RESUMO: Tem o presente artigo o propósito de delinear as bases históricas da reclamação constitucional, auxiliando na compreensão do instituto e introduzindo o leitor nas dificuldades enfrentadas sobre o tema.
Palavras-chave: Reclamação constitucional. Histórico.
1. Introdução
A reclamação é instrumento jurídico posto à disposição pela Constituição Federal (arts. 102, I, l, e 105, I, f) para ser veiculado diretamente ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça sempre que houver, por parte autoridade judicial ou administrativa, desacato às suas decisões ou usurpação de suas competências.
O instituto carrega experiência de mais de cinquenta anos no Brasil, mas somente há alguns anos vem ganhando importância e atenção dos operadores do Direito, sobretudo após o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, que passou a prever o uso da reclamação constitucional nos casos de desrespeito à súmula vinculante.
A importância de conhecer a evolução histórica da reclamação reside no auxílio à compreensão deste instrumento, especialmente para o problema da natureza jurídica, na qual reside a celeuma para a definição do regime jurídico que lhe é aplicável.
2. Evolução histórica
De modo geral, a doutrina preocupa-se em examinar os antecedentes históricos do instituto da reclamação em quatro fases bem delimitadas no Direito brasileiro. A propósito, deve-se a José da Silva Pacheco a originalidade desta didática, em estudo publicado quando a Constituição Federal de 1988 ainda nem havia completado o primeiro ano de vigência.[1]
1. A primeira fase é reconhecida a partir do nascimento da reclamação constitucional como resultado da construção pretoriana do Supremo Tribunal Federal, sustentada na teoria dos poderes implícitos (implied powers) norte-americana[2].
Com efeito, para assegurar a autoridade das suas decisões ou preservar a sua competência, era indispensável admitir o correspondente instrumento para garantir esses interesses. Afinal, como os direitos não sobrevivem sem suas garantias (instrumentos de proteção dos direitos), de nada adiantaria a atribuição de autoridade ou competências ao órgão jurisdicional se lhes fosse negada a possibilidade resguardá-las. Assim, quem detém a autoridade ou competência também apresenta implicitamente o poder de garanti-las.
Assim, tal fase foi “caracterizada pela omissão de qualquer texto a respeito, o que não impedia entretanto que a medida fosse admitida em diversas ocasiões”.[3]
Segundo Ada Pellegrini Grinover, a doutrina dos poderes implícitos, que legitimava o uso da reclamação, pode ser resumida na citação de Black invocada pelo Ministro Rocha Lagoa, no voto preliminar da Reclamação nº 141, julgada em 25-01-1952: “Tudo o que for necessário para fazer efetiva alguma disposição constitucional, envolvendo proibição ou restrição ou a garantia a um poder, deve ser julgado implícito e entendido na própria disposição”.[4]
A reclamação, portanto, “era um desdobramento das atribuições jurisdicionais que são conferidas constitucionalmente ao Pretório Excelso”.[5] Assim, com este fundamento o Supremo Tribunal Federal admitia o manejo da reclamação para fazer cumprir suas decisões, já que o remédio jurídico não contava com qualquer respaldo positivo no ordenamento jurídico pátrio, conforme restou assentado na Rcl 141 aludida:
A competência não expressa dos tribunais federais pode ser ampliada por construção constitucional. - Vão seria o poder, outorgado ao Supremo Tribunal Federal de julgar em recurso extraordinário as causas decididas por outros tribunais, se lhe não fôra possivel fazer prevalecer os seus próprios pronunciamentos, acaso desatendidos pelas justiças locais. - A criação dum remédio de direito para vindicar o cumprimento fiel das suas sentenças, está na vocação do Supremo Tribunal Federal e na amplitude constitucional e natural de seus poderes. - Necessária e legitima é assim a admissão do processo de Reclamação, como o Supremo Tribunal tem feito. - É de ser julgada procedente a Reclamação quando a justiça local deixa de atender à decisão do Supremo Tribunal Federal.[6]
Portanto, a reclamação constitucional emergiu no nosso sistema jurídico a partir da “teoria dos poderes implícitos”, influência do direito norte-americano (implied powers), segundo a qual “todas as vezes que é atribuída uma competência geral para fazer alguma coisa, nela estão compreendidos todos os particulares poderes necessários para realizá-la”.[7]
2. A previsão no Regimento Interno do STF inaugura a segunda fase, caracterizada exatamente pela positivação do instituto, ainda que em norma “interna corporis”.
À época, a Constituição Federal de 1946 (art. 97, II) autorizava os tribunais a “elaborar seus Regimentos Internos”, com o que os Ministros do Supremo Tribunal Federal, na sessão de 02-10-1957, incluíram o Capítulo V-A ao Título II, que dispunha sobre este remédio jurídico.
A fase, contudo, foi marcada pela discussão acerca da constitucionalidade da reclamação, em razão de não estar prevista em lei federal, encontrando forte resistência de parte dos Ministros José Linhares, Edgar Costa, Hahnemann Guimarães, Lauro de Camargo e Castro Nunes. “Porém, no âmbito do STF sempre prevaleceu o entendimento de que a reclamação era imprescindível para assegurar a competência e a autoridade de suas decisões.”[8]
3. A terceira fase tem como marco inicial a Constituição de 1967, que ampliou consideravelmente o âmbito de regulação do Regimento Interno do STF (art. 115, parágrafo único, c[9]), a permitir que a Corte dispusesse sobre o processo e o julgamento dos feitos de sua competência originária.
É dizer, pois, que a terceira fase foi caracterizada pela superação da discussão que pairava sobre a constitucionalidade da reclamação no Supremo Tribunal Federal, justamente pela expressa previsão legal na Constituição.
Tal situação, todavia, não afastou o questionamento quanto à regulação deste remédio nos demais tribunais da Federação.[10] Conforme menciona Ada Pellegrini Grinover, a Corte chegou a declarar a inconstitucionalidade dos artigos 194-201 do Regimento Interno do extinto Tribunal Federal de Recursos, já que somente ao STF havia sido atribuído o poder de legislar sobre o processo e o julgamento dos feitos de competência originária ou recursal (Representação nº 1.092-DF).[11]
A partir da Emenda Constitucional nº 7/77, editada durante a vigência da “Constituição de 1969”, o Supremo Tribunal Federal ganha nova competência, qual seja, a de processar e julgar originariamente as causas processadas perante quaisquer juízos ou Tribunais, cuja avocação fosse deferida a pedido do Procurador-Geral da República, quando decorresse imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas, para que se suspendessem os efeitos de decisão proferida e para que o conhecimento integral da lide lhe fosse devolvido (art. 119, I, o). Essa competência (avocatória), própria do regime militar da época, para Marcelo Navarro Ribeiro Dantas inaugura a quarta fase, no que não é acompanhado da maioria da doutrina, que vislumbra apenas na promulgação da CF/88 a quarta era do instituto da reclamação.
4. A última fase histórica – quarta ou quinta, conforme o entendimento – é a que ora vigora entre nós, e caracteriza-se pela previsão explícita na Constituição da República Federativa do Brasil da competência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar “a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões” (CF/88, art. 102, I, l, e art. 105, I, f, respectivamente).
Há quem sustente ainda uma sexta fase[12] a partir da EC nº 45/2004, que introduziu no texto constitucional a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal processar e julgar reclamação contra ato administrativo ou judicial que contrariar súmula vinculante.
3. Conclusões
Por todo o exposto, verifica-se que o instituto, desde o seu nascimento, sempre veio acompanhado de divergências de toda ordem. A natureza jurídica da reclamação, já no seu nascedouro, como resultado da construção pretoriana do Supremo Tribunal Federal, desafiava polêmica entre os Ministros, que não encontraram unanimidade na sua qualificação. Também a constitucionalidade da previsão da reclamação em regimentos internos de tribunais figurou entre os debates do Pretório Excelso, assim como as hipóteses de admissibilidade e o limite temporal para o seu uso, apenas para citar alguns objetos de divergência. Nem mesmo a atual posição adotada pelo STF, no que tange ao regime jurídico da reclamação, encontrou sossego entre os estudiosos do tema, que lhe dirigiram críticas bastante pertinentes, como se pode verificar da doutrina sobre a matéria.
É, pois, a reclamação constitucional um instituto jurídico intrigante e desafiador de um estudo bem mais aprofundado.
[1] PACHECO, José da Silva. A reclamação no STF e no STJ de acordo com a nova constituição. Revista dos tribunais, São Paulo, v. 78, n. 646, p. 19-32, ago. 1989.
[2] GOÉS, Gisele Santos Fernandes. Reclamação constitucional. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Org.). Ações constitucionais. 2. ed., rev. e atual. Salvador: JusPodium, 2007. p. 555.
[3] GRINOVER, Ada Pellegrini. A reclamação para garantia da autoridade das decisões dos tribunais. In: ______. O processo: estudos e pareceres. São Paulo: DPJ, 2006. p. 70.
[4] Idem, p. 70-1.
[5] CUNHA, J. S. Fagundes. Recursos e impugnações nos juizados especiais cíveis. Prefaciado por Teresa Arruda Alvim Wambier. 2. ed., rev. e ampl. Curitiba: Juruá, 1997. p. 167.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Rcl. n. 141. Relator Min. Rocha Lagoa. 25 de janeiro de 1952.
[7] MADISON apud MORATO, Leonardo L. Reclamação e sua aplicação para o respeito da súmula vinculante. Prefácio Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 32-3.
[8] SANTOS, Alexandre Moreira Tavares dos. Da reclamação. Revista dos Tribunais, v. 92, n. 808, p. 121-166, jan./fev. 2003, p. 125.
[9] Reproduzido pelo art. 120, parágrafo único, c, da mesma Constituição, segundo a EC 1/69, e no art. 119, I, o, com a EC nº 7/77 (PACHECO, José da Silva. Reclamação. In:______. O mandado de segurança: e outras ações constitucionais típicas. 4. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 607).
[10] “Nesta fase, prevaleceu o disposto nos arts. 156 a 162 do RISTF, aprovado em 22.10.1980”, como lembra José da Silva Pacheco (2002, p. 609).
[11] GRINOVER, 2006, p. 72.
[12] MORATO, 2007, p. 36.
Procurador Federal desde 2010, atualmente em exercício junto à Procuradoria-Seccional Federal de Caxias do Sul-RS. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALLEGARI, Artur Henrique. Breve histórico da reclamação constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42164/breve-historico-da-reclamacao-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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