RESUMO: Este artigo tem a pretensão de examinar a previsão da reclamação constitucional, do ponto de vista da inconstitucionalidade, em norma “interna corporis” de tribunais brasileiros.
Palavras-chave: Reclamação constitucional. Regimento interno. Inconstitucionalidade. Competência legislativa privativa da União.
1. Introdução
Tendo a CF/88 previsto o processamento e julgamento da reclamação apenas pelo Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, l, art. 103-A, § 3º) e pelo Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, f), aos demais tribunais brasileiros restaria afastada tal possibilidade?
Este é o tema sobre o qual se pretende tecer algumas considerações neste artigo.
2. Fundamentos para a afirmação do vício de inconstitucionalidade
Segundo o disposto no art. 22, I, da Constituição Federal, a competência para legislar sobre direito processual é privativa da União, razão pela qual somente lei federal poderia inovar na matéria.
Sendo assim, a previsão da reclamação em regimento interno de tribunal não atende às condições fixadas no texto constitucional, por implicar desrespeito ao que preceitua aquele dispositivo constitucional.
Bem por isso a previsão em lei, tal como ocorre com o Superior Tribunal Militar (art. 6º, I, f, da Lei nº 8.457/92 e artigos 584-587 do Decreto-Lei nº 1.002/69 - CPPM) ou com o Tribunal Superior Eleitoral (Lei nº 4.737/65, art. 121 – Código Eleitoral), afasta qualquer questionamento quanto à constitucionalidade,[1] situação diversa enfrentada pelos demais Tribunais do País.
A título de exemplo, o Supremo Tribunal Federal, no RE 405031[2], declarou a inconstitucionalidade dos artigos 196 a 200 do Regimento Interno do Tribunal Superior do Trabalho, que dispunham sobre a reclamação, “pois não previsíveis em lei no sentido formal e material e, portanto, não poderia o instituto ser concebido” em norma interna corporis.[3]
De outro lado, o STF declarou, por maioria de votos, a constitucionalidade de dispositivo contido na Constituição Estadual do Ceará (ADI 2.212-1[4]). Assim o fez, contudo, porque no julgado prevaleceu o entendimento de que a reclamação não seria recurso, ação, nem incidente, mas simples direito de petição. Além disso, asseverou-se que a reclamação poderia ser maneja perante os Estados-membros, por sintonia com o princípio da simetria e da efetividade das decisões judiciais.
Nesse viés, a Constituição Federal, em seu art. 125, preceitua que “os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição”, bem como que “a competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça” (§ 1º). Cabe questionar, todavia, se essa norma constitucional supera a pecha de inconstitucionalidade da reclamação prevista nos tribunais dos Estados.
Ada Pellegrini Grinover defende que a inserção da reclamação no texto constitucional repele qualquer dúvida sobre a legitimidade de sua previsão em regimentos internos e que, ao estender a mesma previsão ao Superior Tribunal de Justiça, “a Carta Política deixa claro que não se trata de medida admissível com exclusividade na Suprema Corte, mas de providência de caráter geral, destinada a fazer valer a autoridade de decisões de quaisquer tribunais”.[5] J. S. Fagundes Cunha arremata, na linha de raciocínio trilhada por Frederico Marques, que “a possibilidade de o julgador garantir a sua competência e/ou a autoridades de suas decisões há que ser inerente à atividade jurisdicional”.[6]
A nosso juízo, entretanto, a resposta depende da natureza a ser atribuída ao instituto da reclamação. Sendo ação, como já tivemos oportunidade de sustentar em artigo de nossa autoria[7], a inconstitucionalidade parece inarredável, porque, a despeito de os tribunais estarem autorizados pela CF/88 a organizar sua Justiça e definir sua competência, tal atribuição não permite a criação de instrumento processual inexistente na legislação federal como norma geral, a ser aplicável em todas as cortes brasileiras. Evidentemente que, se a reclamação ostentar natureza de medida administrativa (direito de petição, como afirma a Min. Ellen Gracie), aí teríamos aberta a possibilidade de utilização deste instituto.
Não supera o vício de constitucionalidade o argumento no sentido de que, se o STF e o STJ, órgãos de cúpula do Poder Judiciário em âmbito nacional, têm competência para processar e julgar reclamação, por simetria os Tribunais de Justiça também o teriam. O problema, como bem lembram Fredie Didier Júnior e Leonardo José Carneiro da Cunha, é que
tal possibilidade resta afastada dos Tribunais Regionais Federais, pois estão inseridos no âmbito da Justiça Federal, não estando compreendidos na estrutura de um Estado-membro, nem se subordinando a uma Constituição Estadual que, dada a simetria com a Federal, poderia outorgar-lhe a competência para processar e julgar uma reclamação. É sabido que a competência dos Tribunais Regionais Federais está definida nos art. 108 da Constituição Federal, ali não havendo qualquer previsão para a reclamação destinada a preservação de competência ou garantia da autoridade de suas decisões.[8]
A par disso, o argumento da simetria, a nosso juízo, acaba por esbarrar no art. 22, I, da Constituição Federal. Vale lembrar que o STF, em diversos precedentes envolvendo a questão pertinente à competência privativa para legislar sobre direito processual, reconheceu a inconstitucionalidade de matérias processuais reguladas pelos Estados. De fato, a Corte declarou a validade de procedimentos adotados pelos Estados (art. 24, IX, da CF/88); contudo, procedimentos não se confundem com matérias de Direito Processual, sobre o qual não têm competência para legislar, como se pode deduzir de vários julgados do Pretório Excelso (ADI 2.257, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 6-4-05, Plenário, DJ de 26-8-05; ADI 4.161-MC, Rel. Min. Menezes Direito, julgamento em 29-10-08, Plenário, DJE de 17-4-09; ADI 3.896, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 4-6-08, Plenário, DJE de 8-8-08; ADI 1.628, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 10-8-06, Plenário, DJ de 24-11-06; ADI 2.970, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 20-4-06, Plenário, DJ de 12-05-06).
Saliente-se que o art. 125 não conferiu aos Estados o poder de criar remédios processuais novos, consoante doutrina o Min. Sepúlveda Pertence:
[...] o que se quis foi efetivamente dar ao constituinte estadual o poder de distribuir entre os seus diversos tribunais – particularmente entre o Tribunal de Justiça e os Tribunais de Alçada – a competência de segundo grau ou originária o âmbito da Justiça estadual demarcado pela Constituição da República e a legislação processual da União.
Logo, parece que o constituinte buscou realmente entregar esse remédio apenas ao STF e ao STJ, sem olvidar, entrementes, a viabilidade de sua criação por lei federal.
Compartilha do mesmo entendimento Gisele Santos Fernandes Góes, para quem “a reclamação constitucional é um instrumento voltado à proteção da jurisdição constitucional e da uniformização da interpretação da lei federal”, sendo que “a matéria referente a direito processual é privativa da União, segundo o art. 22, I, do Texto Maior”.[9]
Alexandre Moreira Tavares dos Santos, por sua vez, atenta para a possibilidade de se considerar a reclamação implícita dentro da competência dos tribunais regionais e estaduais, “uma vez que não seria legítimo que os juízes de primeira instância pudessem subverter a ordem judiciária, e a corte local nada pudesse fazer de imediato.”[10] Contudo, alerta para outros remédios jurídicos existentes na legislação brasileira, aptos a assegurar de forma plena e eficaz a competência e a autoridade das decisões dos tribunais regionais e estaduais, “não justificando dentro desse contexto a adoção da reclamação sem lei que a institua, sob pena de se negar vigência ao art. 22, I, da CF/88.”[11]
Vale sublinhar também que a Constituição Federal não previu a reclamação para a preservação da competência e garantia da autoridade das decisões de todos os órgãos jurisdicionais do País, caso em que competiria a cada um deles regular o seu procedimento (art. 24 da CF).
Outrossim, a teoria dos poderes implícitos “não parece suficiente para respaldar a criação da reclamação por todos os órgãos jurisdicionais”.[12] Justifica, é verdade, a origem da reclamação no âmbito do STF, mas porque esta Corte exerce funções especiais e goza de posição destacada no sistema jurídico brasileiro. Assim, apenas esta missão constitucional dá guarida à aplicação da teoria dos poderes implícitos, oportunizando a criação da reclamação como meio ágil e eficaz de assegurar a competência e a autoridade de suas decisões. Lembre-se que a reclamação
[...] é um meio de se chegar diretamente ao STF e ao STJ, para se levar ao conhecimento destas Cortes o eventual desacato às suas decisões ou a usurpação de suas competências, que, além de constituírem práticas gravíssimas, podem levar ao comprometimento do nosso sistema. De se notar que, afora os feitos de competência originária, só se pode chegar ao STF e ao STJ, respectivamente, por meio dos recursos extraordinário e especial, os quais são recursos restritos, de fundamentação vinculada. Com a reclamação, porém, tem-se por imediato e prontamente viabilizado o ingresso no STF e no STJ.[13]
Enfim, a unificação do direito processual brasileiro, consagrada na cláusula implícita do art. 22, I, da CF, orienta nesse sentido, porque, se a federação optou pela regulação do direito processual apenas pela União, a abertura de exceções infringe esse sistema. A repartição das competências, portanto, reflete a opção do Brasil pela predominância do interesse nacional para legislar sobre processo.
3. Conclusão
Sendo a reclamação uma ação, a previsão do instituto em regimento interno dos demais tribunais brasileiros não atende às condições fixadas no texto constitucional, por implicar desrespeito ao que preceitua art. 22, I, da Constituição da República Federativa do Brasil.
[1] Nesse sentido: DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Reclamação constitucional. In: FARIAS, Cristiano Chaves de; DIDIER JÚNIOR, Fredie (Coord.). Procedimentos especiais cíveis: legislação extravagante. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 329.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Relator Min. Marco Aurélio. 15 de outubro de 2008.
[3] GOÉS, Gisele Santos Fernandes. Reclamação constitucional. In: DIDIER JÚNIOR , Fredie (Org.). Ações constitucionais. 2. ed., rev. e atual. Salvador: JusPodium, 2007, p. 571.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Relatora Min. Ellen Gracie. 02 de outubro de 2003.
[5] GRINOVER, Ada Pellegrini. A reclamação para garantia da autoridade das decisões dos tribunais. In: ______. O processo: estudos e pareceres. São Paulo: DPJ, 2006. p. 73.
[6] CUNHA, J. S. Fagundes. Recursos e impugnações nos juizados especiais cíveis. Prefaciado por Teresa Arruda Alvim Wambier. 2. ed., rev. e ampl. Curitiba: Juruá, 1997. p. 173.
[7] CALLEGARI, Artur Henrique. Natureza jurídica da reclamação constitucional. 2014. Disponível em <http://www.conteudojuridico.com.br>. Acesso em:.
[8] DIDIER JÚNIOR, Fredie. CUNHA, José Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 4. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JUS PODIVM, 2007, p. 381
[9] GOÉS, Gisele Santos Fernandes. Reclamação constitucional. In: DIDIER JÚNIOR , Fredie (Org.). Ações constitucionais. 2. ed., rev. e atual. Salvador: JusPodium, 2007, p. 573.
[10] SANTOS, Alexandre Moreira Tavares dos. Da reclamação. Revista dos Tribunais, v. 92, n. 808, p. 121-166, jan./fev. 2003, p. 129.
[11] Idem, ibidem.
[12] MORATO, Leonardo L. Reclamação e sua aplicação para o respeito da súmula vinculante. Prefácio Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 65.
[13] MORATO, 2007,p. 67.
Procurador Federal desde 2010, atualmente em exercício junto à Procuradoria-Seccional Federal de Caxias do Sul-RS. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALLEGARI, Artur Henrique. Inconstitucionalidade da previsão da reclamação constitucional em regimento interno dos tribunais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42136/inconstitucionalidade-da-previsao-da-reclamacao-constitucional-em-regimento-interno-dos-tribunais. Acesso em: 23 dez 2024.
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