1. Introdução
Uma situação comum de se ver é a de pessoas entrarem com ações para obter imediatamente determinadas prestações do Estado.
Nesse contexto, o presente estudo se propõe a averiguar as implicações da fixação de políticas públicas através de decisões judiciais.
2. Decisões judiciais e o Princípio da Reserva do Possível
É certo que todos os cidadãos gostariam de ver suas necessidades imediatamente supridas pelo Estado. Contudo, a satisfação de direitos geralmente possui um custo elevado, razão pela qual a Administração acaba tendo de estabelecer prioridades, o que, muitas vezes causa insatisfação.
Tal cenário faz com que seja comum o ajuizamento de ações para que o Poder Judiciário assegure o “direito” pleiteado, impondo sua satisfação ao Estado.
Ocorre que essa definição de políticas públicas pelo Poder Judiciário não está isenta de problemas.
Nas palavras de Sarlet[1]
Justamente pelo fato de os direitos sociais prestacionais terem por objeto prestações do Estado diretamente vinculadas à destinação, distribuição (redistribuição), bem como à criação de bens materiais, aponta-se, com propriedade, para sua dimensão economicamente relevante(...) no que diz com direitos sociais a prestações, seu “custo”assume especial relevância no âmbito de sua eficácia e efetivação, significando, pelo menos para significativa parcela da doutrina, que a efetiva realização das prestações reclamadas não é possível sem que se despenda algum recurso, dependendo, em última análise, da conjuntura econômica, já que aqui está em causa a possibilidade de os órgãos jurisdicionais impores ao poder público a satisfação das prestações reclamadas.(...) Já há tempo se averbou que o Estado dispõe apenas de limitada capacidade de dispor sobre o objeto das prestações reconhecidas pelas normas definidoras de direitos fundamentais sociais, de tal sorte que a limitação dos recursos constitui, segundo alguns, em limite fático à efetivação desses direitos.(...) É justamente em virtude destes aspectos que se passou a sustentar a colocação dos direitos sociais a prestações sob o que se denominou de uma “reserva do possível”, que, compreendida em sentido amplo, abrange tanto a possibilidade, quanto o poder de disposição por parte do destinatário da norma.(...) por estar em causa uma verdadeira opção quanto à afetação material dos recursos, também deve ser tomada uma decisão sobre a aplicação destes, que, por sua vez, depende da conjuntura socioeconômica global, partindo-se, neste sentido, da premissa de que a Constituição não oferece, ela mesma, os critérios para esta decisão, deixando-a ao encargo dos órgãos políticos (de modo especial ao legislador) competentes para a definição das linhas gerais das políticas na esfera socioeconômica.
Com efeito, tendo em vista que os recursos financeiros do Estado são limitados, vislumbra-se um verdadeiro impedimento para a concretização da integralidade dos direitos sociais prestacionais. Não sendo faticamente possível a plena realização desses direitos, não há como o Judiciário impor ao Estado a sua prestação. Diante da multiplicidade de direitos a ser realizada em contraponto a ausência de recursos suficientes para tal, não há alternativa senão atribuir ao Legislativo e ao Executivo a tarefa de instituir políticas públicas estabelecendo prioridades. Sem dúvida, a esses Poderes políticos, através de critérios razoáveis e considerando as reservas orçamentárias, incumbe as definições de quais necessidades serão atendidas com primazia. Via de regra, somente os representantes eleitos pelo povo possuem legitimidade para traçar um plano de governo para distribuir os recursos existentes, na mediada em que a alocação de recursos públicos compõe o programa político eleito pelos cidadãos.
Assim, nessa atividade igualmente não é lícito ao julgador substituir o administrador. Nessa hipótese, tal substituição pode trazer inclusive conseqüências graves, pois ante a limitação de recursos eventual interferência do Judiciário impondo o atendimento de determinada necessidade implicará a transferência de verbas que eram destinadas ao atendimento de outras, fazendo com que, muitas vezes, para beneficiar a pessoa indicada pelo juiz se deixe ao desabrigo inúmeras outras.
Essa foi, inclusive a orientação seguida pelo STF, ao confirmar acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina que assim decidiu:
EMBARGOS INFRINGENTES - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - CADEIA PÚBLICA - MANUTENÇÃO E CONSERVAÇÃO SUSCITADAS - ATO ADMINISTRATIVO - DISCRICIONARIEDADE - DESCABIMENTO DE INTENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NO ÂMBITO DA FUNÇÃO EXECUTIVA - PLEITO PROCEDENTE. Ao Poder Executivo cabe a conveniência e a oportunidade de realizar atos físicos de administração (construção de conjuntos habitacionais, etc.). O Judiciário não pode, sob o argumento de que está protegendo direitos coletivos, ordenar que tais realizações sejam consumadas. As obrigações de fazer permitidas pela ação civil pública não têm força de quebrar a harmonia e independência dos Poderes.
Nesse caso, o Ministro Carlos Veloso, ao julgar Recurso Extraordinário interposto pelo Ministério Público de Santa Catarina ratificou a decisão nos seguintes termos:
A tese posta no RE é esta: na forma do art. 144, caput, da CF, o Tribunal deveria determinar ao Executivo local a realização de obras em cadeia pública que se encontra em mau estado de conservação. Acontece que a questão exige previsão no que toca a recursos orçamentários e financeiros, inscrita nas atribuições do Poder Executivo. De outro lado, bem registra o Procurador Luiz César Medeiros, cujo parecer foi adotado no acórdão recorrido: "(...) 'Constitucionalmente, quem detém o poder de priorizar a aplicação das verbas públicas é o Executivo, dentro dos parâmetros orçamentários adredemente aprovados pelo Legislativo. 'Convenhamos, a par da segurança pública, tem o Estado, por igual, responsabilidade pela educação, pela saúde, pelos transportes públicos e por tantos outros itens indispensáveis à sociedade. Cabe ao Administrador Público, dentro das prerrogativas que a Constituição lhe destina, distribuir os recursos orçamentários para suprir tais necessidades. 'Não tenho a menor dúvida que se dependesse da ação do Ministério Público e da receptividade do Judiciário, resolveríamos de pronto a situação caótica dos presídios, problema não só de Canoinhas, mas do Estado de Santa Catarina e de todo o País. Na mesma linha, poderíamos responsabilizar os mandatários pela falta de leitos hospitalares, fator responsável por milhões de mortes nas classes menos favorecidas. Também acabariam as filas de pessoas que mendigam uma consulta médica nos Postos de Saúde. De igual forma, através de determinação via provimento judicial, todas as crianças poderiam exercer em toda sua plenitude o sagrado direito à educação, com a edificação de salas de aula em número necessário para tal desiderato. 'A permanecer hígida a decisão em comento, qual seria a justificativa, no âmbito jurídico-social, para que a cadeia de Canoinhas fosse reformada com primazia, quando tantas outras, alguma em pior situação, por falta de verbas, aguardem por idêntica solução. O próprio Magistrado referiu que a cadeia pública de Itaiópolis, Comarca vizinha, aguarda, inclusive há mais tempo por reformas, encontrando-se também interditada. Não parece razoável, ante tal quadro fático, que o Judiciário exija do Executivo o direcionamento das verbas para atender de forma privilegiada, ou específica, uma comunidade. 'Como muito bem lembrou o recorrente, a forma pela qual o Estado deve garantir o direito à segurança pública está condicionada a políticas sociais e econômicas, o que permite a conclusão de que qualquer atuação nesse sentido deve ser realizada de forma global e atender aos planos orçamentários traçados nos arts. 165 a 167 da Constituição Federal. (...)." (Fls. 205-206) É inviável, está-se a ver, o RE, motivo por que lhe nego seguimento. Publique-se. Brasília, 16 de novembro de 2005. Ministro CARLOS VELLOSO – Relator. (RE 365299/SC. DJ 0/12/2005).
Pelo exposto, verifica-se que não se pode admitir uma ingerência indevida do Judiciário nos demais Poderes, estabelecendo no lugar deles novas políticas públicas, muitas vezes, sem considerar o fato de que os recursos orçamentários são escassos e as necessidades humanas infinitas.
Caso se entenda de maneira diferente, o Poder Judiciário será elevado, inconstitucionalmente, à condição de Poder Supremo. Sob esse aspecto, Canotilho[2], ao tratar do princípio da Separação dos Poderes ressalta que tal divisão pressupõe “o balanço ou controlo das funções, a fim de impedir um <<superpoder>>, com a conseqüente possibilidade de abusos e desvios”, complementando em seguida que pelo fato da Constituição
consagrar uma estrutura orgânica funcionalmente adequada é legítimo deduzir que órgãos especialmente qualificados para o exercício de certas funções não podem praticar actos que materialmente se aproximam ou não são mesmo característicos de outras funções e da competência de outros órgãos (exs.: a AR executa, o Governo legisla, os tribunais administram).
Embora se defenda a inexistência de uma separação absoluta de funções dizendo-se simplesmente que a uma função corresponde um titular principal, sempre se coloca o problema de saber se haverá um núcleo essencial caracterizador do princípio da separação e absolutamente protegido pela Constituição. Em geral, afirma-se que a nenhum órgão podem ser atribuídas funções das quais resulte o esvaziamento das funções materiais especialmente atribuídas a outra. Quer dizer: o princípio da separação exige, a título principal, a correspondência entre órgão e função e só admite excepções quando não for sacrificado o seu núcleo essencial. O alcance do princípio é visível quando com ele se quer traduzir a proibição do <<monismo de poder>>.[3]
Note-se que não se está defendendo a inexistência de qualquer forma de ingerência do Judiciário nos demais poderes. Sempre que o Executivo e o Legislativo, diante da falta de recursos, fixarem políticas públicas irrazoáveis, fazendo opções infundadas, mediante ponderações absolutamente discriminatórias, o Judiciário poderá rever a decisão tomada.
Nesse passo, Freitas[4] observa com propriedade que “se é certo que o Judiciário não pode dizer à maneira de substituto, como o administrador deve atuar positivamente, também é verdadeiro que precisa emitir, auto-restringindo suas eleições(...)”.
Sendo assim, em que pese legítima a atuação do Judiciário na coibição de políticas públicas irrazoáveis, não se pode consagrar ingerências inconstitucionais de um Poder sobre o outro.
3. Considerações Finais
Embora satisfação máxima de direitos seja algo extremamente desejável, é necessário ter-se em mente que a substituição do administrador pelo juiz na definição de quais interesses devem ser atendidos com prioridade estabelecendo, em última análise, a política pública a ser implementada, pode trazer conseqüências ainda mais gravosas do que as decorrentes da não concretização de todos os direitos sociais previstos, tais como a insegurança jurídica e o beneficiamento de pessoas determinadas em detrimento de outras em vidente violação do princípio da isonomia.
Com efeito, deixando-se para o Judiciário definir quais demandas serão atendidas se gerará o problema de se ter decisões contraditórias e eventualmente até mesmo inexeqüíveis, em claro prejuízo a segurança jurídica. Na mesma linha, não raro, poderiam ser encontradas situações idênticas recebendo tratamento diferente, na medida em que uma poderia ter sua ação julgada procedente e a outra não, até por impossibilidade fática de se atender as duas (suponha-se o caso de duas pessoas exatamente com o mesmo estado de saúde precisarem de transplante do mesmo órgão), violando-se, assim, o princípio da isonomia.
Sendo assim, não havendo ilegalidade, as políticas públicas instituídas pelos Poderes Executivo e Legislativo devem ser respeitadas, inclusive em observância ao Princípio Democrático, já que o povo elegeu seus representantes outorgando-lhes legitimidade para implementar determinado plano de governo.
[1] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4 ed. rev. atual e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p 280 -283.
[2] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra; Livraria Almedina, 2003, p. 556.
[3] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra; Livraria Almedina, 2003, p. 559.
[4] FREITAS, Juarez. O controle dos Atos Administrativos. 2 ed. rev. e aum. São Paulo: Malheiros, p.21.
Procuradora Federal desde novembro 2007. Chefe de Divisão de Gerenciamento da Dívida Ativa da Coordenação-Geral de Cobrança e Recuperação de Créditos da Procuradoria-Geral Federal de 2009 a 2010. Ex-Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul. Especialista em Direto Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIZZI, Ângela Onzi. Concretização de direitos através de decisões judiciais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42161/concretizacao-de-direitos-atraves-de-decisoes-judiciais. Acesso em: 23 dez 2024.
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