1. Conceito
Trata-se, conforme lição de Carlos Alberto Carmona, de ‘mecanismo privado de solução de litígios’[1]; a arbitragem é 'meio alternativo de solução de controvérsias através da intervenção de uma ou de mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada'[2]- decorrente do principio da autonomia da conta das partes - para exercer sua função, decidindo com base em tal convenção, sem intervenção estatal, tendo a decisão idêntica eficácia de sentença proferida pelo Poder Judiciário. Tem como objeto do litígio direito patrimonial disponível.
Ainda, é um meio de heterocomposição dos litígios, posto a decisão do conflito ser proferida por um terceiro necessariamente, trata-se de técnica para 'solução de controvérsias alternativa à via Judiciária caracterizada por dois aspectos essenciais: são as partes da controvérsia que escolhem livremente quem vai decidi-la, os árbitros, e são também as partes que conferem a eles o poder e a autoridade para proferir tal decisão'[3].
Assim, as próprias partes nomeiam, por ato voluntário, um terceiro,ou mais de um, estranho(s) ao conflito, depositando nele(s) confiança, sendo que este(s) nomeado(s) irá (ão) apresentar solução para o litígio, que será imposta às partes conflitantes.
Resta claro que a Arbitragem é mecanismo extrajudicial de solução de conflitos, de tal sorte que Carnelutti[4]designa a Arbitragem como sendo um 'equivalente jurisdicional', pois partindo-se do pressuposto de que a jurisdição e monopólio estatal, reconhece-se ao juízo arbitral apenas semelhança com o método exercido pelo Estado para solução de conflitos.
Irineu Strenger[5]ensina que 'a arbitragem é instância jurisdicional prática em função de regime contratualmente estabelecido para dirimir controvérsias entre pessoas de direito privado ou público, com procedimentos próprios e força executória perante os tribunais estatais.'
Note que a Arbitragem, no Brasil, e facultativa ou voluntária, e não imposta às partes obrigatoriamente.
Ressalta-se o princípio da autonomia da vontade das partes, presente em toda a lei de Arbitragem. A legislação disciplina determinadas matérias apenas em caráter subsidiário ou supletivo à vontade das partes; quando está não se encontra expressa na convenção arbitral.
2. Natureza jurídica
A Arbitragem tem natureza jurídica pública, sendo que a 'função exercida pelos árbitros é pública, por ser função de pacificação de conflitos, de nítido caráter de colaboração com o Estado na busca de seus objetivos essenciais'[6]. Portanto, tem-se que a natureza da Arbitragem e pública, porém não é estatal.
Abra-se um parêntese para distinguir a natureza da Arbitragem da natureza da instituição da mesma, ato pelo qual se inicia, que por se tratar de uma convenção particular tem natureza privada.
Sob outro ângulo, a Arbitragem é processo, sendo um procedimento, seqüência encadeada de atos, que se realiza obrigatoriamente em contraditório, assegura a participação, mesmo que potencial, das partes.
No processo arbitral instaura-se uma relação processual entre as partes e o árbitro, além do procedimento em contraditório. Entretanto, difere-se do processo jurisdicional, em que a relação faz-se entre as partes e o juiz, sendo que este tem poder de império, o qual não se verifica no árbitro. Dessa forma, diferem intrinsecamente o processo arbitral do jurisdicional, ainda que extrinsecamente guardem semelhança.
Conclui-se que a Arbitragem tem sim natureza processual, apesar de não ter natureza de processo jurisdicional.
Ainda, tem natureza jurídica de justiça, pois busca 'manter o equilíbrio das relações jurídicas, conciliando interesses individuais em prol do coletivo.'[7] Porém, não estatal, mas sim privada.
3. Hipóteses de aplicação
'Condição sinequa non para a utilização da Arbitragem é a capacidade dos contratantes'[8], condição subjetiva, que se verifica no artigo 1º da lei. Podem ser as partes pessoas físicas ou jurídica, tendo como único requisito a capacidade, que deve ser analisada segundo os institutos do Direito Civil (Código Civil, artigoss 3º e 4º).
Destacam-se algumas das hipóteses de cabimento subjetivas. Assim,pessoas formais, ou entes despersonalizados, tais como espólio e condomínios em edifício, entre outros, podem utilizar a Arbitragem.
O Estado, enquanto parte nos atos negociais que pratica, também pode valer-se da Arbitragem, isso porque, nesses atos, a Administração Pública desveste-se da supremacia que caracteriza sua atividade típica, equiparando-se aos particulares, figurando em posição de igualdade com outra parte da relação, sendo tais atos regidos pelas normas de direito privado. Portanto, podendo o Estado contratar na esfera privada, pode igualmente firmar compromisso arbitral para decidir litígios que possam decorrer dessa contratação.
Podendo o Estado utilizar-se da Arbitragem, podem também valer-se de tal possibilidade suas autarquias, bem como empresas públicas, pelas razões acima expostas.
Além da capacidade das partes, o artigo 1º da Lei de Arbitragem, dispõe que versará a Arbitragem apenas sobre direitos patrimoniais disponíveis.
Merece atenção o que diz respeito à disponibilidade do direito, sendo desnecessária qualquer menção quanto a seu caráter patrimonial. Considera-se 'direito disponível aquele que pode ser ou não exercido livremente por seu titular, sem que haja norma cogente impondo o cumprimento do preceito, sob pena de nulidade ou anulabilidade do ato praticado com sua infringência'[9]. São direitos em que se pode verificar a presença da autonomia da vontade do seu titular. Portanto, disponíveis são os 'bens que podem ser livremente alienados ou negociados, tendo o alienante plena capacidade jurídica para tanto.'[10]
Tratam-se de direitos indisponíveis e, portanto, não admitem o juízo arbitral como meio de solução de seus litígios, questões relativas ao direito de família, especialmente quanto ao estado das pessoas, questões atinentes ao direito de sucessão, as que tem como objeto as coisas fora do comércio, as obrigações naturais, as relativas ao direito penal, entre outras.
Ressalte-se que, apesar de algumas matérias não aceitarem a Arbitragem, por se tratarem de direitos indisponíveis, nada proíbe que se instaure o processo arbitral quando da sentença do processo judicial houver conseqüência patrimonial, ou seja, para apuração do quantum debeatur.
Destacam-se algumas hipóteses de cabimento objetivas. Quanto a ações que versem sobre alimentos, verifica-se a possibilidade de se instituir Arbitragem no que se refere ao quantum, ou seja, apenas permite-se discutir valores, pois é certo que os alimentos são indisponíveis, não cabendo, portanto, Arbitragem.
Já no tocante à partilha de bens, não há que se falar em Arbitragem, 'excetuada a partilha de bens decorrente de extinção da união estável’[11], posto não haver norma jurídica que imponha a solução judicial.
Nas relações jurídicas de consumo, utiliza-se o instituto da Arbitragem para solução de conflitos somente na hipótese de celebração de compromisso arbitral, ou seja, quando houver conflito já existente e as partes de comum acordo firmarem o compromisso; isso porque são vedadas, sendo tachadas de abusivas, pelo artigo 51, inciso VII, do Código de Defesa do Consumidor, sob pena de nulidade, as cláusulas contratuais que prevejam a utilização compulsória da Arbitragem.
Com efeito, este dispositivo deve ser interpretado como proibição a cláusula compromissória, pois não se pode estabelecer, em contratos de consumo, que se empregue o juízo arbitral para solução de conflitos que venham a surgir entre consumidor e fornecedor. É nítido o caráter de proteção do consumidor, parte presumivelmente mais fraca economicamente, evitando-se que o fornecedor, hipersuficiente, imponha solução arbitral.
Ainda quanto a hipóteses de cabimento objetivas, tem-se que não se pode instituir Arbitragem em relação a 'questões anteriormente decididas no mérito seja por juiz togado ou mesmo por outro órgão arbitral'[12], sendo inválido o compromisso arbitral que tenha como objeto coisa julgada, por sua própria definição.
Entretanto, pode ser admitida a possibilidade de se instaurar o juízo arbitral mesmo quando o mérito da questão já houver sido decidido. Justificam essa posição basicamente por dois motivos: um porque a Lei de Arbitragem não traz vedação expressa a essa hipótese em nenhum de seus dispositivos, como fazem outras legislações estrangeiras, e, ainda, porque 'o direito brasileiro admite transação posterior à formação da coisa julgada material, como se infere do artigo 741, inciso VI, do CPC'[13], dessa forma se se admite a transação também poderá ser admitida a Arbitragem.
4. Modalidades
O artigo 2º da Lei nº9.307/96, em seu caput, traz as modalidades de Arbitragem, podendo ser de direito ou de equidade; o parágrafo 1º delibera as partes a escolha das regras de direito a serem empregadas, ressalvando apenas que não violem aos bons costumes nem à ordem pública; e, por fim, o parágrafo 2º permite às partes que convencionem que a Arbitragem se realizara embasada nos princípios gerais do direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio.
Primeiro aspecto importante a ser ressaltado é o que diz respeito ao princípio da autonomia da vontade das partes, como anteriormente já destacado, está presente em toda a Lei de Arbitragem. Verifica-se tal princípio uma outra vez, quando faculta às partes escolherem a modalidade de solução a que os árbitros estarão vinculados no momento de decisão do conflito.
Note, conforme observa Carlos Alberto Carmona[14], que o artigo 9º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) dispõe que a lei do lugar da constituição das obrigações é a lei que deve regê-la, entretanto, o artigo 2º da Lei de Arbitragem derroga a LICC nesse aspecto; podendo as partes optar pelo direito a ser aplicado ou mesmo não ser aplicada uma determinada norma, mas sim princípiosgerais do direito ou equidade, assegurando o caráter da autonomia da vontade, que é preservado.
Impõe a lei como limite, tão somente os bons costumes e a ordem pública, autorizando, dessa forma as partes a elegerem o direito material a ser utilizado para solucionar o conflito, não ultrapassando as barreiras dos bens costumes e da ordem pública.
Entende-se por bons costumes ‘princípios de conduta impostos pela moralidade média do povo (considerada indispensável para a manutenção da ordem social e para a harmonia nas relações humanas)’[15]. Há quem entenda estar hoje tal conceito englobado no da ordem pública, que se considera ‘um conjunto de regras e princípios, muitas vezes fugidios e nebulosos, que tendem a manter a singularidade das instituições de determinado pais e a proteger os sentimentos de Justiça e Moral de determinada sociedade em determinada época.’[16]
Percebe-se o aspecto espacial e temporal, referindo-se a um determinado país, em uma certa época; engloba ainda as bases econômicas e politicas da vida social, as de organização e utilização da propriedade, as de proteção à personalidade, entre outras.
Como última nota referente à ordem pública, ressalte-se que tanto árbitroscomo juízes togados devem sempre respeitar tais conceitos, assegurando, dessa forma, estar em conformidade com o bem maior Justiça, e não simplesmente aplicando a lei que muitas vezes torna-se injusta e inadequada ao caso em análise.
Assim, poderá o árbitro decidir por equidade quando autorizado por lei e, ainda, quando entender não ser adequado aplicar a nora legal ao caso concreto por ocasionar injustiça de qualquer modo ou quando não houver norma prevista disciplinando determinado caso.
O árbitro, portanto, utiliza-se de todo o ser saber, conhecimento e experiênciapara dirimir o litígio, buscando proporcionar sempre a melhor justiça, mesmo se contrariar as normas dispositivas. O que não exclui a possibilidade dele julgar o conflito aplicando normas propriamente ditas, quando assim entender mais conveniente.
Quando as partes autorizam aos árbitros decidirem de acordo com os princípios gerais de direito, conceito que trata de ideias mais abstratas e complexas, nada mais esta a fazer que lhes facultar a utilização da equidade como meio de solução de conflito.
Podem, ainda, quando autorizados pelas partes, os árbitros decidirem em consonância com o direito costumeiro ou consuetudinário, não estando vinculado às regras de direito positivadas; assim, poderá ocorrer de o costume colidir frontalmente com determinado dispositivo legal, não padecendo de vício o laudo se dessa forma for preferido.
Muito comum em negociações internacionais quem para solucionar o conflito, se utilize a lexmercatoria; esta corresponde a um ‘conjunto de princípios gerais e regras costumeiras do direito comercial internacional’[17], é distinta e autônoma, sem referência um sistema legal específico.
Assim, integram a lexmercatória ‘as práticas contratuais, os usos do comércio e os princípios gerais do direito, aos quais podem ser acrescentadas as normas de direito material uniforme, os princípios de direito comuns aos ordenamentos das partes e as codificações privadas de princípios ferais em matéria de contratos.’[18]
Pode-se considerar que há uma ‘desnacionalização do contrato’[19], permitindo aos árbitros que decidam como melhor entenderem, com a regra mais adequada a ser aplicada, tratando-se, portanto, de uma decisão por equidade, em última instância.
REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS:
CARMONA, Carlos Alberto. A Arbitragem e Processo: um comentário a Lei nº9.037/96, São Paulo:Malheiros.
CÂMARA, Alexandre Freias. Arbitragem. 2ª ed. Rio de Janeiro:Lumen Juris. 1997.
CANELUTTI, Francesco. Institucionesdel processo civil. vol.I, trad. ESp. de Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires: El Foro, 1997, p.115, apud CâMARA, Alexandre Freitas, ob.cit..
STRENGER, Irineu. Contratos Internacionais de Comercio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
ROQUE, Sebastião José. Arbitragem – a solução viável. São Paulo: Ícone, 1997.
BATALHA, Wilson de Souza Campos. Tratado de Direito Internacional Privado, ed. RT, 1977, vol.I, p.166 apud CARMONA, Carlos Alberto. ob.cit.
[1]CARMONA, Carlos Alberto. A Arbitragem e Processo: um comentário a Lei nº9.037/96, São Paulo:Malheiros, 1998, p.43.
[2]idibid, loc.cit.
[3]CAMARA, ALexandre Freitas. Arbitragem. 2ª edição, Rio de Janeiro:Lumen Juris, 1997, p.09/10.
[4]CARNELUTTI, Francesco. Insituicionesdel processo civil.vol.I, trad. Esp. de Santiago SantisMelendo, Buenos Aires: El Foro, 1997, p.115, apus CAMARA, Alexandre Fretas, ob. cit.,p.10.
[5]STRENGER, Irineu. Contratos Internacionais de Comercio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p.196/197.
[6]Câmara, Alexandre Freitas. ob. cit., p.12.
[7]ROQUE, Sebastiao Jose. Arbitragem - a solução viável. São Paulo: Icone. 1997.
[8]Carmona, Carlos Alberto. ob.cit., p.47.
[9]CARMONA, Carlos Alberto. ob cit.,p.48.
[10]id ibid., loc. Cit.
[11] CÂMARA, Alexandre Freitas, ob.cit., p.17.
[12]CARMONA, Carlos Alberto, ob.cit., p.57/58.
[13] CÂMARA, Alexandre Freitas. ob.cit., p.20.
[14] CARMONA, Carlos Alberto, ob.cit., p.63.
[15]BATALHA, Wilson de Souza Campos. Tratado de Direito Internacional Privado, ed.RT, 1977, vol.I, p.166 apud CARMONA, Carlos Alberto. Ob.cit., loc.cit..
[16] CARMONA, Carlos Alberto. Ob.cit., loc.cit.
[17]Id ibid, p.69.
[18]Id ibid, loc cit.
[19]CARMOS, Carlos Alberto. Ob cit., p.70.
Procuradora Federal desde 10/2006.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FUZETTI, Bianca Liz de Oliveira. Arbitragem: conceito, natureza jurídica, hipóteses de aplicação e modalidades Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42096/arbitragem-conceito-natureza-juridica-hipoteses-de-aplicacao-e-modalidades. Acesso em: 23 dez 2024.
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