INTRODUÇÃO
Diversas celeumas são travadas no Poder Judiciário discutindo a regularidade de transações imobiliárias promovidas por vendedores que possuem débitos já constituídos, ou processos judiciais em andamento.
Inicialmente, mister delinearmos acerca das distinções entre fraude contra credores e fraude à execução.
O instituto da fraude contra credores está previsto na Seção VI do Código Civil, que oportunamente se transcreve:
Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.
§ 1o Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.
§ 2o Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.
Art. 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante.
A fraude em tela constituiu um defeito do negócio jurídico firmado, eis que operado com o intuito de prejudicar o direito do credor, este no sentido de satisfazer seus créditos com a persecução do patrimônio do devedor.
Na fraude contra credores, verifica-se a presença do elemento objetivo (eventos dammi) e o subjetivo (consilium fraudis). O eventos dammi se consubstancia no dano causado ao credor, ao passo que o consilium fraudis se mostra quando se forma o conluio fraudatório entre o devedor e o terceiro para causar prejuízo ao credor.
Observe-se que o elemento eventos dammi está relacionado com a presença da insolvência do devedor, sem a qual não há que se falar na ocorrência de fraude contra credores.
Por insolvência, entende-se quando o montante dos débitos de determinada pessoa for superior ao conjunto de bens que possuir. O art. 748 do Código de Processo Civil assim dispõe:
Art. 748. Dá-se a insolvência toda vez que as dívidas excederem à importância dos bens do devedor.
Os negócios jurídicos que incorrerem em fraude contra credores são anuláveis, carecendo de uma ação própria para o reconhecimento do eventos dammi (ação pauliana ou ação revocatória), e consequente anulação da transação realizada.
Já a fraude à execução se caracteriza quando, na pendência de processo judicial em andamento, o devedor aliena seus bens com vista a lesar o credor. O instituto em apreço tem previsão no art. 593 do Código de Processo Civil, in verbis:
Art. 593. Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens:
I - quando sobre eles pender ação fundada em direito real;
II - quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência;
III - nos demais casos expressos em lei.
A prima facie, o batismo do instituto leva a crer que apenas na pendência de processos de execução pode-se caracterizar a fraude à execução. Entretanto, é assente na doutrina e na jurisprudência que, ainda em curso o processo de conhecimento, resta configurada a fraude à execução. Nesse sentido, vejamos:
EMENTA: - PROCESSUAL CIVIL. FRAUDE À EXECUÇÃO. CARACTERIZAÇÃO. VENDENDO OU DOANDO O DEVEDOR, NO CURSO DA AÇÃO DE CONHECIMENTO, O ÚNICO BEM QUE POSSUÍA E QUE PODERIA GARANTIR A EXECUÇÃO, CONFIGURA-SE FRAUDE À EXECUÇÃO. - Na hipótese, não é necessário haja sido promovido o processo de execução. - Precedentes do STJ. - Recurso conhecido e provido. ..EMEN:
(RESP 199800313222, JOSÉ ARNALDO DA FONSECA - QUINTA TURMA, DJ DATA:14/09/1998 PG:00116 ..DTPB:.)
Diferentemente da fraude contra credores, na fraude à execução apenas o dano ao credor é exigido para a sua configuração, restando dispensada a presença do elemento subjetivo da fraude realizada. Outrossim, tem-se que no presente instituto não há necessidade de ação autônoma, bastando argui-la por meio de um mero incidente no bojo da execução em andamento.
Ainda nessa senda, é cediço que o ato praticado é reputado ineficaz, não produzindo efeitos em face do credor, que pode prosseguir com a persecução do bem para satisfação de seu crédito.
Ademais, a fraude à execução, além de lesar o credor, atenta contra à dignidade da justiça. Nesse sentido, vejamos o seguinte aresto:
TRIBUTÁRIO - EXECUÇÃO FISCAL - FRAUDE À EXECUÇÃO - ALIENAÇÃO DE BENS APÓS A CITAÇÃO - INEFICÁCIA - ART. 185 DO CTN. ATO ATENTATÓRIO À DIGNIDADE DA JUSTIÇA. 1. Dispõe o art. 185 do CTN, antes da redação introduzida pela Lei Complementar nº 118/2005, que: "presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa em fase de execução". 2. O débito em questão foi inscrito em Dívida Ativa da União em 19.03.2002. A execução fiscal foi ajuizada em 17.12.2002. Frustrada a tentativa de citação por mandado, foi expedido edital de citação em 15.03.2003. A Executada chegou a oferecer bens à penhora os quais foram penhorados, mas arrematados em outro processo, no qual já estavam penhorados. Neste contexto, não há como se deixar de considerar fraudulenta a alienação dos bens operada em 03.01.2005 e 20.01.2005, ao passo que o devedor tributário não comprovou que reservou bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida em fase de execução. Essa é a inteligência do art. 185 do CTN, mesmo com a redação anterior ao advento da LC 118/2005. 3. A fraude à execução representa ato atentatório à dignidade da Justiça, nos termos estabelecidos no art. 600, I, do CPC, sendo o caso de manutenção da multa aplicada de 20% sobre o valor atualizado do débito, com fulcro no art. 601 do CPC. 4. Precedente: (TRF-3ª R. - AC 766173 - 2ª T. - Relª Desª Cecilia Mello - DJU 08.10.2004). 5. Agravo de instrumento improvido.
(AG 00069673620104050000, Desembargador Federal Francisco Barros Dias, TRF5 - Segunda Turma, DJE - Data::04/11/2010 - Página::221.)
É sabida a demasiada frequência das demandas judiciais em que negócios jurídicos, especialmente transações imobiliárias, são questionados. O terceiro adquirente de boa-fé, por vezes, é prejudicado, comprando determinado imóvel sem a ciência da insolvência do vendedor.
Nessa seara, em 07 de outubro do corrente ano, entrou em vigor a Medida Provisória n. º 656, que dogmatizou o princípio da concentração da matrícula, regendo que as ocorrências relevantes atinentes ao imóvel, ou ao titular do direito real, devem constar na matrícula do bem em questão. Vejamos o teor da referida MP:
Art. 10. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações: (Vigência)
I - registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;
II - averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil;
III - averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e
IV - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 do Código de Processo Civil.
Parágrafo único. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos art. 129 e art. 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.
Art. 11. A alienação ou oneração de unidades autônomas integrantes de incorporação imobiliária, parcelamento do solo ou condomínio de lotes de terreno urbano, devidamente registrada, não poderá ser objeto de evicção ou de decretação de ineficácia, mas eventuais credores do alienante ficam sub-rogados no preço ou no eventual crédito imobiliário, sem prejuízo das perdas e danos imputáveis ao incorporador ou empreendedor, decorrentes de seu dolo ou culpa, bem como da aplicação das disposições constantes da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. (Vigência)
Art. 12. A averbação na matrícula do imóvel prevista no inciso IV do art. 10 será realizada por determinação judicial e conterá a identificação das partes, o valor da causa e o juízo para o qual a petição inicial foi distribuída. (Vigência)
§ 1º Para efeito de inscrição, a averbação de que trata o caput é considerada sem valor declarado.
§ 2º A averbação de que trata o caput será gratuita àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei.
§ 3º O Oficial do Registro Imobiliário deverá comunicar ao juízo a averbação efetivada na forma do caput, no prazo de até dez dias contado da sua concretização.
Portanto, não constando na matrícula do imóvel a informação da existência de processo judicial, penhora, ou qualquer outra averbação administrativa ou judicial de indisponibilidade ou de outros ônus, o negócio jurídico não perderá a sua eficácia.
A norma em apreço veio assegurar a tranquilidade nas transações imobiliárias, eis que basta ao adquirente requerer junto ao Cartório competente a certidão negativa de ônus reais do imóvel objeto de negociação. Emitida a certidão negativa, o terceiro de boa-fé poderá, com segurança, concretizar a negócio jurídico.
De outro viés, caberá aos credores atuar com maior diligência, promovendo o quanto antes a averbação da restrição na matrícula do imóvel de propriedade do devedor.
Por todo o exposto, depreende-se a importância dos novos regramentos trazidos pela MP n. º 656/2014, na parte que trata do princípio da concentração da matrícula, eis que possibilitará a realização de transações imobiliárias com mais transparência, fomentando a segurança jurídica das relações da espécie. Por conseguinte, teremos a redução das demandas judiciais questionando eventuais ocorrências de fraudes contra credores e à execução.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código Civil Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 26 de novembro de 2014.
BRASIL. Medida Provisória n. º 656/2014. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/Mpv/mpv656.htm>. Acesso em: 26 de novembro de 2014.
BRASIL. Código de Processo Civil Brasileiro. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869compilada.htm>. Acesso em: 26 de novembro de 2014.
Bacharel em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em Direito Civil e Processual Civil. Membro da Advocacia-Geral da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: THIAGO Sá ARAúJO THé, . A Medida Provisória n. º 656/2014 e a proteção do terceiro de boa-fé nas transações imobiliárias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42058/a-medida-provisoria-n-o-656-2014-e-a-protecao-do-terceiro-de-boa-fe-nas-transacoes-imobiliarias. Acesso em: 23 dez 2024.
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