente por princípios [constitucionais, legais ou regulamentares], exibindo baixo grau de vinculação à juridicidade.
Sempre que o legislador ou o administrador cria uma regra, deve ponderar os valores constitucionais em jogo para evitar a iniquidade aos direitos fundamentais. A necessidade de previsão legal de vedação a condutas antiéticas é óbvia para a manutenção da higidez da tessitura social; entretanto, a eternização das demandas administrativas agride o fim máximo do Direito, que é a pacificação das relações sociais. Essa ponderação entre moralidade e caducidade foi feita pelo legislador constituinte (art. 37, §§ 4º e 5º da CF/88) e pelo ordinário (lei n. 8.429/92 e art. 54, da lei n. 9.784/99), exatamente porque é necessário haver um marco temporal a partir do qual um ato administrativo não mais possa ser revisto.
É possível que o STF acabe por fixar prazo decadencial ao TCU para análise dos atos de concessão e aposentadoria pelos órgãos da Administração Federal, dada a evolução da matéria em tal Corte. Também pode ocorrer de o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, no sentido da observância do prazo quinquenal pela Corte de Contas em sua atividade revisional, vir a prevalecer (vide REsp n. 1.129.206/PR, MS n. 9.425/DF), especialmente porque a tal órgão cabe uniformizar a interpretação da legislação federal.
IV – Considerações finais
Em conclusão, cabível o entendimento de que há dupla contagem do prazo decadencial previsto na lei n. 9.874/99: cinco anos a partir da publicação do ato concessivo de aposentadoria/pensão, por parte do poder-dever revisional da Administração Federal; cinco anos para convalidação do ato de aposentação/pensionamento por parte do TCU desde o recebimento do processo administrativo respectivo. Acaso entenda o TCU pela necessidade de reanálise do ato administrativo concessor, isso será possível à Administração dentro do quinquídio referido que, acaso ultrapassado, deixa como exclusiva a atribuição revisional ao TCU, em razão do instituto da decadência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo – 13ª. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal – Comentários à Lei n. 9.784, de 29.11.1999 – 5ª ed. rev. e atual.São Paulo: Atlas, 2013.
ARAGAO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (coord.s) Direito Administrativo e Seus Novos Paradigmas. Belo Horizonte, Fórum, 2008.
BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2008.
[1]Manual de Direito Administrativo – 13ª. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 127.
[2]MS 25.116, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 08set10, Plenário, DJE de 10fev11. No mesmo sentido: MS 28.074, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 22maio12, Primeira Turma, DJE de 14jun12; MS 26.053, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 18nov10, Plenário, DJE de 23fev11
[3]MS 24.781, Rel. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 02mar11, Plenário, DJE de 09jun11. No mesmo sentido: MS 27.699-AgR, rel. min. Dias Toffoli, julgamento em 21ago12, Primeira Turma, DJE de 04set12; MS 30.680, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 22maio12, Primeira Turma, DJE de 18jun12; MS 28.255, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 20mar12, Segunda Turma, DJE de 02abr12; MS 26.053-ED-segundos, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 14abr11, Plenário, DJE de 23maio11; MS 25.697, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 17fev10, Plenário, DJE de 12mar10; Vide: MS 27.746-ED, rel. min. Dias Toffoli, julgamento em 12jun12, Primeira Turma, DJE de 06set12; MS 26.560, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 17dez07, Plenário, DJE de 22fev08
[4]BARROSO, Luís Roberto. A constitucionalização do direito e suas repercussões no âmbito administrativo. in: ARAGAO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (coord.s) Direito Administrativo e Seus Novos Paradigmas. Belo Horizonte, Fórum, 2008, p. 62-3.
[5]BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 39-40 e 314.
Procurador Federal. Especialista em Direito do Estado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRENTANO, Alexandre. O exercício da autotutela pela Administração Pública nos atos de concessão de aposentadoria Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42032/o-exercicio-da-autotutela-pela-administracao-publica-nos-atos-de-concessao-de-aposentadoria. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
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