RESUMO: O objetivo do presente artigo é apresentar uma análise sob a dogmática penal do instituto do ofendículo. O estudo pretende examinar, mais precisamente, a sua natureza jurídica, essencial para demonstrar os requisitos para aplicação em determinado caso concreto. Uma vez apresentado, no capitulo inicial do artigo, o conceito de ofendículo, será descrita, no segundo capítulo, todas as correntes doutrinárias acerca de sua natureza jurídica. Logo após, como conclusão, será dada a opinião do autor acerca do tema, de modo a perfilhar o conceito que mais se amolda ao nosso ordenamento.
Palavras-chaves: Direito Penal. Ofendículo. Conflito doutrinário. Natureza Jurídica. Exercício regular de direito versus legítima defesa. Concordância prática ou harmonização.
1. INTRODUÇÃO
Inicialmente, necessário trazer como introdução ao debate o conceito de ofendículos. Para Mirabete, "são aparelhos predispostos para a defesa da propriedade (arame farpado, cacos de vidro em muros, etc) visíveis e a que estão equiparados os 'meios mecânicos' ocultos (eletrificação de fios, de maçanetas de portas, a instalação de armas prontas para disparar à entrada de intrusos, etc".[1]
O tema posto em debate busca um posicionamento sobre a natureza jurídica do aparato para defender o patrimônio, o domicílio ou qualquer bem jurídico de ataque ou ameaça[2], doutrinariamente denominado de ofendículo. Funcionam como uma advertência e servem para impedir ou dificultar o acesso de eventuais invasores[3]. O proprietário prepara a defesa de antemão, quando o perigo ainda é futuro, mas o aparelho só é acionado ante uma agressão atual ou iminente[4]. Ex: cacos de vidros/ pregos/ grampos no muro, cerca elétrica, cães ferozes, arame farpado, cerca eletrônica, maçaneta de porta eletrificada, armadilhas etc.
2. NATUREZA JURÍDICA
Há duas correntes doutrinárias sobre o tema.
Para alguns doutrinadores, sob uma ótica do momento da instalação - e não do seu funcionamento/acionamento/atuação - tais aparatos constituem um exercício regular de direito, ou seja, que embora o aparelho só se destine a funcionar no momento do ataque, a verdadeira ação do sujeito é anterior[5].
Nesta posição se alinham Fernando Capez (Curso de Direito Penal; Parte Geral, v.1, p.277), Mirabete (Manual de Direito Penal, v.1, p.187) e Aníbal Bruno (Direito Penal, t.2. p.9).
Para outros doutrinadores, sob uma ótica do momento de funcionamento, tais dispositivos constituem uma legítima defesa preordenada, desde que a ação do mecanismo não tenha início até que tenha lugar o ataque e que a gravidade de seus efeitos não ultrapasse os limites da excludente da ilicitude[6].
Nesta posição se alinham Damásio de Jesus, Flávio Augusto Monteiro de Barros (Direito Penal, Parte Geral, v.1., p.341) e Noronha.
Dentro das suas ponderações, ambas as posições possuem suas razões. Os defensores de que os ofendículos constituem um exercício regular do direito sustentam que, o sujeito, ao instalar tais obstáculos, nada mais faz do que exercitar um direito lhes assegurado em lei, ou seja, o determinado no art. 1210, §1º do CC.
Já os que se alinham na corrente de que os ofendículos são exercícios de uma legítima defesa ressalvam a necessidade da presença de “agressão” no instante do acionamento do dispositivo pré-disposto.
Os nossos tribunais, sobre o tema, assim tem decidido:
"Homicídio culposo. Morte de menor provocada por cercaenergizada. Imprudência patenteada. Condenação mantida. É conduta imprudente energizar murada de imóvel, ligando-se a rede elétrica no afã de proteger a propriedade particular, pois que expõe a perigo vidas alheias com resultados imprevisíveis, como incasu, onde menor de 10 anos de idade ao procurar adentrar no interior de terreno para apanhar sua pandorga, encosta nacercaeletrificadae morre vitimado pelo choque" (TJSC - Ap. Crim. n. 25.613, da Capital, rel. Des. Ernani Ribeiro, julgado em 17.12.1990)
APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO CULPOSO. CERCAELETRIFICADA. AUSÊNCIA DE CAUTELAS. CULPA CARACTERIZADA. CONDENAÇÃO MANTIDA. Age com culpa o agente que instala em sua propriedade agrícola aparelho de fabricação artesanal para eletrificar cerca, deixando como responsáveis pela sua manutenção pessoas sem habilitação técnica. (TJSC – Ap. Crim. n. 28.918, de Mondai, rel. Jorge Mussi, julgado em 30.09.1994).
Destarte, constata-se que os nossos tribunais, independentemente da natureza jurídica que seja atribuída aos dispositivos, decidem de acordo com os fatos concretos, isto é: se ocorreu ou não “excesso” no dispositivo pré-disposto para proteção do bem jurídico/ se houve ou não “moderação” entre a “agressão” ao bem protegido e a “reação” do dispositivo acionado etc.
Tal constatação é bem ilustrada pelo prof. Damásio de Jesus[7], quando afirma que a solução das várias hipóteses depende do caso concreto, após posicionar-se que, inexistindo o “acionamento” do dispositivo, a conduta do agente é atípica, posicionando-se pela legitima defesa preordenada, em caso de acionamento, desde que presentes os seus requisitos.
Em uma corrente alternativa, Cezar Roberto Bitencourt[8] posiciona-se que a decisão de instalar os ofendículos constitui ‘exercicio regular de direito’, isto é: exercício do direito de auto proteger-se. No entanto, quando reage ao ataque esperado, inegavelmente constitui ‘legítima defesa preordenada’, numa clara distinção entre os dois momentos (instalação e acionamento do ofendículo).
Inversamente ao posicionamento de Gilson Sidney[9], que não aceita que a natureza jurídica altere-se consoante o momento em que se observa a passagem de um estado passivo para uma atuação positiva do ofendículo, nos alinhamos a esta corrente.
Evidencia-se que, ao instalar determinados dispositivos – alguns, inclusive, não necessariamente “agressivo” ao “invasor”, como é o caso de “alarme” em saída de estabelecimentos comerciais – o proprietário está no ‘exercício regular de direito’, lhes facultado em lei.
Ocorrendo o “acionamento” do dispositivo instalado, poder-se-á ter uma alteração da sua natureza jurídica - de ‘exercício natural de direito’ para ‘legítima defesa preordenada’ - dependendo do caso concreto.
Num fato em que uma criança seja “queimada” em uma cerca elétrica (lesão leve) ao ir buscar uma bola na casa do visinho, não se pode classificar a imputabilidade a este por ‘legítima defesa preordenada’ por faltar um dos requisitos necessário para esta excludente, ou seja, a “agressão”. Neste caso a excludente continua a ser o ‘exercício regular de direito’.
Na mesma hipótese, se esta criança sofrer lesão grave, apurando-se todos os fatos, pode ser que o vizinho tenha que responder pelo “excesso” deste direito.
Mas, se o invasor for um assaltante armado, com evidente intuito agressivo e o ofendiculo for do tipo letal, o proprietário terá extinta sua ilicitude pela excludente de ‘legitima defesa preordenada’.
3. CONCLUSÃO
Consoante demostrado, é intensa a disputa doutrinária acerca da natureza jurídica dos ofendículos. Porém, a razão está com aqueles que defendem trata-se de verdadeiro exercício regular de um direito, e não uma legítima defesa.
Afinal, ninguém duvida de que a lei o uso de meios moderados para a proteção da propriedade privada, sendo, por isso mesmo, um exercício regular de um direito assegura constitucionalmente. Somado a isso, a legitima defesa é instituto que serve para repelir agressão atual ou iminente e não uma agressão futura, como acontece com o ofendículo.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] Mirabete, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal- Parte Geral, p. 190, 8ª edição
2Jesus, Damásio E. de. Direito Penal - Parte Geral, 1º vol., 25ª ed., São Paulo: ed. Saraiva, 2005, p.397
3 Capez, Fernando, Curso de Direito Penal – Parte Geral, 7ª ed., São Paulo: ed. Saraiva, 2004, p.277.
4 Barros, Flávio Augusto Monteiro de, Direito Penal – Parte Geral, v.1, São Paulo: ed. Saraiva, 2003, p.341.
5 Aníbal Bruno, Direito Penal - Parte Geral, 4ª ed., t.2., Rio de Janeiro: Forense, 1978, t.2, p.9 apud Capez, ob. cit. p.277
6 Jesus, ob. Cit., p.398
7 Jesus, ob. cit., p.398
8 Bitencourt, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.313.
9 Sousa, Gilson Sidney Amancio. O Tratamento Das Ofendículas na Doutrina Brasileira. Disponível em www.jusnavegandi.com.br. Acesso em 15.04.2008.
[1]Mirabete, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal- Parte Geral, p. 190, 8ª edição
[2] Jesus, Damásio E. de. Direito Penal - Parte Geral, 1º vol.,25ª ed., São Paulo: ed. Saraiva, 2005, p.397
[3]Capez, Fernando, Curso de Direito Penal – Parte Geral, 7ª ed., São Paulo: ed. Saraiva, 2004, p.277.
[4]Barros, Flávio Augusto Monteiro de, Direito Penal – Parte Geral, v.1, São Paulo: ed. Saraiva, 2003, p.341.
[5]Aníbal Bruno, Direito Penal - Parte Geral, 4ª ed., t.2., Rio de Janeiro: Forense, 1978, t.2, p.9 apud Capez, ob. cit. p.277
[6] Jesus, ob. Cit., p.398
[7] Jesus, ob. cit., p.398
[8]Bitencourt, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.313.
[9]Sousa, Gilson Sidney Amancio. O Tratamento Das Ofendículas na Doutrina Brasileira. Disponível em www.jusnavegandi.com.br. Acesso em 15.04.2008.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GUEDES, Bruno Torres. Da natureza jurídica do ofendículo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42150/da-natureza-juridica-do-ofendiculo. Acesso em: 23 dez 2024.
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