Resumo: Discutir-se-á, no presente ensaio, se o §10 do art. 20 da LOAS (Lei 8.742/93) seria ou não inconstitucional, por supostamente não observar o princípio da isonomia e da universalidade da cobertura da seguridade social, e por guardar ou não compatibilidade com a Convenção de Nova York de 30.03.2007 (internalizada pelo Decreto nº 6.949/2009 em nosso ordenamento jurídico na forma prevista no §3º, do art. 5º, da CRFB-88, ou seja, possui status de norma constitucional), ao estipular o prazo mínimo de 2 anos para a definição do que seja “impedimento de longo prazo”, requisito para a concessão do benefício assistencial de amparo social ao deficiente físico.
Palavras-chave: LOAS. Assistência Social. Convenção de Nova York. Impedimentos de longo prazo. Benefício. Amparo social. Prestação Continuada. Deficiência. Prazo. Inconstitucionalidade.
I) INTRODUÇÃO
A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei 8.742/1993, em seu art. 20 (com a redação dada pela Lei 12.435/2011), prevê o direito a 01 (um) salário mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais de comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. A redação original do citado artigo 20 da LOAS previa limite etário mínimo pouco superior ao atual - era de 70 (setenta) anos para o amparo social ao idoso.
A grande novidade, contudo, reside na modificação do conceito de pessoa portadora de deficiência, que, segundo a redação original, seria aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho, mas que agora, pela derrogação trazida pela Lei 12.470/2011, passa a ser conceituada como aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas - conceito originalmente assim definido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30.03.2007 (internalizada pelo Decreto nº 6.949/2009 em nosso ordenamento jurídico na forma prevista no §3º, do art. 5º, da CRFB-88, ou seja, possui status de norma constitucional).
Ocorre que a Convenção de Nova York, ao estabelecer tal conceito, o amparou em conceito jurídico indeterminado - "impedimentos de longo prazo" -, não definindo, exatamente, o que se poderia considerar como "longo prazo", o que acabou exigindo dos países signatários do pacto, por ocasião da regulamentação das respectivas normas em seus ordenamentos jurídicos pátrios, a natural necessidade de estabelecerem critérios mais objetivos para a definição do que realmente se possa compreender ou definir como impedimento de longo prazo.
Nesse diapasão é que a Lei 12.470/2011 trouxe o §10 ao artigo 20 da LOAS, por meio do qual o legislador definiu como de longo prazo o impedimento que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.
Vêm surgindo, no entanto, teses arguindo a inconstitucionalidade de tal dispositivo normativo, as quais, de modo geral, amparam-se na alegação de que não poderia o legislador pátrio infraconstitucional, ao estipular o prazo mínimo de 2 anos (não previsto no texto promulgado na Convenção de Nova York de 30.03.2007), restringir direito previsto constitucionalmente, por supostamente não observar o princípio da isonomia e da universalidade da cobertura da seguridade social, e por não guardar compatibilidade com a citada norma internacional (internalizada pelo Decreto nº 6.949/2009 em nosso ordenamento jurídico com status de norma constitucional, na forma prevista no §3º, do art. 5º, da CRFB-88).
Todavia, como se verá adiante, de forma esmiuçada, não merece qualquer guarida tal tese, sendo o critério trazido pelo §10 do art. 20 da LOAS perfeitamente compatível com a norma constitucional invocada.
II) DA ANÁLISE QUANTO À ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 20, §10, DA LEI 8.742/93 – PERFEITA COMPATIBILIDADE ENTRE A LEI FEDERAL E A CONVENÇÃO DE NOVA YORK DE 30.03.2007
Vejamos, de plano, a norma ora sob exame - o artigo 20 da Lei nº 8.742-93, com redação dada pelas Leis nº 12.435 e 12.470, ambas de 2011, assim dispõe:
Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
[...]
§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (Redação dada pela Lei nº 12.470, de 2011)
[...]
§ 10. Considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do §2º deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos. (Incluído pela Lei nº 12.470, de 2011)
Como já dito alhures, vem-se tentando costurar tese segundo a qual haveria de ser reconhecida a inconstitucionalidade do §10 do art. 20 da LOAS, de forma a que o Instituto Nacional do Seguro Social (Autarquia Federal a quem incumbe, por meio de seus peritos-médicos e outros profissionais especializados, a análise quanto ao preenchimento dos requisitos legais para a fruição do mencionado benefício assistencial) viesse a se abster, para efeito de aferição da incapacidade da pessoa com deficiência que requerer o Benefício de Prestação Continuada, de exigir o prazo mínimo de 2 (dois) anos fixado àquele dispositivo de lei, estipulado como parâmetro para determinar os impedimentos de longo prazo (conceito jurídico indeterminado trazido ao ordenamento jurídico pátrio em observância à Convenção de Nova York - Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência).
Não há como se ignorar que o conceito estabelecido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, ao fazer uso da expressão “longo prazo”, trouxe impactos ao ordenamento jurídico brasileiro. Antes, para definir pessoa com deficiência, falava-se em deficiência temporária ou permanente ou em parcial ou completa, sendo as categorias permanente e completa geralmente adotadas como foco para as políticas públicas voltadas para a pessoa com deficiência, a exemplo do disposto no Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. No que se refere ao Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social, o Decreto nº 1.744, de 8 de dezembro de 1995, falava, até mesmo, em irreversibilidade da deficiência.
Considerando-se ter a Convenção da ONU status de emenda constitucional, fez-se necessário adequar a regulamentação sobre a pessoa com deficiência aos termos nela dispostos. Assim, não há que se falar mais em deficiência permanente, irreversível ou completa... Nos termos da Convenção da ONU, portanto, o cerne principal para a conceituação de deficiência encontra-se nos impedimentos de longo prazo, decorrentes de alterações na estrutura ou no funcionamento do corpo associados às barreiras de diversas ordens, que, para fins de gozo do BPC/LOAS (benefício assistencial), devem perdurar por pelo menos dois anos, nos termos do art. 20, §10, da Lei 8.742/93.
O texto da Convenção de Nova York, ao mencionar “impedimentos de longa duração”, claramente não esgota o tema, trazendo um conceito jurídico indeterminado que, no caso, traz-nos, de imediato, uma indagação: o que seria impedimento de longa duração? Coube ao legislador ordinário pátrio, pois, parametrizar tal conceito jurídico indeterminado, por meio de critério relacionado ao tempo (já que a expressão do conceito jurídico indeterminado “de longa duração” remete-nos, naturalmente, a tal grandeza: o tempo, o prazo).
Veja-se que o texto da Convenção de Nova York não se limitou à expressão “impedimentos”, mas, isto sim, já fixou uma restrição/limitação do alcance da proteção normativa tão-somente aos “impedimentos de longa duração”, razão pela qual não se pode dizer que foi o legislador ordinário quem limitou um direito amplo e irrestrito conferido pelo texto internacional (já que foi o próprio texto internacional quem limitou o direito aos casos “de longa duração”, embora sob um conceito jurídico indeterminado, a merecer a necessária regulamentação quanto a seus contornos para que se lhe possa dar eficácia) – ponto argumentativo que, sem maiores dificuldades, já se mostraria absolutamente suficiente para a destruição da tese da inconstitucionalidade, erigida como se tal restrição/limitação (apenas aos “impedimentos de longa duração”) já não constasse do texto daquela Convenção, pressupondo, falsamente, uma amplíssima proteção a todos e quaisquer impedimentos, mesmo os considerados de curta ou média duração.
De igual modo, os argumentos de tal tese mostram-se também absolutamente desprovidos de amparo em evidências empíricas ou em estudos técnicos que viessem a sustentar a alegação de que “impedimento de longo prazo” seria aquele que perduraria por algum prazo qualquer inferior a 2 anos. Ao se buscar, simplesmente, declarar a inconstitucionalidade do §10 do art. 20 da LOAS, quer-se, na verdade, apagar uma imprescindível regulamentação para a plena eficácia daquela norma internacional, deixando-se uma inegável lacuna em seu lugar, trazendo-se insegurança e ineficácia quanto ao universo de aplicabilidade da norma.
A Convenção de Nova York não unificou os critérios teleológicos das políticas públicas, mas apenas estabeleceu os termos comuns a serem seguidos pelas mesmas. Não por outra razão, aliás, se deixou de estabelecer qualquer prazo, pois se pretendia, exatamente, evitar que a efetividade da proteção dos deficientes, que equivale à superação da deficiência, fosse menos eficaz ao se fixar um período uniforme de duração do impedimento. O alijamento da pessoa com deficiência da integração social plena varia conforme o âmbito de participação; e é por isso que temos políticas de acessibilidade física, fiscal, profissional, etc., calcadas em pressupostos inteiramente diversos.
Uma unificação teleológica das políticas públicas equivaleria a transformar a discriminação positiva, pregada pela Convenção, em discriminação negativa, haja vista que, em tal hipótese, já não importariam os obstáculos específicos em face dos impedimentos específicos em relação a um âmbito de participação social específico, mas apenas a certificação pessoalizada da condição de deficiente, quando foi precisamente isso - a discriminação dita negativa - que a Convenção pretendia prescrever.
O prazo de dois anos não se trata de imposição arbitrária, eis que definido a partir de estudos técnicos, cujo objetivo foi justamente excluir do conceito de deficiência os impedimentos de curto e médio prazos (inequivocamente afastados, expressamente, pelo próprio texto da Convenção de Nova York, das hipóteses de incidência de fruição do benefício assistencial). Pretender-se, a título de ilustração, que até impedimentos de um mês façam jus ao benefício assistencial implicaria, isto sim, a negação de eficácia à Convenção, que é inequívoca ao definir, como elemento do conceito de deficiência, o impedimento de longa duração.
Seria, pois, no mínimo, bastante temerária a ausência de norma (por sinal também existente em outros países signatários da convenção, que adotam, na quase totalidade, o mesmo prazo de 2 anos – à exceção, por exemplo, segundo se sabe, da Suécia, que, por segurança, fixou um prazo até superior, de 3 anos), deixando-se, assim, de se fixar regra razoável (e objetiva) para a concessão de benefício que independe de carência e contribuição, custeado integralmente pela sociedade, afastando-se, outrossim, de um controle minimamente eficaz e concedendo amplíssima discricionariedade para os servidores/peritos das agências da Autarquia.
De fato, não se mostra absolutamente razoável que se atribua aos servidores das Agências da Previdência Social a discricionariedade para definir não apenas quem se amolda ao conceito de legal e, por isso, faça jus ao benefício assistencial, mas, também, para escolher, consideradas inúmeras variáveis (inclusive construções internas morais de cada um de tais servidores), o que vem a ser ou não um “impedimento de longo prazo".
Enquanto para um determinado servidor uma circunstância impeditiva de prazo de 1 ano seja por ele reputada bastante curta, efêmera e, por conseguinte, não caracterize a “longa duração” prevista no dispositivo normativo que rege a matéria, para outro servidor, no entanto, pode ser que a mesma circunstância impeditiva de prazo de 1 ano seja por ele reputada de “longa duração”, deferindo o benefício. Quebrar-se-ia, assim, a isonomia substancial, pois se tratariam de forma absolutamente distinta 2 indivíduos sujeitos à mesma circunstância impeditiva e ao mesmo prazo de duração previsto, tão-somente porque sujeitos à apreciação por servidores distintos, que têm concepções teóricas diversas sobre qual seja o tempo hábil à configuração da “longa duração” do impedimento.
Importante relembrar-se, aqui, que a fixação de tal regra não exclui a possibilidade de que eventuais indeferimentos que se entendam indevidos a requerimentos individuais, se for o caso, sejam submetidos à apreciação do Judiciário, não se lhes negando o acesso à Justiça.
Parece-nos também evidente - notadamente em tempos de insegurança jurídica gerada pelo exagerado emprego de normas abertas e conceitos jurídicos indeterminados na produção legiferante, bem como pela duvidosa regularidade do abuso de contextualizações principiológicas e deveras subjetivas que vemos em muitos julgados pátrios para se retirar a eficácia ou a validade de normas jurídicas infraconstitucionais – que, em relação à hipótese ora em debate, seria absolutamente temerário que o legislador se omitisse em estipular regra objetiva para a concessão de um benefício que independe de contribuição e carência, com ônus financeiro integral atribuído à sociedade!
Trata-se de critério entabulado União Federal, por meio do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, após trabalhos de grupo interministerial (GMAD) encarregado de analisar e fixar os parâmetros e procedimentos de avaliação das pessoas portadoras de deficiência para acesso ao BPC, que fora devidamente apreciado e acolhido pelo Congresso Nacional. A avaliação da pessoa com deficiência para fins do BPC (benefício de prestação continuada) é fruto de longo processo de construção coletiva no âmbito técnico, jurídico e político.
Quanto ao alcance, em 2013, o BPC atingiu 3.964.192 pessoas, sendo 2.141.846 pessoas com deficiência e 1.822.346 idosos, significando, em recursos, o valor de 31.412.336,945 (31 bilhões de reais) ao ano. Os recursos são próprios da Assistência Social, significando mais de 90% dos recursos alocados no Fundo Nacional de Assistência Social - FNAS.
Para se ter uma noção, ainda que aproximada, do quanto representa tal custo dentro da Assistência Social, o anuário estatístico da Previdência Social de 2010 indica o consumo total de R$38.629.489.810,00 (38,6 bilhões de reais), aí englobados PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), Bolsa-Família e demais iniciativas e políticas públicas sócio-assistenciais[1].
A abrangência do público que acessa o BPC cresceu de forma exponencial. No primeiro ano de concessões do benefício, aproximadamente 340 mil pessoas acessaram o BPC, e em 2013, quase 4 milhões, ou seja, o número de beneficiários cresceu mais de 1.000% em 17 anos de execução da política. Já quanto ao investimento, o crescimento em recursos representa mais de 18.000%, pois passou de R$ 172 milhões para 31 bilhões.
Vê-se, pois, sem maiores dificuldades, que, caso fosse acolhida a tese que advogada a inconstitucionalidade do §10 do art. 20 da LOAS ora sob discussão, tal provimento jurisdicional acarretaria não apenas a declaração de inconstitucionalidade de norma legal federal estruturada eminentemente com base em critérios de política pública do Ministério do Desenvolvimento Social como traria um devastador reflexo nas contas públicas da União Federal, assim como implicaria imprescindíveis remanejamentos orçamentários e reestruturações nos vários instrumentos de concretização da Assistência Social e outros tantos de Política Pública.
De todo modo, ainda que se questione a origem do prazo de dois anos, trata-se de critério eminentemente técnico que se reporta à peculiaridade da imprecisão acerca da continuidade do impedimento de longo prazo como fato gerador do benefício.
Tal imprecisão, por sua vez, se deve à própria natureza da fixação de prognóstico, como elemento diferencial de cada causa de pedir remota, pois a previsão do quadro clínico em comento se baseia em uma ponderação de variáveis bioestatísticas que se encontram presentes no caso específico do segurado, tais quais avaliadas em inúmeros estudos de longa duração, compreendendo, por vezes, várias décadas. Contudo, tal análise está fundada na avaliação de diversos indivíduos que apresentam quadro clínico semelhante, e apenas as variáveis que apresentam repetição estatística relevante são objeto de análise para fins de estabelecimento de critérios de avaliação do prognóstico. Assim, há diversos fatores de ordem pessoal que, embora tenham relevância no caso específico de um indivíduo, não são levados em consideração no momento da avaliação das perspectivas de recuperação do mesmo.
A definição da temporalidade dos impedimentos a que se refere o conceito de pessoa com deficiência, além de advir de uma imposição legal, conforme demonstrado, foi amplamente discutida. A fixação do prazo de dois anos observou opiniões de especialistas, para quem, para fins de concessão ou manutenção do BPC, o período de dois anos configura-se um recorte adequado para parametrizar quem é a pessoa com deficiência elegível ao benefício, respeitados os demais critérios legais.
A Avaliação que se vinha realizando anteriormente à Portaria Conjunta MDS/INSS nº 01 de 2011, por não contar com critério objetivo em relação à temporalidade dos impedimentos, estava permitindo a concessão do BPC em situações de doenças e agravos agudos ou subagudos, passíveis de resolução sem sequelas, em curto/médio prazos, como doenças infecciosas agudas e fraturas diversas (relembrando-se, por oportuno, que a Convenção de Nova York, ao estabelecer a exigência de verificação de impedimentos “de longa duração”, afastou, do espectro de abrangência do benefício assistencial, tais hipóteses de impedimentos de curto ou médio prazos).
Ademais, com a definição de uma referência temporal para fins de reconhecimento do direito da pessoa com deficiência ao BPC, uniformizou-se o parâmetro de avaliação, que se realizava sob diferentes critérios temporais que buscavam se adequar à expressão ‘longo prazo”, ora para garantir o direito ao BPC, ora para negá-lo (o que, como já dito alhures, configurava um quadro bastante temerário, pois se deixava de se fixar regra razoável (e objetiva) para a concessão de benefício que independe de carência e contribuição, custeado integralmente pela sociedade, afastando-se, outrossim, de um controle minimamente eficaz e concedendo amplíssima discricionariedade para os servidores/peritos das agências da Autarquia (lembrando-se, mais uma vez, que a fixação de tal regra não exclui jamais a possibilidade de que eventuais indeferimentos indevidos a requerimentos individuais, se for o caso, sejam submetidos à apreciação do Judiciário, não se lhes negando o acesso à Justiça).
Há de se ressaltar, outrossim, que os defensores da tese da inconstitucionalidade do §10 do art. 20 da LOAS costumam incorrer em manifesto equívoco no que, ao que tudo indica, seria sua compreensão acerca de tal exigência legal de 2 anos para configuração do que seja impedimento de longo prazo: de fato, tal compreensão sobre o período de 2 anos está equivocada, pois não se exige do requerente que demonstre deficiência já consumada pelo período de 2 anos; a avaliação realizada pelo INSS indicará a possibilidade/probabilidade de o impedimento perdurar pelo prazo aproximado ou superior a 2 anos (reportamo-nos, neste ponto, ao sem-número de elementos e argumentos de cunho técnico anteriormente já trazidos acima).
Também incorrem em erro os defensores de tal tese ao argumentarem que a taxatividade do impedimento de dois anos violaria o princípio da isonomia e da universalidade de cobertura da seguridade social, senão vejamos:
A Assistência Social é prevista na Constituição Federal como parte da Seguridade Social, juntamente com a saúde e a previdência. Apenas a saúde é universal, segundo o preceito constitucional. A Assistência Social é política seletiva, caracterizada no texto constitucional como “para quem dela necessitar”.
As normas constitucionais, assim como as normas produzidas em Convenções Internacionais, possuem caráter normativo principiológico. O conceito trazido pela Convenção e incorporado às normas constitucionais brasileiras é propositalmente aberto, cabendo à lei infraconstitucional adequá-lo ao elaborar a regulamentação. Considerando que o conceito de deficiência foi elaborado em texto de Convenção Internacional, o conceito deve possibilitar adequação às diversas realidades dos países que a ratificam, e às políticas que as aplicam.
Além disso, a Convenção prevê um prazo (longo), apenas não objetiva o quanto. Ou seja: a tese da inconstitucionalidade foi toda erigida como se tal restrição/limitação (apenas aos “impedimentos de longa duração”) supostamente já não constasse do texto daquela Convenção, pressupondo-se, falsamente, uma amplíssima proteção a todos e quaisquer impedimentos, mesmo os de curta ou média duração. O texto da Convenção de Nova York, ao mencionar “impedimentos de longa duração”, claramente não esgota o tema, trazendo um conceito jurídico indeterminado que, no caso, traz-nos, de imediato, uma indagação: o que seria impedimento de longa duração? Coube ao legislador ordinário pátrio, então, assim como o fizeram os demais países signatários, parametrizar tal conceito jurídico indeterminado, por meio de critério relacionado ao tempo (já que a expressão do conceito jurídico indeterminado “de longa duração” remete-nos, naturalmente, a tal grandeza: o tempo, o prazo). De qualquer modo, o importante é que foi o próprio texto internacional quem limitou o direito aos casos “de longa duração”, embora sob um conceito jurídico indeterminado, a merecer a necessária regulamentação quanto a seus contornos para que se lhe possa dar eficácia.
É fato que o texto da norma internacional, internalizado com status constitucional, há de prevalecer sobre todas as normas infraconstitucionais.
Não se pode olvidar, entretanto, que o fato de a referida convenção ostentar o status de norma constitucional não atribui caráter absoluto aos direitos nela conferidos, podendo sofrer limitações por norma infraconstitucional, desde que inexista a afronta aos demais princípios previstos na Carta Magna, mormente o da razoabilidade.
E, no caso da norma ora sob análise, procurou o legislador fixar, diante do conceito jurídico indeterminado previsto na convenção, critério objetivo e razoável para aferição do caráter duradouro dos impedimentos que acometem a pessoa com deficiência.
Há de se ressaltar, outrossim, que o art. 203 da Carta Magna, ao tratar dos objetivos da Assistência Social, prevê que o benefício de um salário mínimo será garantido “conforme dispuser a lei”, senão vejamos:
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. [grifo acrescido]
A Lei 8.742 (com as alterações legais supervenientes em sua redação) e o Decreto 6.214 complementaram, então, e regulamentaram a hipótese de incidência para a fruição do benefício constitucional.
Não se há de falar em hierarquia entre as normas da Convenção e as normas constitucionais. A norma constitucional prevista no art. 203, V, remete a regulamentação à lei infraconstitucional, conferindo a esta poderes de complementação e regulamentação, observando-se os pressupostos de origem do benefício: valor de um salário mínimo garantido a idosos e pessoas com deficiência.
No caso do idoso, a Lei também prevê quem é assim considerado e o grau de seletividade para as políticas públicas (e nem assim se atacam tais dispositivos normativos sob a alegação de eventual restrição/limitação a um direito constitucional).
A Lei 12.470 adequou o conceito de deficiência na LOAS, incorporando àquela lei especial o conceito já entabulado na Convenção de Nova York, literalmente. Portanto, a vinculação do conceito de deficiência à expressão “impedimento de longo prazo” é exatamente aquele proveniente do texto da Convenção, não havendo qualquer incompatibilidade entre o art. 20, §2º, da lei federal e a Convenção.
O conceito constitucional de deficiência, oferecido pela Convenção, define deficiência de forma ampla, pois se trata de regra internacional, abordada de forma abrangente, a fim de garantir que as especificidades de cada país possam ser contempladas nas leis locais (mais uma vez, reportamo-nos aos vários argumentos e elementos técnico-jurídicos exaustivamente já abordados acima).
“A partir de uma interpretação sistemática do texto constitucional, pode-se concluir que o objetivo da assistência social no Brasil é atender o cidadão privado do mínimo de dignidade humana. Conjugando-se esta afirmação com a expressão deficiência prevista na CF/88, art. 203, V e na Convenção de Nova York, temos que não há como se exigir do cidadão a prova de deficiência por no mínimo 2 anos antecedentes a fim de poder perceber o benefício, sob pena de esvaziar a pretensão constitucional de inserção social dos portadores de deficiência de baixa renda.”
Por fim, há uma linha argumentativa da tese que advoga a inconstitucionalidade no sentido de que, por uma interpretação sistemática do texto constitucional, poder-se-ia concluir que o objetivo da assistência social no Brasil é atender o cidadão privado do mínimo de dignidade humana, de forma a que não haveria como se exigir do cidadão a prova de deficiência por no mínimo 2 anos antecedentes a fim de poder perceber o benefício, sob pena de esvaziar a pretensão constitucional de inserção social dos portadores de deficiência de baixa renda.
Todavia, relembre-se, inicialmente, que a interpretação sistemática é utilizada quando não há clareza na regra, sendo necessária para realizar a completude do sentido normativo. Não há necessidade de fazê-lo para a hipótese em referência, tendo em vista que o objetivo da assistência social está previsto explicitamente no art. 203 da CF.
Perceba-se, ainda, que o argumento ora sob foco reflete uma compreensão equivocada sobre os critérios de acesso ao benefício. Como já esclarecido alhures, não há qualquer exigência de prova de deficiência (pretérita) por, no mínimo, 2 anos;. a avaliação realizada identificará a possibilidade/probabilidade de duração (futura) pelo período aproximado ou superior a 2 anos - definido pelo Poder Público para fins de configuração de impedimentos de longo prazo, com a finalidade de objetivar o critério de acesso ao benefício (reportamo-nos, quanto ao particular, aos fundamentos já expendidos anteriormente, evitando-se desnecessária repetição).
III) CONCLUSÃO
Como se vê, portanto, mostra-se absolutamente infundada a tese que advoga a suposta inconstitucionalidade do §10 do art. 20 da Lei 8.742/1993, haja vista que inexiste qualquer incompatibilidade entre o texto da Convenção de Nova York e a novel legislação pátria que alterou a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) exatamente para adequar seu texto ao resultante daquela Convenção.
Trata-se de norma legal perfeitamente compatível com a Constituição da República de 1988, não merecendo, por conseguinte, ter sua validade ou eficácia extirpadas do ordenamento jurídico pátrio.
[1] Anuário Estatístico da Previdência Social AETS-2010, disponível em www.previdenciasocial.gov.br, acesso em 24.11.2010 [Quadro 8-A do Anexo I da Lei 12.214/2010] – informação colhida em AJOUZ, IGOR. Direito Fundamental à Assistencial Social. Florianópolis: Conceito, 2012, p. 15-16.
Procurador Federal (Advocacia-Geral da União). Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do RJ e Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade de Brasília. Foi Técnico Judiciário e Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (RJ) entre os anos de 1998-2004. Aprovado e nomeado Procurador da República (MPF) no ano de 2006
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CHAVES, Roberto de Souza. Da inexistência de inconstitucionalidade do art. 20, §10, da Lei 8.742/93 (LOAS) - perfeita compatibilidade entre a Lei Federal e a Convenção de Nova York de 2007 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42084/da-inexistencia-de-inconstitucionalidade-do-art-20-10-da-lei-8-742-93-loas-perfeita-compatibilidade-entre-a-lei-federal-e-a-convencao-de-nova-york-de-2007. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: DESIREE EVANGELISTA DA SILVA
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