Resumo:A primeira distinção entre cláusulas e princípios consiste no fato de as cláusulas gerais necessitarem de uma positivação para serem válidas, não ocorrendo o mesmo com os princípios. Alguns princípios jurídicos são válidos mesmo que implícitos.O projeto constitucional e o projeto de codificação do direito civil possuem em comum o fato de serem expressões jurídicas da modernidade. Apesar da semelhança temporal, Código Civil e Constituição sempre tiveram um traçado paralelo, incidindo cada qual em um conjunto próprio de relações jurídicas.Sem as modificações ocorridas na Constituição, a constitucionalização do direito civil não seria possível. Fatores como a ampliação do catálogo de direitos consagrados constitucionalmente e a integração de direitos que para sua satisfação necessitam da implementação de políticas públicas e prestações positivas por parte do Estado e da sociedade civil, contribuíram muito para este processo.
Palavras-chaves:Cláusulas gerais. Princípios jurídicos.
Introdução: Clausulas Gerais e Princípios Jurídicos
Muitos autores defendem a equiparação entre cláusulas gerais e princípios jurídicos. Isso ocorre porque algumas cláusulas gerais trazem princípios jurídicos em seu enunciado, geralmente são elas a moldura legislativa do princípio jurídico.
A primeira distinção entre cláusulas e princípios consiste no fato de as cláusulas gerais necessitarem de uma positivação para serem válidas, não ocorrendo o mesmo com os princípios. Alguns princípios jurídicos são válidos mesmo que implícitos. Princípios como os da prevalência do interesse público sobre o particular ou da autonomia da vontade nos contratos privados, nunca foram positivados apesar de apresentarem a mesma força normativa de princípios expressos em normas como o princípio da igualdade (CF, art.5º, caput) ou o princípio da separação e harmonia entre os poderes do Estado (CF, art.1º).
Mesmo que implícitos, os princípios jurídicos possuem uma grande importância no direito. Elevam-se ao primeiro plano da ordem jurídica e através deles o juiz pode criar novas regras ausentes na lei e, muitas vezes, regras que contrariam a própria lei. Por estarem sendo constantemente avaliados pela jurisprudência, os princípios jurídicos possuem uma função corretora, corrigindo soluções legais que na prática revelaram-se injustas.[1]
Constituição e codificação civil
O projeto constitucional e o projeto de codificação do direito civil possuem em comum o fato de serem expressões jurídicas da modernidade. Apesar da semelhança temporal, Código Civil e Constituição sempre tiveram um traçado paralelo, incidindo cada qual em um conjunto próprio de relações jurídicas.
Esse distanciamento progressivo é devido principalmente a concepção dicotômica que separava o direito privado do direito público. Isto ocorreu pelo fato de o projeto codificador, notadamente o Code francês de 1804, ter a pretensão de abarcar em um único corpus todas as relações jurídicas referentes àquele ramo do Direito, graças à acuidade científica das categorias técnicas então formuladas.[2]
Enquanto o Código regulava a vida privada de cada indivíduo, à Constituição ordenava as relações públicas, protegendo o indivíduo do poder de império do Estado. Surge desta diferenciação o mito de que as regras contidas na Constituição não seriam aplicáveis às relações jurídicas existentes entre particulares, uma vez que nessas relações o vínculo jurídico era estabelecido entre sujeitos de direito dotados de igual capacidade.
Sobre essa diferenciação já afirmava FerdinadLassalle:“Quando em um país arrebenta e triunfa a revolução, o direito privado continua valendo, mas as leis do direito público se desmoronam e se torna preciso fazer outras novas”. [3]
Portanto, podemos afirmar que existiam duas Constituições: de um lado a Constituição que regulamentava e disciplinava a vida pública e de outro lado a “Constituição da vida privada” regulando as relações jurídicas entre os cidadãos, o contrato e a propriedade.
Carmem Lucia Silveira Ramos retrata de maneira clara as contradições provocadas por este comportamento:
Hoje reconhece-se a contradição existente em reputar as codificações civis como leis fundamentais da sociedade civil, em oposição ao Estado, pela admissão de que seria absurdo pretender obter proteção do Estado, sem querer submeter-se aos parâmetros de convivência pelo mesmo estabelecidos em razão do interesse público.
Refere Natalino Irti, a propósito, que não se pode participar das duas naturezas: estar, simultaneamente, fora e dentro do Estado; pleitear proteção e negar-lhe obediência.[4]
As grandes mudanças que atingiram a Europa no início do século XX, e no Brasil depois da década de 30, com a maciça intervenção do Estado na economia e com o processo, daí decorrente, de restrição à autonomia privada, ao qual se associa o fenômeno conhecido como dirigismo contratual.[5] A partir de então, altera-se profundamente o papel do Código Civil. De normativa exclusiva do direito privado o Código se transforma em centro normativo do direito comum, ao lado do qual proliferam novas figuras emergentes na realidade econômica, reguladas por leis especiais por não terem sido previstas pelo codificador. [6]
Portanto a edição de um número cada vez maior de textos de lei especial provocou a chamada “descentralização do direito privado”, transformação esta que derrubou o monismo jurídico então vigente para atender às emergências sociais.[7] Como consequência deste fenômeno, ocorreu uma inversão hermenêutica, uma vez que o código civil – outrora conhecido como a “Constituição do direito privado” – passa a ter neste momento uma aplicação residual, complementar à constelação de microssistemas formado pelas diversas leis especiais. Assim,
As relações jurídicas de natureza civil, não importando a sua natureza específica – familiar, obrigacional, real ou sucessória –, passam a disciplinar-se não apenas pelas normas contidas ou derivadas do Código, mas, igualmente, por princípios e regras constitucionais. A hierarquia da normativa constitucional, desde a muito reconhecida sob o ponto de vista teórico, torna-se um objetivo a ser alcançado na prática.[8]
No entanto, a Constituição não teria alcançado esta condição de suprema fonte do Direito sem a contribuição da teoria constitucional. Este processo ocorreu mediante o fortalecimento da jurisdição constitucional, o aprimoramento das técnicas de controle da constitucionalidade e, sobretudo, com a afirmação do caráter normativo dos princípios constitucionais. [9]
Considerações finais
As cláusulas gerais não se confundem com os princípios, por ser um o instrumento de concretização do outro. As cláusulas são elaboradas através da formulação de hipótese legal que em termos de grande generalidade, abrange e submete a tratamento jurídico todo um domínio de casos. Servindo de instrumento para concretizar ideias genéricas como as da boa-fé, bons costumes, uso abusivo de direito, etc. Tais ideias abstratas têm sua aplicação aos casos reais facilitada quando contidas normativamente em cláusulas gerais.
Pietro Perlingieri, um dos percussores da temática civil-constitucional, define:
A norma constitucional torna-se a razão primária e justificadora (todavia não a única, se for individuada uma normativa ordinária aplicável ao caso) da relevância jurídica de tais relações, constituindo parte integrante da normativa na qual elas, de um ponto de vista funcional, se concretizam. Portanto, a normativa constitucional não deve ser considerada sempre e somente como mera regra de hermenêutica, mas também como regra de comportamento, idônea a incidir sobre o conteúdo das relações entre situações subjetivas, funcionalizando-as aos novos valores.[10]
Portanto, não foi apenas o Código Civil que sofreu mudanças. Sem as modificações ocorridas na Constituição, a constitucionalização do direito civil não seria possível. Fatores como a ampliação do catálogo de direitos consagrados constitucionalmente e a integração de direitos que para sua satisfação necessitam da implementação de políticas públicas e prestações positivas por parte do Estado e da sociedade civil, contribuíram muito para este processo.
Referências Bibliográficas
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[1] BERGEL, Jean-Louis. Teoria geral do direito.Trad Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2001, f.122.
[2] NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro, Renovar, 2002. p.48.
[3] LASSALLE,Ferdinad. A essência da constituição, 2a. ed., Rio de Janeiro: Líber Júris, 1985, p.41. In. Teresa Negreiros. Teoria... p.48
[4] RAMOS, Carmen Lucia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras.In: FACHIN, Luiz Edson. Repensando Fundamentos do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 8.
[5]TEPEDINO, Gustavo. (Coord.) Problemas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 3.
[6] Ibid., p.4.
[7]RAMOS, Carmen Lucia Silveira.Op. Cit., p. 8.
[8] NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro, Renovar, 2002. p.50.
[9] Ibid.,p.51.
[10] PERLINDIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro, Renovar, 1997. p.12.
Procuradora Federal. Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera-Uniderp.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARTURI, Claudia Adriele. O substrato constitucional das cláusulas abertas no direito brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 dez 2014, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42104/o-substrato-constitucional-das-clausulas-abertas-no-direito-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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